Compliance e Direito Administrativo: algumas reflexões iniciais

19/10/2021 às 19:52
Leia nesta página:

Considerando a submissão da Administração Pública aos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, entre outros, o compliance público é realmente necessário? O artigo pretende trazer algumas reflexões sobre o assunto.

O Direito Administrativo desenvolvido na França e difundido pela Europa continental e América Latina, não foi absorvido pelo common law. Parte dessa não recepção, notadamente pelo ordenamento jurídico do Reino Unido e pelos Estados Unidos, pode ser observada nos estudos de Albert Venn Dicey, jurista e teórico constitucional inglês, que considerou o Direito Administrativo de origem francesa incompatível com o sistema legal inglês.[1]

Na sua obra intitulada An introduction to the study of the law of the constitution, de 1885, o teórico dedica um capítulo ao Direito Administrativo (Chapter XII Rule of law compared with droit administratif). Logo, na abertura do capítulo, o autor afirma o seu posicionamento, ao escrever que em diversos países da Europa continental, especialmente na França, são vistos um esquema de leis administrativas, conhecido pelos franceses como droit administratif, com ideias estranhas às noções fundamentais do common law e do rule of law desenvolvidas no Reino Unido.

Segundo o autor, a oposição de ideias fica mais aparente, ao menos naquele período, na proteção concedida aos agentes estatais, que, enquanto agem em cumprimento de ordens oficiais, ou no cumprimento de funções oficiais, que mesmo variando na França com o passar do tempo, difere do regime aos quais os servidores da Coroa estão subordinados.[2] Criticou-se também a existência da jurisdição administrativa do direito francês, mas criou-se no common law um Direito Administrativo posto pelas agências reguladoras, e outorgou-se aos órgãos administrativos função quase judicial

Essa posição, primeiramente defendida por Albert Venn Dicey, persistiu por muito tempo entre ingleses e estadunidenses, que submetiam à Administração Pública o direito comum, ou seja, o mesmo regime jurídico dos particulares.[3] Essa sujeição da Administração Pública às normas aplicáveis aos particulares guarda simetria com o liberalismo, ao passo que a submissão ao mesmo regime tende a afastar prerrogativas e privilégios exorbitantes, pois prevalece a ideia de horizontalidade nas relações entre particulares e o Poder Público. Convém registrar que a inexistência de um regime jurídico especial da Administração Pública não afasta a sua submissão ao Direito.

Outro registro importante é alertar que, com o tempo, profissionais e estudiosos desses dois países foram percebendo a necessidade da construção de um regime jurídico específico para as relações jurídico-administrativas. Ressalta-se que o Direito Administrativo que vem sendo edificado vagarosamente nesses países não é o mesmo daquele originado na França e visto na América Latina e na Europa continental.

Voltando ao cenário de um direito comum, a opção de uma Administração Pública pautada por um modelo de gestão originária no setor privado causa menos estranheza, pois como é regida pelo direito comum, não apresenta características jurídicas próprias suficientes para submetê-la a um modelo de próprio de gestão. Por isso, a adoção do modelo gerencial em países como Inglaterra e Estados Unidos, ao invés do modelo burocrático, é menos estranha do que em países com Direito Administrativo de procedência francesa. Inclusive, o debate sobre a reforma administrativa, com a “superação” do modelo burocrático pelo modelo gerencial, não é pautado, pois este segundo modelo é considerado o modelo adequado. Nesse quadrante, a ideia de compliance para se referir à conduta de respeitar as normas vigentes é perfeitamente compreensível, não soando conflitante o sentido jurídico de compliance com o sentido técnico.

No Brasil, a realidade é outra. Mesmo que fortemente influenciado pelo direito francês e outros direitos de base romanística, como o italiano, o português, o espanhol e o alemão, o Direito Administrativo brasileiro também foi influenciado pelo sistema common law, sobretudo o estadunidense, que trouxe a inspiração do sistema de unidade de jurisdição, da jurisprudência como fonte do direito e da sujeição da Administração Pública ao controle jurisdicional.

Ao analisar a evolução do Direito Administrativo no Brasil Maria Sylvia Zanella Di Pietro, conclui que se caminhou no seguinte sentido, “trabalho da doutrina (fortemente inspirada no direito francês), acolhido pela jurisprudência e consagrado no direito positivo. Logo, tem-se doutrina, jurisprudência e direito positivo. Esse foi o sentido da evolução”. Do Direito Positivo veio a unidade da jurisdição e o princípio da legalidade, e do trabalho da doutrina, baseado no direito europeu continental, os tribunais foram aceitando e aplicando teorias e princípios não consagrados no Direito Positivo.[4]

Ao firmar o princípio da legalidade, de igual modo como ocorre nos países vizinhos, na Espanha e em Portugal, o Direito Administrativo brasileiro positivou teorias e princípios que no direito francês se originaram na jurisprudência. Pode-se dizer, assim, o Brasil está distante do direito francês e do common law, quando se coloca a lei como principal fonte do direito, ao mesmo tempo em que “colocamos uma distância grande entre o que está na lei e o que se aplica na prática, pelo afã de copiar modelos estrangeiros nem sempre adaptáveis ao direito positivo brasileiro, em especial a Constituição”.[5]

Nesse sentido, vigora a questão de saber por que o compliance seria necessário na Administração Pública, pois a ideia de compliance como cumprimento normativo vista no common law não é nenhuma novidade para o Direito Administrativo brasileiro, que com a Constituição Federal de 1998, submete a Administração Pública aos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, eficácia, eficiência, entre outros.

Ainda, com a Constituição Federal de 1988, foram adotados princípios próprios do Estado Democrático de Direito, que pressupõe, dentre outros elementos, um entendimento menos estrito do princípio da legalidade e a participação da sociedade na gestão e no controle da Administração Pública.

A compreensão de compliance que deve ser proposta para Administração Pública direta, em alinhamento ao regime jurídico ao qual está submetida, afasta-se, sem dúvidas, daquela elaborada para o sistema legal inglês e estadunidense. Então, se for analisado o objetivo da implementação de um sistema de compliance na Administração Pública percebe-se tão somente o cumprimento de normas e que não se está falando de algo novo.

Diante dessa realidade, o compliance precisa ser visto como um meio de implementar elementos e mecanismos concretos para consolidar os princípios aos quais a Administração Pública deve observar na busca pelo bem comum. No recorte desta pesquisa, vê-se que no desenvolvimento de suas funções os agentes públicos enfrentam dilemas éticos que vão além do estrito cumprimento normativo, neste ponto a adoção de um sistema de compliance tem muito a contribuir. Até porque, a noção de ética pública implica a submissão ao interesse público, e com isso relaciona-se à legalidade, eficiência, eficácia e probidade dos agentes públicos em suas ações.

A natureza, objeto e metodologia do compliance transpõe o puro cumprimento normativo, para introduzir aspectos éticos na gestão pública, se apresenta, assim, como uma ferramenta de melhora da gestão pública, sobretudo no reforço dos marcos de ética pública. Pode-se afirmar ainda que se trata da utilização de todas as ferramentas à disposição da Administração Pública para a prevenção e o combate de disfunções éticas, como a corrupção, de modo diretamente relacionado com o direito a uma boa administração.

Na Administração Pública, por sua vez, o compliance demanda uma transformação organizacional, comportamental e cultural, de maneira que os agentes e órgãos públicos desenhem práticas, normas e rotinas administrativas que busquem o efetivo aprimoramento da gestão pública na perspectiva da ética pública, bem como maior eficiência no trato da coisa pública, mediante a transparência e abertura de canais de comunicação com a sociedade; construção de políticas de integridade; responsabilização das ilicitudes; aperfeiçoamento da gestão de políticas públicas, dentre outros.[6]

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

De um lado estão as percepções desse ambiente organizacional que permitirão aos agentes públicos conhecer os comportamentos e atitudes essenciais que são esperados pelo órgão público e, por outro, uma gestão pública alinhada à ética, permite que esses agentes saibam quais os problemas éticos que realmente são enfrentados e que tipo de padrões morais são utilizados para resolver esses dilemas.

Não se desconsidera, como dito no primeiro capítulo, que as ponderações éticas se inserem na esfera individual, e que cada ser humano traz consigo um “código” pessoal de valores éticos. No entanto, a realização e a defesa do interesse público devem sempre orientar o exercício de suas atividades públicas. Desse modo, o caráter pessoal dessas reflexões éticas não deve ser encarado como empecilho para a formação de políticas de integridade institucional ou para que aqueles que se relacionem com a Administração Pública sejam obrigados a observar essas políticas.

Ainda, há quem diga que somente quando a política entender que a ética é “rentável institucionalmente”,[7] ou melhor dizendo, politicamente, é que será possível ver maior empenho no fomento de políticas de integridade nos entes públicos, afirmação que não parece ser tão deslocada da realidade.

Vê-se então, que no Direito Público a preocupação com temas como mecanismos de controle, atuação racional e prevenção de conflitos de interesses, não é uma novidade, pois estão associados à noção de interesse público e aos princípios como moralidade, impessoalidade, eficiência e publicidade. O que tem de inovador no compliance é a transposição de preceitos éticos do campo teórico, dominado pela abstração, para o cotidiano dos agentes públicos, ou seja, para os comportamentos práticos. Credita-se a esta transposição a possibilidade de construção de uma cultura comportamental de integridade pública.[8] Adota-se também um modelo de gestão pautado pela prevenção, algo pouco usual na gestão pública brasileira.

 


[1] MARTINS, Ricardo Marcondes. Compliance, administração pública e neocolonialismo. In: DAL POZZO, Augusto Neves; MARTINS, Ricardo Marcondes (Org.). Compliance no Direito Administrativo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2020, p. 30.

[2] DICEY, Albert Venn. Introduction to the study of the law of the constitution. Indianapolis: LibertyClassics, 1942, p. 213-267.

[3] Segundo James Garner, o próprio Albert Venn Dicey se convenceu, após as explicações de Mr. Jèze e informações de autores franceses como Tocqueville e Vivien, que a sua concepção de Direito Administrativo estava equivocada. GORNES, James W. Garner.  La conception anglo-américaine du droit administratif. In: HAURIOU, Maurice. Mélanges Maurice Hauriou. Paris, Libraire Sirey, 1929. p. 338.

[4] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Inovações no Direito Administrativo brasileiro. Revista Opinião Jurídica, v. 3, n. 5, 2005, p. 207.

[5] Ibid., p. 208-209.

[6] CABRAL, Flávio Garcia. O papel do tribunal de Contas da União (TCU) para o compliance. In: POZZO, Augusto Neves Dal; MARTINS, Ricardo Marcondes (Org.). Compliance no Direito Administrativo. São Paulo: Thomson Reuters Revista dos Tribunais, 2020, p. 340-341.

[7] CORTINA, Adela. Las tres edades de la ética empresarial. In: CORTINA, Adela. Construir confianza: ética de la empresa en la sociedad de la información y de las comunicaciones. Madrid: Trotta, 2003, p. 29.

[8] CABRAL, Flávio Garcia. O papel do tribunal de Contas da União (TCU) para o compliance. In: POZZO, Augusto Neves Dal; MARTINS, Ricardo Marcondes (Coord.). Compliance no Direito Administrativo. São Paulo: Thomson Reuters Revista dos Tribunais, 2020, p. 340-341.

Sobre o autor
José Carlos Loitey Bergamini

Advogado. Doutorando e Mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina. Especialista em Direito Administrativo, Direito Penal e Processual Penal (Univali). Compliance Gerencial (FGV/SP). Secretário da Comissão de Direito Administrativo OAB/SC. Membro da Comissão de Compliance OAB/SC Professor. Lattes: http://lattes.cnpq.br/3681230383995215

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Publique seus artigos