Nas relações contratuais pautadas na boa fé ambas as partes sempre fecham o negócio buscando o cumprimento das obrigações para extinção do contrato da forma como acordado. Porém, alguns fatores externos podem ser responsáveis por colocar as obrigações das partes em um desnível contratual, fazendo surgir a velha discussão entre a obrigatoriedade dos contratos e a possibilidade de revisão contratual.
Quando se fala em princípio da obrigatoriedade dos contratos, lembramos do termo latim pacta sunt servanda, que para muitos se traduz em “o contrato faz lei entre as partes”. Por este princípio, temos que as relações contratuais legítimas devem ser cumpridas, sendo vedada qualquer tipo de revisão no curso da relação. Em princípio, o pacta sunt servanda fora interpretado como uma norma absoluta nas relações contratuais, não havendo qualquer brecha para discussão de revisão. Como o direito não é uma área exata e não é capaz de abarcar todas as situações da vida, a visão absoluta da obrigatoriedade dos contratos passou a ser questionada.
A mitigação do pacta sunt servanda abriu margem para as revisões contratuais. Os contratos não deixaram de fazer lei entre as partes, mas passaram a ser objeto de revisão quando identificadas situações externas que modificavam as obrigações, ou quando respaldados em cláusulas abusivas, principalmente na relação de consumo.
Na relação entre particulares respaldada no Código Civil, podemos destacar abertura à revisão contratual nos artigos 421 e 423:
Art. 421. A liberdade contratual será exercida nos limites da função social do contrato. (Redação dada pela Lei nº 13.874, de 2019)
Parágrafo único. Nas relações contratuais privadas, prevalecerão o princípio da intervenção mínima e a excepcionalidade da revisão contratual. (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)
Art. 423. Quando houver no contrato de adesão cláusulas ambíguas ou contraditórias, dever-se-á adotar a interpretação mais favorável ao aderente.
Ao citar cláusulas ambíguas ou contraditórias, o art. 423 deixa claro que há possibilidade de revisão contratual simplesmente para fins de interpretação do próprio contrato, ou seja, independentemente de fatores externos. Mas e quando um fator externo interfere nas obrigações, há como resolver a questão? A resposta é sim, e está nos artigos 478, 479 e 480 do Código Civil:
Art. 478. Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato. Os efeitos da sentença que a decretar retroagirão à data da citação.
Art. 479. A resolução poderá ser evitada, oferecendo-se o réu a modificar eqüitativamente as condições do contrato.
Art. 480. Se no contrato as obrigações couberem a apenas uma das partes, poderá ela pleitear que a sua prestação seja reduzida, ou alterado o modo de executá-la, a fim de evitar a onerosidade excessiva.
A utilização dos normativos acima citados é conhecida no meio jurídico como a teoria da imprevisão, baseada nos seguintes elementos: contratos de execução continuada ou diferida; prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa; em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis; gerando extrema vantagem para a outra parte.
Ainda no mesmo sentido, o Código de Defesa do Consumidor:
Art. 51. São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que:
(...)
IV - estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a eqüidade;
§ 1º Presume-se exagerada, entre outros casos, a vantagem que:
I - ofende os princípios fundamentais do sistema jurídico a que pertence;
II - restringe direitos ou obrigações fundamentais inerentes à natureza do contrato, de tal modo a ameaçar seu objeto ou equilíbrio contratual;
III - se mostra excessivamente onerosa para o consumidor, considerando-se a natureza e conteúdo do contrato, o interesse das partes e outras circunstâncias peculiares ao caso.
Este foi o entendimento adotado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo ao determinar a revisão de um contrato de financiamento imobiliário que dispunha sobre a correção das parcelas pelo IGP-M. Segundo alegou a autora da ação, honrou com o pagamento das parcelas do financiamento por 8 anos ininterruptos, porém, em razão do aumento brusco do IGP-M ocasionado pela crise econômica global decorrente da COVID-19, sua prestação chegou a um valor superior ao rendimento mensal que possui.
Ao julgar o caso, a Desembargadora Maria Lúcia Pizzotti, relatora do recurso de apelação, destacou o princípio da força obrigatória dos contratos, mas relativizou o mesmo pela teoria da imprevisão1:
Nos termos do art. 478 do Código Civil, a Teoria da Imprevisão, adotada nas relações e contratos paritários, busca equilibrar as relações jurídicas, afetadas por situações extraordinárias e imprevisíveis. Dessa forma, com base nos princípios da conservação dos contratos, do equilíbrio econômico, é possível alterar ainda que temporariamente as obrigações das partes.
Importante lembrar que, não se olvida esta Relatora que o princípio da força obrigatória dos contratos está insculpido no valor jurídico da promessa e na confiança legítima, situação essa que somente permitiria uma mínima intervenção judicial com o fito corretivo de modo a preservar a manutenção do contrato.
Desse modo, com relação ao índice de reajuste a ser aplicado, mormente neste período excepcional, ao que parece, não se mostra adequado que o fator de reajuste mensal fique atrelado à variação do dólar, que atualmente, está totalmente fora de parâmetro, ou seja, aumentando muito, por conta da crise geral e mundial que a Pandemia está causando na economia.
Diante desse cenário é razoável, em prol do princípio do equilíbrio contratual e da viabilidade de manutenção do contrato, considerando-se, inclusive, a função social dos contratos - que abarcam o giro da economia, a manutenção dos empregos e o cumprimento dos contratos para segurança jurídica dos mesmos - que se adeque a obrigação contratual à realidade atual e excepcional, revendo meu posicionamento exarado no julgamento do recurso nº 2032724-91.2021.8.26.0000, entendo ser o caso de substituir o índice de reajuste (IGPM), portanto, pelo IPCA, mais condizente com a situação atual no Brasil, como forma de composição do poder de compra da moeda.
Mesmo que a correção monetária não implique ganho real, apenas a recomposição do capital e do poder de compra, o fator externo – pandemia – afetou diretamente a obrigação de pagar do comprador, tornando a prestação manifestamente onerosa com vantagem excessiva para o vendendo na medida em que o índice não refletia a realidade da inflação do país.
O que é importante destacar deste julgado é que a revisão contratual não veio para desfigurar a vontade das partes ao momento da contratação, mas simplesmente para equilibrar as obrigações e manter justa a relação contratual, conforme destacou a relatora.
1 TJSP; Apelação Cível 1000855-38.2021.8.26.0450; Relator (a): Maria Lúcia Pizzotti; Órgão Julgador: 30ª Câmara de Direito Privado; Foro de Piracaia - 2ª Vara; Data do Julgamento: 13/10/2021; Data de Registro: 13/10/2021