Há anos existe a discussão sobre a constitucionalidade da infração por recusa à submissão a teste, exame, perícia ou outro procedimento que permita certificar a influência de álcool ou outra substância psicoativa.
A infração, que surgiu a partir de 2008 com a Lei n°11.705, vem desde lá sendo discutida com a propositura da ADIN n° 4.103 por parte a Associação Brasileira de Restaurantes e Empresas de Entretenimento – ABRASEL NACIONAL, e voltou a ser comentada, depois de tanto tempo, após o Supremo Tribunal Federal reconhecer em fevereiro de 2020 a repercussão geral no Recurso Extraordinário n° 1.224.374/RS proposto pelo DETRAN do Rio Grande do Sul em uma ação anulatória onde o TJRS declarou inconstitucional a infração com base no artigo 165-A do Código de Trânsito Brasileiro, por entender ferir garantias fundamentais do cidadão.
Desde Quando Houve A Infração e Fiscalização de Consumo de Álcool no Trânsito no Brasil?
A infração do artigo 165 (dirigir sob a influência de álcool ou de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência) foi prevista no texto original do Código de Trânsito Brasileiro, com a previsão de multa de R$955, suspensão da habilitação por 1 ano, podendo também ser considerado como crime de trânsito se o condutor estivesse expondo a dano exponencial a incolumidade de outrem.
Tal infração mal era aplicada à época, seja por haver tolerância no limite de álcool permitido (0,6 g/L no exame de sangue e 0,34 mg/L de ar expelido no bafômetro) ou pela ausência de equipamento regulamentado pelo CONTRAN para a aferição da condição. Nessa época ainda não havia a punição por recusa ao bafômetro e os condutores parados em uma fiscalização que simplesmente se recusassem a realizar o exame eram liberados.
Tal cenário de impunidade culminou nas alterações da Lei n° 11.705 de 2008, que reduziu a tolerância da concentração de álcool para 0,2 g/L no sangue e 0,1 mg/L no bafômetro, prevendo, ainda, multa em dobro para o condutor que reincidir na infração no período de um ano.
Foi essa mesma lei que trouxe pela primeira vez a hipótese de autuação do condutor que se recusasse a realizar o exame para verificar a influência de álcool. A lei passou a prever no §3° do artigo 277 do CTB a aplicação das mesmas penalidades e medidas administrativas estabelecidas no art. 165 ao condutor que se recusasse a se submeter a qualquer procedimento de verificação de influência de álcool.
A partir dessa alteração houve uma crescente autuação de infrações da “Lei seca”, principalmente a partir de 2012, quando deixou de haver tolerância para a concentração de álcool no organismo do condutor, e um “boom” de demandas judiciais exigindo a anulação das infrações por alegação de sua inconstitucionalidade.
Diante do cenário de incertezas, novas alterações trazidas pela Lei n° 13.281 de 2016 passou a prever autonomamente a infração pela recusa ao bafômetro no artigo 165-A do CTB com a aplicação das mesmas penalidades da infração do artigo 165 e o aumento da multa de ambas a infrações para o valor atual de R$2.934,70.
Desde então a discussão em relação a infração foi se intensificando e ganhando posicionamentos dos Tribunais de todo o país, que foram divergindo quanto ao entendimento da inconstitucionalidade da infração de recusa e a anulação das autuações geradas.
A Posição do TJRS Sobre o Tema
O Tribunal do Rio Grande do Sul com a sua fama de garantista foi um dos primeiros a alegar a inconstitucionalidade da infração por recusa ao bafômetro.
Em uma das decisões em que se declarou contrário a aplicação da infração do 165-A do CTB, o Tribunal entendeu que para a punição da recusa ao bafômetro o condutor deveria apresentar algum sinal de embriaguez que indicasse a sua intenção furtiva em realizar o teste oferecido. O magistrado declarou que "somente é possível submeter o condutor de veículo aos testes caso ele apresente sinais externos de influência de álcool, os quais deverão ser devidamente certificados por meio do Termo próprio, com descrição de todas as características que levam à conclusão e na presença de testemunha idônea, ou por outro procedimento".
O Tribunal também reconheceu a violação de garantias constitucionais a infração, em que o magistrado entendeu que “Autuar o condutor que não apresenta qualquer ameaça à segurança no trânsito, pela mera recusa em realizar os testes oferecidos pelos agentes de trânsito, configura arbitrariedade e viola frontalmente os princípios constitucionais de liberdade (direito de ir e vir), presunção de inocência e de não auto incriminação, previstos na Constituição Federal."
Outras garantias que o Tribunal entendeu violado foram o da intangibilidade do corpo e a dignidade da pessoa humana, pois “O ato de ceder o sangue ou soprar o bafômetro (métodos de constatação de alteração psicomotora), por envolver diretamente a disposição do corpo humano, necessitam de uma postura ativa do indivíduo envolvido."
Tal premissa fundamentou outras decisões semelhantes até o TJRS uniformizar sua jurisprudência em virtude das decisões conflitantes proferidas por suas turmas. Na uniformização o Tribunal firmou entendimento contrário ao acima exposto, entendendo que a infração por recusa ao bafômetro era de mera conduta e, por isso, não poderia ser exigida prévia indicação de sinal ou sinais de embriaguez para a autuação.
Nos termos do voto vencedor "Desnecessário que a autoridade de trânsito disponibilize outros meios de aferição da embriaguez para aquele que se recuse à realização do teste do etilômetro (bafômetro), eis que, sendo voluntária sua recusa a qualquer dos meios de prova disponibilizados no momento da autuação, já estará configurada a infração de trânsito e válida a autuação do condutor realizada, seja pelo art.277, paragrafo 3º, do CTB, com as penalidades do art. 165, seja pelo art.165-A do CTB, conforme a data do fato."
Para o Juiz Coutinho, invalidar as autuações traria um cenário de impunidade e possibilitaria a fuga à responsabilidade dos condutores por suas condutas. Para ele, "Se, realmente, desejasse tal condutor provar não ter ingerido bebida alcoólica, bastaria, como facilmente pode concluir o senso comum, fazer o teste oportunizado pela autoridade de trânsito na ocasião da abordagem, como a ética nas relações sociais impõem, e, discordando do resultado, buscar os meios de prova para fazê-lo, pois, a prova da alegação incumbe a quem alega, não podendo esse ônus ser transferido ao Poder Público."
Por maioria, a Turma de Uniformização proferiu enunciado confirmando a constitucionalidade da infração do artigo 165-A do CTB, declarando "São consideradas válidas as autuações, seja pelo artigo 277, parágrafo 3º, com as penalidades do artigo 165, ambos do Código Brasileiro de Trânsito (CTB), seja do artigo 165-A do mesmo diploma legal, conforme a data do fato, pela recusa do condutor a se submeter ao teste do bafômetro (etilômetro), exame clínico, perícia ou outro exame que permita verificar a embriaguez, previstos no artigo 277, caput, do CTB, pois se trata de infração de mera conduta, dispensando a verificação de sinais de embriaguez ou a disponibilização, no momento da autuação, de outros meios de aferição da embriaguez para aquele que se recuse à realização do teste do bafômetro (etilômetro)".
A posição do TJDFT Sobre o Tema
O Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios firmou entendimento em 2019 pela constitucionalidade da infração. A Turma de Uniformização de Jurisprudência do TJDFT fixou que a mera recusa ao teste do bafômetro configura a infração do artigo 165-A do CTB, independentemente da elaboração de auto de constatação de ingestão de bebida alcoólica.
No julgamento, os magistrados destacaram que “a vontade da lei, em relação à conduta descrita no art. 165-A, é de apenar aquele condutor que se recusa a colaborar com as autoridades que fiscalizam as condições do trânsito com a mesma austeridade com que pune aquele que comprovadamente dirige embriagado”. A diferença é que o condutor comprovadamente embriagado, que tenha ou não se recusado ao teste referido no art. 165-A, responde, ainda, por infração penal de condução de veículo sob a influência de álcool.
Assim, a Turma fixou por unanimidade a tese: "A recusa do condutor de veículo, abordado na direção de veículo em via pública e/ou que tenha se envolvido em acidente de trânsito, em realizar o teste do etilômetro, por si só, configura a infração de trânsito prevista no art.165-A do Código de Trânsito Brasileiro, independentemente da elaboração de auto de constatação".
O Recurso Extraordinário 1.224.374/RS e a ADIN n° 4103
Duas demandas a serem julgadas pelo STF devem pôr fim ao conflito de entendimentos quanto à constitucionalidade da infração do artigo 165-A.
A ADIN n° 4103, proposta em 2008, atualmente foi incluída na pauta de julgamento do STF e deve ser analisada em breve. A ação que teve origem no questionável §3° do artigo 277 do CTB teve sua petição inicial aditada em decorrência das alterações legislativas introduzidas no CTB, inclusive com a tipificação da infração em artigo próprio.
Já o Recurso Extraordinário 1.224.374/RS é originário de uma decisão da Segunda Turma Recursal da Fazenda Pública dos Juizados Especiais Cíveis do Estado do Rio Grande do Sul que anulou uma infração do 165-A por entender ser necessário a prévia indicação de sinais externos de embriaguez.
O TJRS, na citada ação, havia considerado inconstitucional a norma do artigo 165-A do CTB por violar os princípios da liberdade, presunção de inocência, não-autoincriminação e individualização da pena. Segundo a decisão, multar um condutor que não apresentou ameaça à segurança do trânsito somente pela recusa em realizar o exame configuraria arbitrariedade.
No recurso ao Supremo, o Detran do Rio Grande do Sul defendeu que o direito à liberdade não se sobrepõe ao direito fundamental da coletividade à vida e à segurança no trânsito. Por isso, a punição é razoável e proporcional, diante dos custos sociais da conduta em análise. E que justamente por ser infração autônoma, não se exige comprovação de sinais de embriaguez.
Em memorial encaminhado ao STF, no caso do RE 1.224.374/RS, o Procurador-Geral da República, Augusto Aras, defendeu a constitucionalidade do artigo 165-A do CTB.
Na avaliação do Procurador-Geral as garantias de presunção de inocência e a não autoincriminação não se aplicam porque a norma em discussão não é de natureza penal, mas administrativa. Segundo ele: "Trata-se de sanção administrativa por infração à legislação de trânsito, com fulcro no § 3º do art. 277, do CTB, cuja conduta punível tem repercussão estritamente administrativa, sem qualquer projeção sobre o âmbito penal ou mesmo sobre o tipo infracional de embriaguez ao volante".
Aras argumentou que a recusa em se submeter ao bafômetro não presume a embriaguez e não se confunde com a infração do artigo 165 e, por isso, independe de qualquer verificação prévia de sinal de alteração da capacidade psicomotora. Aras sugeriu a seguinte tese de repercussão geral: "É constitucional o artigo 165-A do Código de Trânsito Brasileiro, incluído pela Lei 13.281/2016, o qual estabelece como infração autônoma de trânsito a recusa de condutor de veículo a ser submetido a teste que permita certificar a influência de álcool, por configurar norma de natureza administrativa, não ferindo, portanto, garantias processuais penais, como a presunção de inocência e o direito à não autoincriminação."
Em fevereiro de 2020 o STF reconheceu a Repercussão Geral no RE n° 1.224.374/RS, ou seja, que o conflito do recurso ultrapassa o interesse das partes, tendo relevância do ponto de vista econômico, político, social e jurídico e, por isso, merece ser analisado pela Corte. A partir dessa decisão, o recurso está apto para julgamento pelo Supremo, mas ainda sem data definida.
O Nosso Entendimento Sobre o Tema
Contrário ao posicionamento do Procurador-Geral da República, entendemos ser sim aplicável às garantias fundamentais de não autoincriminação, presunção de inocência, intangibilidade do corpo, dentre outros, para além da esfera penal, mas também no direito administrativo.
O texto constitucional deve ser visto como um todo integrado, não havendo ali letras em vão, sendo as garantias firmadas no artigo 5° e demais partes da CF/88 proteções aplicáveis a todo o ordenamento e situações, com vistas a garantir a dignidade da pessoa humana.
Contudo, mesmo entendendo pela aplicação de tais garantias, há de se reconhecer que há conflitos entre direitos fundamentais e, para além do interesse privado do cidadão autuado pela infração do artigo 165-A, há a maior relevância do interesse público em garantir um trânsito seguro, na hipótese.
Declarar inconstitucional a infração do artigo 165-A do CTB tornaria esse tipo de fiscalização muito frágil e quase inaplicável, posto que os condutores se esquivariam com a mera recusa ao procedimento, assim como ocorria e foi situação motivadora das alterações no Código de Trânsito Brasileiro.
Apesar de não ser possível exigir do cidadão a produção de provas contra si, também é exigível que este colabore com a segurança no trânsito e, por boa-fé, demonstre, por meio do exame, que não oferece nenhum risco à coletividade, desde que não seja feita de forma invasiva.
Na esteira de inviolabilidade do corpo, entendo que o teste do etilômetro, apesar de exigir uma postura ativa do condutor, não é uma exigência invasiva. Diferentemente de um exame de sangue, o etilômetro é um teste totalmente razoável e não entendo ser capaz de ferir a garantia fundamental de intangibilidade.
Assim, entendo que, se disponível etilômetro no momento da fiscalização, a recusa é legítimo fato gerador para a autuação do artigo 165-A. Porém, se não houver etilômetro disponível e for oferecido exame de sangue, por exemplo, tal infração seria inaplicável por exigir maior postura ativa do condutor e exigir a tangibilidade do seu corpo para produção de provas de embriaguez.
Nesses termos, entendemos ser constitucional a infração firmada no 165-A do CTB, independentemente de prévia indicação de sinal de embriaguez, desde que oferecido e disponível teste não invasivo no momento da fiscalização (etilômetro), por dever ser priorizado o interesse coletivo sobre o privado nesse tipo de infração.
Referências
Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios. Processo n° 20190020029770UNJ. Disponível em < https://www.tjdft.jus.br/institucional/imprensa/noticias/2019/novembro/condutor-que-se-recusa-a-faze...; Acesso em 07 de out. de 2021.
Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Processo n° 71008311128. Disponível em <https://www.tjrs.jus.br/novo/noticia/publicado-acordao-que-uniformiza-jurisprudencia-sobre-teste-do-...; Acesso em 07 de out. de 2021.
VIVAS, Fernanda. TV Globo. Disponível em https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/02/28/stf-vai-julgar-se-punicao-a-quem-recusa-teste-do-ba... Acesso em 07 de out. 2021.