Saga inglória do homem cordial.

16/10/2021 às 06:20
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Sérgio Buarque de Holanda foi um dos intérpretes do Brasil e promoveu a melhor compreensão do ser brasileiro e, ainda, movimentou diversos debates desde a época da primeira edição de “Raízes do Brasil” em 1936 até hoje em dia. Cordialidade significa ...

Resumo:

Sérgio Buarque de Holanda foi um dos intérpretes do Brasil e promoveu a melhor compreensão do ser brasileiro e, ainda, movimentou diversos debates desde a época da primeira edição de “Raízes do Brasil” em 1936 até hoje em dia. Cordialidade significa qualidade daquele que age com o coração, de forma emotiva e, até de modo violento. Infelizmente, o brasileiro ainda sofre de inquietação identitária.

Palavras-Chave: Sociologia. História. Raízes do Brasil. Homem Cordial. Cordialidade. Brasileiro.

 

Résumé:

Sérgio Buarque de Holanda a été l'un des interprètes du Brésil et a promu une meilleure compréhension de l'être brésilien, et il a également suscité plusieurs débats depuis la première édition de « Raízes do Brasil » en 1936 jusqu'à aujourd'hui. La cordialité signifie la qualité de celui qui agit avec le cœur, émotionnellement et même violemment. Malheureusement, les Brésiliens souffrent encore d'un malaise identitaire.

 

Mots-clés: Sociologie. Histoire. Racines du Brésil. Homme cordial. La convivialité. Brésilien.

 

O homem cordial é uma peça-chave da formação do Brasil. Etimologicamente, cordial é relativo ao coração, vem do latim cordialis...O homem cordial é um conceito desenvolvido pelo historiador e sociólogo Sérgio Buarque de Holanda em sua obra "Raízes do Brasil", cuja primeira edição fora publicada em 1936.

A cordialidade descrita faz com que o brasileiro sinta, ao mesmo tempo, o desejo de estabelecer intimidade e o horror a qualquer convencionalismo ou formalismo social. Isto na prática, faz com que as relações familiares continuem a ser o modelo obrigatório de qualquer composição social entre nós. Por isso, em geral, os indivíduos não conseguem compreender a distinção fundamental entre as instâncias públicas e privadas, principalmente, entre o Estado[1] e a família.

Para Holanda o melhor caminho a ser seguido pelo Brasil moderno era mesmo a erradicação da cordialidade e a manutenção do personalismo, ligado ao caudilhismo[2], para a fundação de sistema política orgânico.

Existe uma diferença em relação à postura de Buarque de Holanda entre o texto da primeira edição, de 1936, e o da segunda, de 1948, quando o livro foi largamente revisado. Se na primeira edição, Sérgio Buarque acreditava na possibilidade de “equilíbrio entre tradição e modernidade ou entre cordialidade – até então, um atenuante da impessoal modernização – e civilidade”, na edição de 1948 existe uma tendência para a balança pender mais para a modernização. Com isso, o homem cordial[3], a essência do brasileiro, seria uma herança da colonização ibérica que precisava ser relativizada para que o Brasil alcançasse a civilidade plena.

Infelizmente, há grande confusão interpretativa do que seria o "homem cordial" para Holanda, que começou a ser desfeita na década de oitenta e que postulava que o cordial seria o cordato, submisso e até passivo.

Porém, tais conceitos nada tem a ver com que foi esclarecido na obra "Raízes do Brasil", pois a essência da cordialidade procurava exprimir passionalismo, personalismo, irreverência diante das normas institucionais, porém, nunca submissão ou vassalagem. E, afinal, o cordial refere-se à raiz latina cordialis que significa relativo ao coração, assim, habitualmente o brasileiro age conforme a emoção, e não com a razão.

Em sua terceira edição da obra, lançada em 1956[4] aprofundou-se o debate em torno do conceito de homem cordial para pontuá-lo como a predominância da esfera privada na vida brasileira. E, assim, o Estado era encarado pelos brasileiros como sendo uma espécie de “segunda casa” povoada por familiares e amigos, resultando numa sociedade patrimonialista. Daí, a naturalização do nepotismo, por exemplo.

Sublinhe-se que a origem da expressão "homem cordial" é controversa. Pois, alguns apontam estar relacionada aos escritos do diplomata Rui Esteves Ribeiro de Almeida Couto que teria criado para definir o que seria a índole brasileira. Ainda em 1931, Couto afirmava ser a disposição do brasileiro muito diversa da europeia, posto que tinha evidente inclinação sentimental mesclada à hospitalidade e credulidade.

Por outro viés, há que atribua ao poeta Rubén Dario[5] que utilizou a expressão para comentar dos poderosos argentinos em 1898. Segundo Antônio Cândido[6], Holanda acrescentou o fundamento sociológico ao fundo conceitual da expressão em comento.

O brasileiro por ser oriundo de forte mistura de raças do mundo colonial, herdou certas características típicas dessa empreitada, especialmente, dos colonizadores portugueses. Posto que estes já consideraram uma raça mestiça[7], por conta da invasão ibérica que teria aduzido a mistura entre a raça europeia e a árabe, gerando um perfil europeu encarado como sendo de segunda classe[8]. Afora isso, a proximidade de Portugal com o continente africano teria levado a certa espécie de contaminação dos ares e da cultura.

E, nesses pontos, a interpretação de Holanda, reside a indolência portuguesa, sua repulsa ao labor e a preferência nítida por vida aventureira e, também, a forma como a escravidão se desenvolveu no Brasil, vista por este como branda se comparada a de outros locais.

Como não possuíam nenhum ideal de pureza racial, os portugueses, segundo Holanda, desenvolveram espécie de cumplicidade com escravos, produzindo, inclusive, uma moral frouxa que rotinizava as relações entre os escravizados e senhores[9]. O que resultou em inúmeros bastardo, à guisa do primeiro imperador brasileiro, Dom Pedro I.

Enfim, a herança colonial portuguesa que conformava o homem cordial, não era um elogio eloquente da colonização, já que trazia consigo a noção de que o trabalho infernizava o homem, um patente estilo de colonizar, feitorial, litorâneo, rural e improvisado, ficando indiferente à transposição ou não de certa portugalidade em terra brasilis e com fortes origens das hierarquias marcadas por visão aristocrática de tipo aventureira e personalista.

De fato, vige profundo pessimismo com relação ao legado colonial lusitano, e que teve ausente nas primeiras duas edições da obra de Holanda, acentua-se que a partir da quinta edição a referida herança colonial é vista como espécie de maldição que atravanca a modernização e a prosperidade do Brasil.

Os vestígios da cordialidade do povo brasileiro são perceptíveis na linguagem com o uso habitual do sufixo -inho, marcando uso frequente de diminutivo e, para nos tornar mais familiarizados com as pessoas ou os objetos, e simultaneamente, para lhes dar maior relevância. Assim, aproximamos cada vez mais do coração.

Outro exemplo é a omissão do nome de família como forma de tratamento, usando apenas o prenome que importa psicologicamente em abolir barreiras destinadas a diferenciar uma família das demais.

Aduziu ainda Holanda a superficialidade da vida religiosa, devido à aversão ao ritualismo e à cordialidade excessiva.

Assim, o historiador e sociólogo destacou in litteris

     "No Brasil, [...], foi justamente o nosso culto sem obrigações e sem rigor, intimista e familiar, (...) que dispensava no fiel todo esforço, toda diligência, toda tirania sobre si mesmo, o que corrompeu, pela base, o nosso sentimento religioso".

Temos uma religiosidade "de superfície, menos atenta ao sentido íntimo das cerimônias do que ao colorido e à pompa exterior, quase carnal em seu apego ao concreto e em sua rancorosa incompreensão de toda verdadeira espiritualidade".

Holanda, para exemplificar, ainda citou o relato de Auguste de Saint-Hilaire, que visitou São Paulo na semana santa de 1822:

       “Ninguém se compenetra do espírito das solenidades. Os homens mais distintos delas participam apenas por hábito, e o povo comparece como se fosse a um folguedo. No ofício de Endoenças, a maioria dos presentes recebeu a comunhão da mão do bispo. Olhavam à direita e à esquerda, conversavam antes desse momento solene e recomeçavam a conversar logo depois. [...] As ruas viviam apinhadas de gente, que corria de igreja a igreja, mas somente para vê-las, sem o menor sinal de fervor”. — Auguste de Saint-Hilaire

Confirmou Holanda que os cultos apelam só ao sentimento e aos sentidos, e não à razão tampouco à vontade. E, ilustrou ao apontar para o “colorido e a pompa exterior”, conforme citou Daniel Parish Kidder, um missionário norte-americano que esteve por aqui no começo do século XIX.

A aversão ao ritualismo religioso está relacionada à insubordinação da personalidade. Afinal, os brasileiros se mantêm, por assim dizer, soberanos dentro de si mesmos, não submetendo a personalidade a um objeto exterior a eles próprios.

Uma exemplo disso é a valorização das virtudes relacionadas à personalidade.  Assim, um diploma de curso superior é bem valorado pois agrega valor a ela.

E, essa cultura da personalidade é, sem dúvida, uma herança dos ibéricos (portugueses e espanhóis), pois, tais povos tinham a peculiar ação sobre as coisas, sobre o universo material, implicando em submissão a um objeto exterior, e gerando a aceitação de uma lei estranha ao indivíduo.

Holanda afirmou que "[nós brasileiros] somos notoriamente avessos às atividades morosas e monótonas, desde a criação estética até às artes servis". Essa aversão está relacionada à já mencionada insubmissão a um objeto externo. O autor sustentou que "a personalidade individual dificilmente suporta ser comandada por um sistema exigente e disciplinador", sistema esse que é exigido para que se realizem grandes obras.

O enorme prestígio que o romantismo teve no Brasil, derivou exatamente de nosso personalismo inato e avesso ao formalismo. E, assim o romantismo adequou-se ao gênio nacional, e tal como em Portugal, o velho prestígio das formas simples e espontâneas, dos sentimentos pessoais, a despeito das contorções e disciplinas seculares do cultismo e do classicismo[10].

É preciso dissipar a confusão entre o homem cordial e o homem bom, pois, um tem fundo emotivo extremamente rico e transbordante, que caracteriza o homem cordial. Contudo, suas ideias quase não se aproximavam.

Enquanto para Couto que definiu o homem cordial como um espírito hospitaleiro com a tendência à credulidade. Enquanto Holanda ao analisar o fundo emotivo que foi responsável por conceber a cordialidade brasileira, evidenciou que a inimizade bem pode ser tão cordial como a amizade, posto que tanto uma como a outra, nascem do coração e procedem da esfera do íntimo, do familiar e do privado. Somos dados ao amor e ao ódio pungentes.

Assim, há no perfil ibero-americano plena disponibilidade sentimental e bondade, diferentemente do que Holanda identificou a partir do momento em que a cordialidade deliberadamente elimina os juízos éticos e intenções apologéticas. O cordial é o que é próprio ao coração, sendo passional e intensamente subjetivo.

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Evidentemente existiram ferozes críticas ao conceito de homem cordial surgiram e, a primeira foi a de 1948 pelo ensaísta Cassiano Ricardo[11], que em sua obra "Variações sobre Homem Cordial" argumentava que a característica essencial do brasileiro era a bondade e não a cordialidade.

Já para o sociólogo Jessé Souza[12], em sua obra intitulada "A Elite do Atraso" que também criticou o conceito de homem cordial por pensar que o brasileiro genericamente, sem distinção de classe social.

Depois, Holanda desenvolveu em sua obra seu homem cordial segundo a noção também desenvolvida por este de patrimonialismo brasileiro e, nesse, a elite se juntaria para tirar maiores proveitos particulares daquilo que é público.

Segundo Jessé, Holanda escondeu a atuação do homem cordial do mercado, exaltando este em detrimento do Estado, visto como o centro de toda a corrupção e exploração da elite pelo povo, escondendo, assim, os reais conflitos de classe no Brasil e a origem social dos privilégios individuais.

Destacou-se que diferentemente do povo japonês onde a polidez é intrínseca ao processo civilizacional, aqui no Brasil   a mesma polidez apenas reside na superfície. Assim, o homem cordial seria o mais fiel retrato do brasileiro, de origem patriarcal, de herança rural, dominado pelo coração, sendo muto afável, impulsivo e quiçá violento. O mito do homem cordial embaça a coerente percepção sobre o brasileiro, principalmente, na contemporaneidade. Iremos, tenho esperança, superar a saga inglória do homem cordial

 

Referências

 

HOLANDA, Sérgio Buarque de.  O Homem Cordial. In: Raízes do Brasil. 26ª edição. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

SOUZA, Jessé. A Elite do Atraso: Da escravidão a Bolsonaro (edição revista e ampliada). Estação Brasil. São Paulo: Sextante, 2019.

VAINFAS, Ronaldo. O imbróglio de Raízes: notas sobre a fortuna crítica da obra de Sérgio Buarque de Holanda. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rbh/a/45QqxHfNBTwbvPkjdJ9qndf/?lang=pt  Acesso em 14.10.2021.

Jacino, R. (2017). QUE MORRA O “HOMEM CORDIAL” - Crítica ao livro Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda. Sankofa (São Paulo), 10(19), 33-63. https://doi.org/10.11606/issn.1983-6023.sank.2017.137189 Acesso em 14.10.2021.

DA MATA, Sérgio. Tentativas de desmitologia: a revolução conservadora em Raízes do Brasil. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rbh/a/tYGGjRBkSjkB4KZ9ksVV6mM/?lang= Acesso em 14.10.2021.

CARVALHO, Raphael Guilherme. Raízes do Brasil, edição crítica: uma virada na memória da obra. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rbcsoc/a/Z3FhXK6gCY56LfYp3bfbdQN/?lang=pt Acesso em 14.10.2021.

COSTA, Rosely Gomes. Mestiçagem, racialização e gênero. Disponível em: https://www.scielo.br/j/soc/a/WSJgtW5kr85wnmYZrhhh3Rd/?lang=pt Acesso em 14.10.2021.

FREYRE, Gilberto. Sobrados e Mucambos. 2ª. ed. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio, 1951.

VEIGA, Edison. Colaboração para o TAB, de Bled (Eslovênia). Como o mito do "homem cordial" embaça a percepção sobre o brasileiro. Disponível em: https://tab.uol.com.br/noticias/redacao/2020/05/16/como-o-mito-do-homem-cordial-embaca-a-percepcao-sobre-o-brasileiro.htm Acesso em 14.10.2021.

COSTA, Walter Carlos. Antonio Candido: crítica e cordialidade. Disponível em:  https://webcache.googleusercontent.com/search?q=cache:19bqRSolmR8J:https://periodicos.ufsm.br/letras/article/download/11912/7333+&cd=1&hl=pt-BR&ct=clnk&gl=br Acesso em 14.10.2021.

NINA RODRIGUES, Raymundo. As raças humanas e a responsabilidade penal no Brasil. Disponível em: https://static.scielo.org/scielobooks/h53wj/pdf/rodrigues-9788579820755.pdf   Acesso em 14.10.2021.

 

 


[1] A não distinção entre o público e o privado também seria uma característica forte do Homem Cordial. As relações — de amabilidade apenas aparente e um permanente “desejo de estabelecer intimidade”, sejam elas de vizinhança ou de trabalho, não considerariam fronteiras entre o seio familiar e a rua.

[2] Caudilhismo é o exercício do poder político caracterizado pelo agrupamento de uma comunidade em torno do caudilho. Em geral, caudilhos são lideranças políticas carismáticas ligadas a sectores tradicionais da sociedade (como militares e grandes fazendeiros) e que baseiam seu poder no seu carisma. O caudilhismo conhecido também como caudilhamento, é uma estrutura de governo estabelecido e comandado por um indivíduo caudilho. Na maioria dos casos, esses líderes estão diretamente relacionados aos interesses tradicionais oligárquicos ligados à agricultura.

[3] O conceito de homem cordial é relevante para entendimento sobre a origem de classe, raça, gênero, classe social e origem geográfica contribuem de forma significativa para uma análise do cientista social, particularmente, sobre o objeto de seu estudo. Enfim, após mais de três séculos de escravidão que não existissem marcas visíveis na organização social que a substituiu, principalmente, se considerarmos que a duração desta representa aproximadamente um terço da duração daquela. Diante das consequências econômicas, sociais e culturais de tão longevo regime, a forma como se deu a transição para o trabalho assalariado contribuiu para cristalizar o abismo entre brancos e negros. Seja do ponto de vista jurídico, onde todos passaram a ser iguais perante a lei, a partir da abolição da escravidão em 1988, as condições de trabalho, acesso a moradia, a terra, a educação, a participação social, política e até o direito a manifestações culturais e ao lazer dos brancos foram diferentes das oferecidas ou permitidas (ou toleradas) aos negros.

[4] Raízes do Brasil teve edição italiana em 1954, mexicana em 1955, japonesa em 1976, alemã em 1995, francesa em 1998, norte-americana em 2012 e albanesa também em 2012. Negando ao brasileiro a qualidade, a da polidez, o que Sérgio Buarque de Holanda pretende mais uma vez enfatizar é a prevalência na nossa cultura das relações de fundo emotivo enraizadas no coração. Ora, ele nitidamente identifica nessa nossa característica um traço negativo que precisaria ser superado pela ordem social em formação naquele período, aludo à época em que o livro foi escrito, para que no Brasil efetivamente se realizasse uma democracia moderna, isto é, baseada no império das relações legais, que como tal suprimem os valores oriundos do culto da personalidade e do homem cordial. Em suma, a ordem legal na qual passariam a dominar relações legais baseadas em princípios universais e abstratos.

[5] Félix Rubén García Sarmiento conhecido como Rubén Dario (1867-1916) foi poeta nicaraguense, iniciador e máximo representante do modernismo literário em língua espanhola. Possivelmente foi o porta que teve maior e mais duradoura influência na poesia do século XX, era conhecido e chamado de príncipe das las letras castellanas.

[6] A cordialidade tem sido associada, seja para o bem, seja para o mal, à brasilidade. Enquanto para alguns esta representa traço positivo e, para outros, esta é responsável pelo atraso do país. O crítico Antonio Cândido parece ter alcançado singular síntese pessoal, fundindo a cordialidade brasileira, a polidez inglesa e o engajamento francês. Aliás, Antonio Cândido desenvolveu um estilo pessoal de crítico, infelizmente, não teve seguidores e de docência universitária, o que mistura os melhores ingredientes da cordialidade e da polidez, minorando as respectivas desvantagens e realçando as vantagens.

[7]  Por muitos a mestiçagem foi encarada como indesejável principalmente no debate da questão racial e da formação do povo brasileiro ao final do século XIX e começo do século XX e, Nina Rodrigues negava a mistura de raças por considerar que cada uma das raças estava em certo grau de desenvolvimento e evolução, que conferia uma capacidade intelectual distinta a cada uma destas. Para Nina Rodrigues, uma nação de mestiços não poderia ser estável porque os mestiços são uma anarquia no sangue, nas ideias, nos sentimentos, abrigando dentro de si tendências contrárias que estão em luta constante e, com tendência, nesta luta, de que as características da raça inferior e primitiva vençam. Já Silvio Romero considerava que da fusão e integração das raças e culturas surgiria o mulato, tipo caracteristicamente nacional. Mas o predomínio racial e cultural seria da raça e da cultura brancas, devido à extinção do tráfico negreiro, à dizimação dos índios, e à imigração branca/europeia. Assim, a miscigenação serviria, antes de tudo, ao branqueamento da população e ao predomínio do branco no tipo caracteristicamente nacional.

[8] Os portugueses imitaram os árabes, os mouros, os maometanos em costumes e valores culturais. A concepção maometana da escravidão, como sistema doméstico ligado à organização da família, inclusive às atividades domésticas, sem ser decisivamente dominada por um propósito econômico industrial, foi um dos valores que os portugueses aplicaram à colonização predominantemente, mas não exclusivamente cristã, do Brasil.

[9] Já dizia Tom Jobim: "O Brasil não é para principiantes". Infelizmente, o homem cordial ainda permanece muito vivo na cultura brasileira e, seus ambivalentes valores reforçam desigualdades, favorecimento de parentes, amigos e apadrinhados, e uma ordem social calcada no privilégio e, na apropriação indevida do público pelo privado.

[10] O entendimento de que nosso país foi construído e colonizado por povos atrasados conforme reiterou

Sérgio Buarque de Holanda e ao considerar significativo termos sido colonizados por um dos países ibéricos que teriam entrado tardiamente no coro europeu, só se ombreando com os demais à época das grandes navegações. A partir da segunda metade do século XV, coincidindo com o fim do período feudal que na divisão clássica dos períodos da história que vai de 476 com o fim do Império Romano do Ocidente até 1453, com a tomada de Constantinopla, capital do Império Bizantino, pelos turcos otomanos, quando também se iniciavam a Escola de Sagres e as grandes navegações em pleno Renascimento. Portanto, é anacronismo classificar tais países como atrasadas ou adiantadas, vez que nenhuma destas existia efetivamente dentro do conceito de nação que atualmente conhecemos. E, devemos ainda recordar que a primeira revolução burguesa em Portugal, só ocorreu em 1383, quando o  último rei da dinastia de Borgonha, Dom Fernando I, morreu sem deixar herdeiros, abrindo-se assim, feroz disputa pelo trono, com um grupo liderado por Dona Leonor Teles (sua viúva) apoiada pela nobreza tradicional e defensora da união de Portugal ao reino de Castela e, o outro grupo liderado por Dom João (Mestre Avis e irmão ilegítimo de Dom Fernando), com apoio da burguesia emergente, de nobreza militar e das plebes urbanas e rurais. E, Dom João saiu vitorioso do conflito, inaugurando nova dinastia em Portugal, marcada pela consolidação de aliança com a burguesia. Assim, a noção de homem cordial ampara e defende o pensamento oligárquico brasileiro o que foi melhor definito pelas teses Gilberto Freyre.

[11] Cassiano Ricardo se opusera ao uso do termo “cordial” porque ele seria demasiado formal e protocolar, quando o “capital sentimento” do brasileiro seria a bondade ou mesmo certa “técnica de bondade”. Não nos surpreende que alguém pudesse associar o capital de sentimento e bondade a toda uma população, pois a conexão fazia parte da retórica de um defensor letrado do Estado Novo (Feldman, no livro já citado, mostrará que Almir de Andrade, em Força, Cultura, Liberdade, de 1940, voltará à cordialidade como princípio fundador do Estado Novo2). Cordialidade ou bondade, o que seria próprio do brasileiro?!

[12] Jessé Souza rompe com autores consagrados para explicar nossas relações sociais e o mais importante: como transcendê-las. Ao longo da narrativa, somos confrontados a dois grandes nomes da literatura brasileira Sérgio Buarque de Hollanda, por Raízes do Brasil (1936) e Gilberto Freyre por Casa-Grande e Senzala (1933) – alguns dos livros mais importantes e influentes no século XX, responsáveis pelo pensamento social brasileiro e por reforçar esses mitos. Jessé Souza é enfático e sem meias palavras ao afirmar que as raízes da desigualdade brasileira não estão na herança de um Estado corrupto, mas na escravidão.

Sobre a autora
Gisele Leite

Gisele Leite, professora universitária há quatro décadas. Mestre e Doutora em Direito. Mestre em Filosofia. Pesquisadora-Chefe do Instituto Nacional de Pesquisas Jurídicas. Possui 29 obras jurídicas publicadas. Articulista e colunista dos sites e das revistas jurídicas como Jurid, Portal Investidura, Lex Magister, Revista Síntese, Revista Jures, JusBrasil e Jus.com.br, Editora Plenum e Ucho.Info.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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