Processo penal

22/10/2021 às 10:28
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PROCESSO PENAL E O DIREITO DE PUNIR[2]

1.1. Conceito de processo penal

Conforme ensinamento de Cintra, Grinover e Dinamarco, chama-se direito processual o conjunto de normas e princípios que regem (...) o exercício conjugado da Jurisdição pelo Estado-Juiz, da ação pelo demandante e da defesa pelo demandado. Trazendo a definição ao campo que particularmente nos interessa, podemos afirmar que: Direito Processual Penal é o conjunto de princípios e normas que disciplinam a composição das lides penais, por meio da aplicação do Direito Penal objetivo. Na definição de José Frederico Marques, é o conjunto de princípios e normas que regulam a aplicação jurisdicional do Direito Penal, bem como as atividades persecutórias da Polícia Judiciária, e a estruturação dos órgãos da função jurisdicional e respectivos auxiliares.

1.2. O processo penal e o direito de punir

O Estado, única entidade dotada de poder soberano, é o titular exclusivo do direito de punir (para alguns, poder-dever de punir). Mesmo no caso da ação penal exclusivamente privada, o Estado somente delega ao ofendido a legitimidade para dar início ao processo, isto é, confere-lhe o jus persequendi in judicio[3], conservando consigo a exclusividade do jus puniendi[4].

Esse direito de punir (ou poder-dever de punir), titularizado pelo Estado, é genérico e impessoal porque não se dirige especificamente contra esta ou aquela pessoa, mas destina-se à coletividade como um todo. Seria, aliás, de todo inconstitucional a criação de uma regra, unicamente, para autorizar a punição de determinada pessoa.

Trata-se, portanto, de um poder abstrato de punir qualquer um que venha a praticar fato definido como infração penal. No momento em que é cometida uma infração, esse poder, até então genérico, concretiza-se, transformando-se em uma pretensão individualizada, dirigida especificamente contra o transgressor. O Estado, que tinha um poder abstrato, genérico e impessoal, passa a ter uma pretensão concreta de punir determinada pessoa.

Surge, então, um conflito de interesses, no qual o Estado tem a pretensão de punir o infrator, enquanto este, por imperativo constitucional, oferecerá resistência a essa pretensão, exercitando suas defesas técnica e pessoal. Esse conflito caracteriza a lide penal[5], que será solucionada por meio da atuação jurisdicional.

Tal atuação é a tarefa por que o Estado, substituindo as partes em litígio[6], através de seus órgãos jurisdicionais, põe fim ao conflito de interesses, declarando a vontade do ordenamento jurídico ao caso concreto. Assim, o Estado-Juiz, no caso da lide penal, deverá dizer se o direito de punir procede ou não, e, no primeiro caso, em que intensidade pode ser satisfeito.

É imprescindível a prestação jurisdicional para a solução do conflito de interesses na órbita penal, não se admitindo a aplicação de pena por meio da via administrativa. Até mesmo no caso das infrações penais de menor potencial ofensivo, em que se admite a transação penal (jurisdição consensual), há necessidade da homologação em juízo.

Trata-se, pois, de jurisdição necessária, já que o ordenamento jurídico não confere aos titulares dos interesses em conflito a possibilidade, outorgada pelo direito privado, de aplicar espontaneamente o direito material[7] na solução das controvérsias oriundas das relações da vida. Nesse ponto entra o processo penal. A jurisdição só pode atuar e resolver o conflito por meio do processo[8], que funciona, assim, como garantia de sua legítima atuação, isto é, como instrumento imprescindível ao seu exercício. Sem o processo, não haveria como o Estado satisfazer sua pretensão de punir, nem como o Estado-Jurisdição aplicá-la ou negá-la.

1.3. Conteúdo do processo penal

A finalidade do processo é propiciar a adequada solução jurisdicional do conflito de interesses entre o Estado-Administração e o infrator, através de uma sequência de atos que compreendam a formulação da acusação, a produção das provas, o exercício da defesa e o julgamento da lide. Para a consecução de seus fins, o processo compreende:

(i) a relação jurídica processual, que se forma entre os sujeitos do processo (juiz e partes), pela qual estes titularizam inúmeras posições jurídicas, expressáveis em direitos, obrigações, faculdades, ônus e sujeições processuais.

(ii) o procedimento, consistente em uma sequência ordenada de atos interdependentes, direcionados à preparação de um provimento final; é a sequência de atos procedimentais até a sentença. O procedimento é o modo pelo qual são ordenados os atos do processo, até a sentença. De acordo com o art. 394 do CPP[9], o procedimento será comum ou especial.

O procedimento comum divide-se em:

(i) ordinário: crime cuja sanção máxima cominada for igual ou superior a quatro anos de pena privativa de liberdade, salvo se não se submeter a procedimento especial;

(ii) sumário: crime cuja sanção máxima cominada seja inferior a quatro anos de pena privativa de liberdade, salvo se não se submeter a procedimento especial;

(iii) sumaríssimo: infrações penais de menor potencial ofensivo, na forma da Lei n. 9.099/95, ainda que haja previsão de procedimento especial. Enquadram-se nesse conceito as contravenções penais e os crimes cuja pena máxima não exceda a dois anos (vide art. 61 da Lei n. 9.099/95)[10].

Dessa forma, a distinção entre os procedimentos ordinário e sumário dar-se-á em função da pena máxima cominada à infração penal e não mais em virtude de esta ser apenada com reclusão ou detenção. Na prática, como se verá mais adiante, com a reforma processual, poucas diferenças restaram entre os ritos ordinário e sumário, pois ambos passaram a primar pelo princípio da celeridade processual (cf. art. 8º da Convenção Americana sobre Direitos Humanos[11] Decreto n. 678, 1992, e art. 5º, LXXVIII , da CF[12]), bem como pelo aprimoramento da colheita da prova, de onde surgiram alguns reflexos:

  1. concentração dos atos processuais em audiência única;

  2. imediatidade;

  3. identidade física do juiz.

Finalmente, nos processos de competência do Tribunal do Júri, o procedimento observará as disposições especiais estabelecidas nos arts. 406 a 497 do CPP.

A relação jurídica processual é aquela que se estabelece entre os chamados sujeitos processuais, atribuindo a cada um direitos, obrigações, faculdades, ônus e sujeições. Na relação processual aplicam-se os chamados princípios constitucionais do processo, garantindo às partes direitos como o contraditório, a publicidade, o de ser julgado pelo juiz natural da causa, a ampla defesa (no caso do acusado) etc.

RESUMO DO PROFESSOR

- direito de punir (ou jus puniendi) tem como fundamento a necessidade de defender o depósito do bem comum das usurpações particulares

- surge com a concentração do poder político nas mãos de um soberano

- as penas como garantia de segurança e maior liberdade aos súditos

- necessidade de punir com pena criminal os infratores das normas protetoras dos bens jurídicos mais caros ao indivíduo e à sociedade

FORMAS DE SOLUÇÃO DE CONFLITO[13]

2.1. Autotutela

A autotutela remonta aos primórdios da civilização e caracteriza-se, basicamente, pelo uso da força bruta para satisfação de interesses. A própria repressão aos atos criminosos se fazia ora em regime de vingança ou de justiça privada, ora pelo Estado, sem a interposição de órgãos imparciais. Os dois traços característicos da autotutela são, portanto:

  1. a ausência de juiz imparcial

  2. a imposição da decisão por uma das partes à outra.

Atualmente, existe em nosso ordenamento jurídico apenas como exceção (v. g., prisão em flagrante feita por qualquer pessoa do povo art. 302 do CPP; estado de necessidade e legítima defesa arts. 24 e 25 do CP).

Características da Autotutela:

- Poder punitivo fundado na vingança privada

- Disputatio (luta, ordálias[14], combate ou duelo)

- Verdade metafísica ou ontologia[15]

- Vítima como agente da vingança

- Baseado em dogmas e costumes

- Proibida em nosso ordenamento art. 345 CP[16].

- Exceção em caso de legítima defesa, estado de necessidade e estrito cumprimento do dever legal art. 23 CP.

O exercício da autotutela fora das hipóteses legalmente admitidas configura ilícitos penais, tipificados no art. 345 do Código Penal (quando praticado por particular) e na Lei n. 4.898/65 (quando por agente público).

2.2. Autocomposição

A autocomposição ocorre quando uma das partes integrantes do conflito abre mão do seu interesse em favor da outra, ou quando ambas renunciam à parcela de suas pretensões para solucionar pacificamente suas divergências. São três as formas de autocomposição:

  1. desistência (renúncia à pretensão)

  2. submissão (renúncia à resistência oferecida à pretensão)

  3. transação (concessões recíprocas).

A Constituição Federal, em seu art. 98, I[17], nas hipóteses previstas em lei, permite a transação para infrações penais de menor potencial ofensivo.

Ao contrário das formas de autotutela, a autocomposição é, em regra, considerada legítimo meio alternativo de solução dos conflitos, estimulado pelo direito mediante atividades consistentes na conciliação, desde que não verse o litígio sobre direitos indisponíveis.

Características da Autocomposição:

- Poder punitivo como expressão da racionalidade estatal

- inquisitio (investigação e técnica)[18]

- Verdade processual[19]

- Confisco da vítima[20]

- Legalidade e imparcialidade

- Direito de ação art. 5. XXXV, CF[21]

- Ação penal CPP art. 24 e segs., e CP art. 100 e segs.

Dada a indisponibilidade dos interesses penais, a transação, forma de autocomposição, não era admitida em nosso sistema jurídico. A situação alterou-se no que concerne às infrações de menor potencial ofensivo, esfera em que, agora, admite-se esta forma alternativa de pacificação social (CF, art. 98, I , regulamentado pelo art. 76 da Lei n. 9.099/95)[22].

RESUMO DO PROFESSOR

- Sistema misto: atualmente não existem sistemas acusatórios ou inquisitórios puros. Ora o processo é prevalentemente acusatório, ora apresenta maiores características inquisitoriais, como no caso do sistema processual brasileiro.

- Situações inquisitóriais no sistema brasileiro ART. 127, 156, I E II, 196, 209, 242, 383 E 385 CPP.

SISTEMA INQUISITÓRIO

SISTEMA ACUSATÓRIO

- UNIDADE DAS FUNÇÕES DE ACUSAR, DEFENDER E JULGAR

- SEPARAÇÃO DAS FUNÇÕES DE JULGAR, ACUSAR E DEFENDER

- O RÉU NÃO É PARTE, MAS OBJETO DO PROCESSO

- PROCESSO DE PARTES RÉU COMO SUJEITO DE DIREITOS

- ATUAÇÃO EX OFICIO DO JUIZ

- INFORMADO PELO CONTRADITÓRIO, AMPLA DEFESA E PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA

- INEXISTÊNCIA DE CONTRADITÓRIO E DE PUBLICIDADE DOS ATOS

- POSSIBILIDADE DE IMPUGNAR DECISÕES

- PREDOMINOU ATÉ FIM DO SEC. XVIII E O INÍCIO DO SÉC. XIX

- IMPOSSIBILIDADE DE ATUAÇÃO EX OFICIO

HISTÓRIA DO DIREITO PROCESSUAL PENAL NO BRASIL

3.1. Poder punitivo e estado moderno

- Apropriação da racionalidade canônica pelo estado moderno

- Inquisição com técnica de investigação a possibilidade de reconstrução do passado

- malleus maleficarum, o martelo das feiticeiras (1487), como primeiro código penal e processual penal do direito canônico

3.2. Períodos colonial e imperial

- Ordenações afonsinas (1447 a 1521)

- Ordenações manuelinas (1521 a 1606)

- Ordenações filipinas (1609 a 1830)

- Constituição do império (1824) aboliu a tortura, açoites, marcas de ferro e todas as penas cruéis

- Código criminal de 1830 previu a pena de morte

- Código de processo criminal de 1832

- Reformas de 1841 e 1871

3.3. Período republicano

- Decreto 774/90 aboliu as penas de galés, introduziu a detração e a prescrição e reduziu para 30 anos as penas perpétuas

- Decreto 847/90 código penal com regras de processo penal

- Constituição de 1891 aboliu a pena de morte

- Constituições de 1934 e 1937

- Código de processo penal de 1941

RESUMO HISTÓRICO[23]

Apesar do Brasil ter declarado a sua independência, ele herdou de Portugal as normas processuais contidas nas Ordenações Filipinas e em algumas leis extravagantes posteriores decreto de 20 de outubro de 1823, desde que não contrariasse a Soberania Nacional e o Regime Brasileiro. Assim, o Brasil herdou de Portugal as normas processuais das: Ordenações Filipinas (1603), Ordenações Manuelinas (1521) e Ordenações Afonsinas (1456).

Fontes principais das três ordenações: direito romano; direito canônico; leis gerais elaboradas desde o reinado de Afonso II; concordatas celebradas entre os reis de Portugal e autoridades eclesiásticas; Sete Partidas de Castela; antigos costumes nacionais e dos foros locais.

Ordenações Filipinas: Predominância do princípio dispositivo (o processo somente se movimenta mediante o impulso das partes), com fases rigidamente distintas; Direito penal e processual penal admitia o tormento, a tortura, as mutilações, açoites, degredo (ser mandado pra fora do país).

Em virtude deste panorama surgiu a necessidade da Constituição de 1824 estabelecer sobre matéria penal proibindo tortura e penas cruéis, determinando a criação urgente de um Código Criminal baseado na justiça e equidade (adaptação da regra existente à situação concreta, observando-se os critérios de justiça e igualdade). Em 1830 foi sancionado o Código Penal do Império com a consagração do princípio básico da reserva legal (legalidade). Com a criação do Código Penal tornou-se imprescindível a criação do Código de Processo Penal, que foi feito em 1832, inspirado nos modelos inglês (acusatório) e francês (inquisitório), portanto, um sistema misto ou eclético.

Em 1841 através da lei 261, o Código de Processo Criminal foi alterado com o objetivo de aumentar os poderes de polícia.

Em 1850, logo após a elaboração do Código Comercial, o Brasil editou o Regulamento nº 737, o primeiro Código Processual Nacional, que se destinava a regular o processamento das causas comerciais. Nesse meio tempo, as causas civis continuaram a ser reguladas pelas Ordenações e suas alterações.

Em 1871, o Governo incumbiu Joaquim Ribas de reunir as alterações das Ordenações criando um conjunto com toda a legislação relativa ao processo civil.

Em 1876, passou a ter força de lei a Consolidação das Leis do Processo Civil criada por Ribas, que não se limitou a compilar as disposições processuais então vigentes, indo além, reescrevendo-as muitas vezes tal como as interpretava; e, como fonte de várias disposições de sua Consolidação, invocava a autoridade não só de textos romanos, como de autores de nomeada, em lugar de regras legais constantes das Ordenações ou de leis extravagantes.

Em 1890, o Regulamento 737 foi estendido também aos feitos civis.

Com a Constituição de 1891 consagrou-se, a par da dualidade de Justiça - Justiça Federal e Justiças Estaduais - a dualidade de processos, com a divisão do poder de legislar sobre direito processual entre a União Federal e os Estados.

Elaborou-se, portanto de um lado, a legislação federal de processo, cuja consolidação, preparada por José Higino Duarte Pereira, foi aprovada pelo dec. n. 3084, de 05 de novembro de 1898; de outro lado, iniciaram-se aos poucos os trabalhos de preparação dos Códigos de Processo Civil e dos Códigos de Processo Criminal estaduais, na maioria presos ao figurino federal.

Diante do fracasso do sistema de esfacelamento do direito processual em códigos estaduais, a Constituição de 1934 instituiu o processo unitário, atribuindo à União a competência para legislar a respeito. Referida regra foi mantida nas Constituições subsequentes. Somente a Constituição de 1988 deu competência concorrente aos Estados para legislar sobre procedimento em matéria processual (art 24, inc. XI) e a criação, funcionamento e processo do juizado de pequenas causas.

Com a competência da União para legislar sobre processo, prevista na Constituição de 1934, tornou-se necessária a elaboração do Código de Processo Civil e do Código de Processo Penal, tendo o governo organizado comissões de juristas para tal fim. Em 1939, surge o Código de Processo Civil. Em 1941, surge o Código de Processo Penal.

Surgimento de problemas práticos decorrentes da aplicação do CPC e do CPP exigiu a reformulação da lei processual. Em 1973, surge um Novo Código de Processo Civil. O novo Código de Processo Penal, apesar de já ter projeto encontra-se engavetado desde 1983.

Em virtude da grande problematização de se modificar um Código Processual por inteiro, o Brasil tem feito minirreformas na área processual, tanto na esfera criminal quanto na esfera civil buscando a efetividade do processo.

As reformas por que vem passando o direito processual, refletem uma tomada de posição universal cujo propósito é abandonar a preocupação exclusiva com conceitos e formas, para dedicar-se à busca de mecanismos destinados a conferir a tutela jurisdicional o grau de efetividade que dela se espera.

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O processo como meio de solução dos conflitos deve proporcionar, a quem se encontra em situação de vantagem no plano jurídico-substancial, a possibilidade de usufruir concretamente dos efeitos dessa proteção.

Linhas evolutivas do direito processual no Brasil

O processo tradicional vem sendo marcado por profundas alterações metodológicas, passando do plano abstrato ao concreto, do plano nacional ao internacional e do plano individual ao social. Do abstrato ao concreto: as normas processuais buscam hoje a plena satisfação do direito material, ou seja, um processo de resultados (efetividade do processo).

SISTEMAS PENAIS[24]

Sistemas Processuais Penais: Inquisitório, Acusatório e (o Ilusório) Misto

A estrutura do processo penal variou ao longo dos séculos, conforme o predomínio da ideologia punitiva ou libertária. Goldschmidt afirma que a estrutura do processo penal de um país funciona como um termômetro dos elementos democráticos ou autoritários de sua Constituição. Cronologicamente, em linhas gerais, o sistema acusatório predominou até meados do século XII, sendo posteriormente substituído, gradativamente, pelo modelo inquisitório que prevaleceu com plenitude até o final do século XVIII (em alguns países, até parte do século XIX), momento em que os movimentos sociais e políticos levaram a uma nova mudança de rumos.

A doutrina brasileira, majoritariamente, aponta que o sistema brasileiro contemporâneo é misto (predomina o inquisitório na fase pré-processual e o acusatório, na processual).

Ora, afirmar que o sistema é misto é absolutamente insuficiente, é um reducionismo ilusório, até porque não existem mais sistemas puros (são tipos históricos), todos são mistos. A questão é, a partir do reconhecimento de que não existem mais sistemas puros, identificar o princípio informador de cada sistema, para então classificá-lo como inquisitório ou acusatório, pois essa classificação feita a partir do seu núcleo é de extrema relevância.

O estudo dos sistemas processuais demandaria uma longa explanação, que extrapolaria a proposta da presente obra. Destarte, havendo interesse por parte do leitor, sugerimos como leitura complementar nossa obra Fundamentos do Processo Penal, em que tratamos dos Sistemas Processuais Penais com mais profundidade e abrangência.

Antes de analisar a situação do processo penal brasileiro contemporâneo, vejamos sumariamente algumas das características dos sistemas acusatório e inquisitório.

Sistema Processual Inquisitório

O sistema inquisitório, na sua pureza, é um modelo histórico. Até o século XII, predominava o sistema acusatório, não existindo processos sem acusador legítimo e idôneo. As transformações ocorrem ao longo do século XII até o XIV, quando o sistema acusatório vai sendo, paulatinamente, substituído pelo inquisitório.

Originariamente, com relação à prova, imperava o sistema legal de valoração (a chamada tarifa probatória). A sentença não produzia coisa julgada, e o estado de prisão do acusado no transcurso do processo era uma regra geral.

No transcurso do século XIII foi instituído o Tribunal da Inquisição ou Santo Ofício, para reprimir a heresia e tudo que fosse contrário ou que pudesse criar dúvidas acerca dos Mandamentos da Igreja Católica. Inicialmente, eram recrutados os fiéis mais íntegros para que, sob juramento, se comprometessem a comunicar as desordens e manifestações contrárias aos ditames eclesiásticos que tivessem conhecimento. Posteriormente, foram estabelecidas as comissões mistas, encarregadas de investigar e seguir o procedimento.

É da essência do sistema inquisitório a aglutinação de funções na mão do juiz e atribuição de poderes instrutórios ao julgador, senhor soberano do processo. Portanto, não há uma estrutura dialética e tampouco contraditória. Não existe imparcialidade, pois uma mesma pessoa busca a prova (iniciativa e gestão) e decide a partir da prova que ela mesma produziu.

Com a Inquisição, são abolidas a acusação e a publicidade. O juiz-inquisidor atua de ofício e em segredo, assentando por escrito as declarações das testemunhas (cujos nomes são mantidos em sigilo, para que o réu não os descubra). O sistema inquisitório predominou até finais do século XVIII, início do XIX, momento em que a Revolução Francesa, os novos postulados de valorização do homem e os movimentos filosóficos que surgiram com ela repercutiam no processo penal, removendo paulatinamente as notas características do modelo inquisitivo. Coincide com a adoção dos Júris Populares, e se inicia a lenta transição para o sistema misto, que se estende até os dias de hoje.

Em definitivo, o sistema inquisitório foi desacreditado principalmente por incidir em um erro psicológico19: crer que uma mesma pessoa possa exercer funções tão antagônicas como investigar, acusar, defender e julgar. As principais características do sistema inquisitório são:

gestão/iniciativa probatória nas mãos do juiz (figura do juiz-ator e do ativismo judicial = princípio inquisitivo);

ausência de separação das funções de acusar e julgar (aglutinação das funções nas mãos do juiz);

violação do princípio ne procedat iudex ex officio[25], pois o juiz pode atuar de ofício (sem prévia invocação);

juiz parcial;

inexistência de contraditório pleno;

desigualdade de armas e oportunidades.

Sistema Processual Acusatório

Na atualidade e a luz do sistema constitucional vigente pode-se afirmar que a forma acusatória se caracteriza por:

a) clara distinção entre as atividades de acusar e julgar;

b) a iniciativa probatória deve ser das partes (decorrência lógica da distinção entre as atividades);

c) mantém-se o juiz como um terceiro imparcial, alheio a labor de investigação e passivo no que se refere à coleta da prova, tanto de imputação como de descargo;

d) tratamento igualitário das partes (igualdade de oportunidades no processo);

e) procedimento é em regra oral (ou predominantemente);

f) plena publicidade de todo o procedimento (ou de sua maior parte);

g) contraditório e possibilidade de resistência (defesa);

h) ausência de uma tarifa probatória, sustentando-se a sentença pelo livre convencimento motivado do órgão jurisdicional;

i) instituição, atendendo a critérios de segurança jurídica (e social) da coisa julgada;

j) possibilidade de impugnar as decisões e o duplo grau de jurisdição.

É importante destacar que a posição do juiz é fundante da estrutura processual. Quando o sistema aplicado mantém o juiz afastado da iniciativa probatória (da busca de ofício da prova), fortalece-se a estrutura dialética e, acima de tudo, assegura-se a imparcialidade do julgador.

O estudo dos sistemas processuais penais na atualidade tem que ser visto com o olhar da complexidade e não mais com o olhar da Idade Média. Significa dizer que a configuração do sistema processual deve atentar para a garantia da imparcialidade do julgador, a eficácia do contraditório e das demais regras do devido processo penal, tudo isso à luz da Constituição. Assegura a imparcialidade e a tranquilidade psicológica do juiz que irá sentenciar, garantindo o trato digno e respeitoso com o acusado, que deixa de ser um mero objeto para assumir sua posição de autêntica parte passiva do processo penal.

Em última análise, é a separação de funções e, por decorrência, a gestão da prova na mão das partes e não do juiz (juiz-espectador), que cria as condições de possibilidade para que a imparcialidade se efetive. Somente no processo acusatório-democrático, em que o juiz se mantém afastado da esfera de atividade das partes, é que podemos ter a figura do juiz imparcial, fundante da própria estrutura processual.

Não podemos esquecer, ainda, da importância do contraditório para o processo penal e que somente uma estrutura acusatória o proporciona. Como sintetiza CUNHA MARTINS, no processo inquisitório há um desamor pelo contraditório, somente possível no sistema acusatório.

O processo penal acusatório caracteriza-se, portanto, pela clara separação entre juiz e partes, que assim deve se manter ao longo de todo o processo (por isso de nada serve a separação inicial das funções se depois permite-se que o juiz atue de ofício na gestão da prova, determine a prisão de ofício etc.) para garantia da imparcialidade (juiz que vai atrás da prova está contaminado, prejuízo que decorre dos pré-juízos, como veremos no próximo capítulo) e efetivação do contraditório.

A posição do julgador é fundada no ne procedat iudex ex officio, cabendo às partes, portanto, a iniciativa não apenas inicial, mas ao longo de toda a produção da prova.

É absolutamente incompatível com o sistema acusatório (também violando o contraditório e fulminando com a imparcialidade) a prática de atos de caráter probatório ou persecutório por parte do juiz, como, por exemplo, a possibilidade de o juiz decretar a prisão preventiva de ofício (art. 311); a decretação, de ofício, da busca e apreensão (art. 242); a iniciativa probatória a cargo do juiz (art. 156); a condenação do réu sem pedido do Ministério Público, pois isso viola também o Princípio da Correlação (art. 385); e vários outros dispositivos do CPP que atribuem ao juiz um ativismo tipicamente inquisitivo.

Todas essas práticas incompatíveis com o papel do julgador também ferem de morte a imparcialidade, pois a contaminação e os pré-julgamentos feitos por um juiz inquisidor são manifestos. Entendemos que a Constituição demarca o modelo acusatório, pois desenha claramente o núcleo desse sistema ao afirmar que a acusação incumbe ao Ministério Público (art. 129), exigindo a separação das funções de acusar e julgar (e assim deve ser mantido ao longo de todo o processo) e, principalmente, ao definir as regras do devido processo no art. 5º, especialmente na garantia do juiz natural (e imparcial, por elementar), e também inciso LV, ao fincar pé na exigência do contraditório.

Sistema Processual Misto e sua Insuficiência Conceitual

O chamado Sistema Misto nasce com o Código Napoleônico de 1808 e a divisão do processo em duas fases: fase pré-processual e fase processual, sendo a primeira de caráter inquisitório e a segunda acusatória. É a definição geralmente feita do sistema brasileiro (misto), pois muitos entendem que o inquérito é inquisitório e a fase processual acusatória (pois o MP acusa).

É lugar-comum na doutrina processual penal a classificação de sistema misto, com a afirmação de que os sistemas puros seriam modelos históricos sem correspondência com os atuais. Ademais, a divisão do processo penal em duas fases (pré-processual e processual propriamente dita) possibilitaria o predomínio, em geral, da forma inquisitiva na fase preparatória e acusatória na fase processual, desenhando assim o caráter misto.

Muitos ainda estão atrelados à reducionista concepção histórica de que bastaria a mera separação inicial das funções de acusar e julgar para caracterizar o processo acusatório. Esse pensamento tradicional de sistema misto, que é criticado por nós, deve ser revisado porque:

é reducionista, na medida em que atualmente todos os sistemas são mistos, sendo os modelos puros apenas uma referência histórica;

por ser misto, é crucial analisar qual o núcleo fundante para definir o predomínio da estrutura inquisitória ou acusatória, ou seja, se o princípio informador é o inquisitivo (gestão da prova nas mãos do juiz) ou acusatório (gestão da prova nas mãos das partes);

a noção de que a (mera) separação das funções de acusar e julgar seria suficiente e fundante do sistema acusatório é uma concepção reducionista, na medida em que de nada serve a separação inicial das funções se depois se permite que o juiz tenha iniciativa probatória, determine de ofício a coleta de provas (v.g. art. 156), decrete de ofício a prisão preventiva, ou mesmo condene diante do pedido de absolvição do Ministério Público (problemática do art. 385);

a concepção de sistema processual não pode ser pensada de forma desconectada do princípio supremo do processo, que é a imparcialidade, pois existe um imenso prejuízo que decorre dos prejuízos (conforme consolidada jurisprudência do Tribunal Europeu de Direitos Humanos21), isto é, juiz que vai de ofício atrás da prova está contaminado (como explicaremos no próximo capítulo) e não pode julgar, pois ele decide primeiro (quebra da imparcialidade) e depois vai atrás da prova necessária para justificar a decisão já tomada (quebra da concepção de processo como procedimento em contraditório);

também é incompatível com a visão de Fazzalari, na medida em que o ativismo judicial quebra o imprescindível contraditório e o provimento judicial deixa de ser construído em contraditório para ser um mero ato de poder (decisionismo).

O processo tem por finalidade buscar a reconstituição de um fato histórico (o crime sempre é passado, logo, fato histórico), de modo que a gestão da prova é erigida à espinha dorsal do processo penal, estruturando e fundando o sistema a partir de dois princípios informadores, conforme ensina JACINTO COUTINHO:

Princípio dispositivo ou acusatório: funda o sistema acusatório, a gestão da prova está nas mãos das partes (juiz-espectador).

Princípio inquisitivo: a gestão da prova está nas mãos do julgador (juiz-ator [inquisidor]); por isso, ele funda um sistema inquisitório.

Daí estar com plena razão JACINTO COUTINHO quando explica que não há e nem pode haver um princípio misto, o que, por evidente, desconfigura o dito sistema. Para o autor, os sistemas, assim como os paradigmas e os tipos ideais, não podem ser mistos; eles são informados por um princípio unificador. Logo, na essência, o sistema é sempre puro. E explica, na continuação, que o fato de ser misto significa ser, na essência, inquisitório ou acusatório, recebendo a referida adjetivação por conta dos elementos (todos secundários), que de um sistema são emprestados ao outro.

Portanto, é reducionismo pensar que basta ter uma acusação (separação inicial das funções) para constituir-se um processo acusatório. É necessário que se mantenha a separação para que a estrutura não se rompa e, portanto, é decorrência lógica e inafastável que a iniciativa probatória esteja (sempre) nas mãos das partes. Somente isso permite a imparcialidade do juiz.

E, por fim, ninguém nega a imprescindibilidade do contraditório, ainda mais em democracia, e ele somente é possível numa estrutura acusatória na qual o juiz mantenha-se em alheamento e, como decorrência, possa assegurar a igualdade de tratamento e oportunidade às partes. Retomamos a lição de CUNHA MARTINS: no processo inquisitório há um desamor pelo contraditório; já o modelo acusatório constitui uma declaração de amor pelo contraditório.

E o Sistema Processual Penal Brasileiro?

O processo penal brasileiro é ainda classificado, por grande parte da doutrina, como misto, ou seja, inquisitório na primeira fase (inquérito) e acusatório na fase processual.

Não concordamos com tal afirmação. Inicialmente porque, como já apontado, dizer que um sistema é misto é não dizer quase nada sobre ele, pois misto todos são. O ponto crucial é verificar o núcleo, o principio fundante, e aqui está o problema. Outros preferem afirmar que o processo penal brasileiro é acusatório formal, incorrendo no mesmo erro dos defensores do sistema misto. BINDER24, corretamente, afirma que o acusatório formal é o novo nome do sistema inquisitivo que chega até nossos dias.

Pensamos que o processo penal brasileiro é essencialmente inquisitório, ou neoinquisitório se preferirem, para descolar do modelo histórico medieval. Ainda que se diga que o sistema brasileiro é misto, a fase processual não é acusatória, mas inquisitória ou neoinquisitória, na medida em que o princípio informador é o inquisitivo, pois a gestão da prova está nas mãos do juiz.

Com relação à separação das atividades de acusar e julgar, trata-se realmente de uma nota importante na formação do sistema. Contudo, não basta termos uma separação inicial, com o Ministério Público formulando a acusação e depois, ao longo do procedimento, permitir que o juiz assuma um papel ativo na busca da prova ou mesmo na prática de atos tipicamente da parte acusadora, como, por exemplo, permitir que o juiz de ofício converta a prisão em flagrante em preventiva (art. 310), pois isso equivale a prisão decretada de ofício; ou mesmo decrete a prisão preventiva de ofício no curso do processo (o problema não está na fase, mas, sim, no atuar de ofício!), uma busca e apreensão (art. 242), o sequestro (art. 127); ouça testemunhas além das indicadas (art. 209); proceda ao reinterrogatório do réu a qualquer tempo (art. 196); determine diligências de ofício durante a fase processual e até mesmo no curso da investigação preliminar (art. 156, incisos I e II); reconheça agravantes ainda que não tenham sido alegadas (art. 385); condene, ainda que o Ministério Público tenha postulado a absolvição (art. 385), altere a classificação jurídica do fato (art. 383) etc.

Nesse contexto, dispositivos que atribuam ao juiz poderes instrutórios, como o famigerado art. 156, incisos I e II, do CPP, externam a adoção do princípio inquisitivo, que funda um sistema inquisitório, pois representam uma quebra da igualdade, do contraditório, da própria estrutura dialética do processo.

Como decorrência, fulminam a principal garantia da jurisdição, que é a imparcialidade do julgador. Está desenhado um processo inquisitório. A posição do juiz é o ponto nevrálgico da questão, na medida em que ao sistema acusatório lhe corresponde um juiz-espectador, dedicado, sobretudo, à objetiva e imparcial valoração dos fatos e, por isso, mais sábio que experto; o rito inquisitório exige, sem embargo, um juiz-ator, representante do interesse punitivo e, por isso, um enxerido, versado no procedimento e dotado de capacidade de investigação.

Fica evidente a insuficiência de uma separação inicial de atividades se, depois, o juiz assume um papel claramente inquisitorial. O juiz deve manter uma posição de alheamento, afastamento da arena das partes, ao longo de todo o processo.

Todas essas questões giram em torno do tripé sistema acusatório, contraditório e imparcialidade, porque a imparcialidade é garantida pelo modelo acusatório e sacrificada no sistema inquisitório, de modo que somente haverá condições de possibilidade da imparcialidade quando existir, além da separação inicial das funções de acusar e julgar, um afastamento do juiz da atividade investigatória/instrutória. Portanto, pensar no sistema acusatório desconectado do princípio da imparcialidade e do contraditório é incorrer em grave reducionismo.

Precisamos compreender que a Constituição de 1988 define um processo penal acusatório, fundando no contraditório, na ampla defesa, na imparcialidade do juiz e nas demais regras do devido processo penal. Diante dos inúmeros traços inquisitórios do processo penal brasileiro, é necessário fazer uma filtragem constitucional dos dispositivos incompatíveis com o princípio acusatório (como os arts. 156, 385 etc.), pois são substancialmente inconstitucionais. Assumido o problema estrutural do CPP, a luta passa a ser pela acoplagem constitucional e pela filtragem constitucional, expurgando de eficácia todos aqueles dispositivos que, alinhados ao núcleo inquisitório, são incompatíveis com a matriz constitucional acusatória.

RESUMO DO PROFESSOR

PODER PUNITIVO E ESTADO MODERNO

- Apropriação da racionalidade canônica pelo estado moderno

- Inquisição com técnica de investigação a possibilidade de reconstrução do passado

- malleus maleficarum, o martelo das feiticeiras (1487), como primeiro código penal e processual penal do direito canônico

PERÍODOS COLONIAL E IMPERIAL

- Ordenações afonsinas (1447 a 1521)

- Ordenações manuelinas (1521 a 1606)

- Ordenações Filipinas (1609 a 1830)

- Constituição do império (1824) aboliu a tortura, açoites, marcas de ferro e todas as penas cruéis

- Código criminal de 1830 previu a pena de morte

- Código de processo criminal de 1832

- Reformas de 1841 e 1871

PERÍODO REPUBLICANO

- Decreto 774/90 aboliu as penas de galés, introduziu a detração e a prescrição e reduziu para 30 anos as penas perpétuas

- Decreto 847/90 código penal com regras de processo penal

- Constituição de 1891 aboliu a pena de morte

- Constituições de 1934 e 1937

- Código de processo penal de 1941

PRINCIPIOS E GARANTIAS CONSTITUCIONAIS NO PROCESSO PENAL[26]

Mapa Princípios do Processo Penal

5.1. Investidura

A jurisdição só pode ser exercida por quem tenha sido regularmente investido na autoridade de juiz.

5.2. Indelegabilidade

Segue o princípio geral segundo o qual é vedado a qualquer Poder delegar atribuições. A Constituição fixa as atribuições do Poder Judiciário, de modo que nem à lei nem aos próprios membros deste é dado dispor de outra forma, delegando, por conveniência ou critérios próprios, suas funções a outro órgão. Não exercendo a jurisdição em nome próprio, não tem o juiz poder para dela dispor, invertendo os critérios previamente definidos.

À regra existem exceções, v. g., art. 102, I , m[27], da Constituição Federal. A note-se, todavia, que a prática de atos por carta precatória não se insere dentre as exceções.

Impossibilitado de praticar atos processuais fora dos limites da comarca sujeita à sua jurisdição, o juiz deprecante nada mais faz do que solicitar a cooperação daquele realmente competente para fazê-lo, o juiz deprecado. Impossível falar em delegação de um poder que ele próprio (deprecante) não tem, por incompetência.

5.3. Inevitabilidade

A jurisdição impõe-se independente da vontade das partes, que a ela devem sujeitar-se. A situação das partes, quanto ao juiz, na relação processual, é de absoluta sujeição, sendo-lhes impossível evitar que, sobre sua esfera jurídica, se exerça a autoridade jurisdicional.

5.4. Inafastabilidade (ou princípio do controle jurisdicional)

A lei não pode excluir da apreciação do Poder Judiciário qualquer lesão ou ameaça a direito, nem pode o juiz, a pretexto de lacuna ou obscuridade da lei, escusar-se de proferir decisão (CF, art. 5º, XXXV)[28]. É o Judiciário que profere, sobre o litígio, a última palavra.

5.5. Juiz natural

Um dos princípios fundamentais da função jurisdicional, eis que intimamente relacionado com a imparcialidade do juízo, a garantia do juiz natural foi trazida para o direito brasileiro, desde o início, em seu dúplice aspecto:

  1. proibição de juízo ou tribunal de exceção (tribunal ad hoc), isto é, criado ex post facto[29] para o julgamento de um determinado caso concreto ou pessoa (CF, art. 5º, XXXVII)[30];

  2. garantia do juiz competente (CF, art. 5º, LIII)[31], segundo a qual ninguém será subtraído ao seu juiz constitucionalmente competente.

Não se insere na proibição dos tribunais de exceção a criação das justiças especializadas (militar, trabalhista, eleitoral). Os tribunais ad hoc[32] são criados e funcionam para um determinado caso concreto, ao passo que as justiças especializadas são previamente instituídas pela Constituição e têm por escopo a aplicação da lei a todos os casos versando sobre determinada matéria ou que envolvam certas pessoas, indistintamente.

O mesmo se diga em relação aos casos de competência estabelecida pela prerrogativa de função (CPP, arts. 84 a 87)[33]. Não se cuida, aqui, de prerrogativa instituída em função da pessoa, mas de tratamento especial dispensado ao cargo, à função exercida pelo réu, relevantes na administração do país, tanto que, deixado o cargo ou cessada a função, desaparece a prerrogativa.

A Constituição Federal cuida de fixar apenas as competências ditas absolutas (de jurisdição, funcional etc.), sem preocupar-se com a competência de foro, regulada em lei federal (CPP, p. ex.).

Assim, é acertado dizer que a expressão autoridade competente, consignada no texto constitucional do mencionado art. 5º, LIII , deve ser lida como juiz constitucionalmente competente para processar e julgar (aquele cujo poder de julgar derive de fontes constitucionais), de modo que não será juiz natural o constitucionalmente incompetente.

A competência de foro é matéria estranha à Constituição, regida exclusivamente pela lei processual federal. Essas ilações têm grande significação especialmente no que concerne à interpretação da norma do art. 567 do Código de Processo Penal[34], assunto que será tratado junto com a competência dos órgãos jurisdicionais.

5.6. Garantia do Contraditório e Ampla Defesa

Art. 5º LV CF/88 - aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes;

RESUMO DO PROF. MÁRIO

- Garantia individual ao indiciado/réu de conhecer e participar de todos os atos processuais

- Contraditório se consubstancia na participação das partes no processo, como meio de permitir a sua contribuição par a formação do convencimento do juiz

- Amplia o acesso à verdade e diminui a possibilidade de erro judiciário

- O contraditório exige a efetiva participação do acusado, enquanto que a ampla defesa exige somente o conhecimento e a possibilidade de participação. STF: SÚMULA 705: A renúncia do réu ao direito de apelação, manifestada sem a assistência do defensor, não impede o conhecimento da apelação por este interposta.

- O contraditório não se aplica, em regra, à fase investigatória (de inquérito policial), enquanto que a ampla defesa aplica-se tanto ao inquérito quanto ao processo sum. vinc. 14 STF. É direito do defensor, no interesse do representado, ter acesso amplo aos elementos de prova que, já documentados em procedimento investigatório realizado por órgão com competência de polícia judiciária, digam respeito ao exercício do direito de defesa.

- Em processo penal, trata-se ampla defesa de uma garantia que se ao acusado, e não à acusação, enquanto que o contraditório aplica-se a ambos

- Permite o aproveitamento da prova ilícita em benefício do réu

- Impõe o observância de tempo hábil para preparação dos atos processuais art. 8.2, C CADH - (Art. 8.2, c. concessão ao acusado do tempo e dos meios adequados para a preparação de sua defesa).

- A ampla defesa se divide em defesa autodefesa (de presença; de audiência; de postular pessoalmente art. 577 e 623) e defesa técnica (postulação em juízo por defensor regularmente habilitado) CADH 8.2 b, d, e, f . (abaixo)

Art. 577. O recurso poderá ser interposto pelo Ministério Público, ou pelo querelante, ou pelo réu, seu procurador ou seu defensor.

Art. 623. A revisão poderá ser pedida pelo próprio réu ou por procurador legalmente habilitado ou, no caso de morte do réu, pelo cônjuge, ascendente, descendente ou irmão.

Art. 8.2 b. Comunicação prévia e pormenorizada ao acusado da acusação formulada; d. direito do acusado de defender-se pessoalmente ou de ser assistido por um defensor de sua escolha e de comunicar-se, livremente e em particular, com seu defensor; e. direito irrenunciável de ser assistido por um defensor proporcionado pelo Estado, remunerado ou não, segundo a legislação interna, se o acusado não se defender ele próprio nem nomear defensor dentro do prazo estabelecido pela lei; f. direito da defesa de inquirir as testemunhas presentes no tribunal e de obter o comparecimento, como testemunhas ou peritos, de outras pessoas que possam lançar luz sobre os fatos;

5.7. Devido Processo Legal [35]

Ação penal, regular, nos termos da lei. Previsto no Art. 5º LIV da CF/88. ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal.

O interesse de agir desdobra-se no trinômio (i) necessidade e (ii) utilidade do uso das vias jurisdicionais para a defesa do interesse material pretendido, e (iii) adequação à causa, do procedimento e do provimento, de forma a possibilitar a atuação da vontade concreta da lei segundo os parâmetros do devido processo legal. A necessidade é inerente ao processo penal, tendo em vista a impossibilidade de se impor pena sem o devido processo legal. (Pág. 166)

O Estado é o titular exclusivo do direito de punir, que só se efetiva mediante o devido processo legal, o qual tem seu início com a propositura da ação penal. (pág. 168)

Em qualquer caso, providências deverão ser tomadas para assegurar a observância de todas as garantias do devido processo legal, tais como nova citações, reabertura da instrução, quando esta já estiver concluída, ou mesmo abertura de vista à parte para manifestar-se a respeito de algum documento que se tenha juntado. (pág. 204)

Cumpre ainda ressaltar que, se o responsável civil não participou da relação jurídica processual penal, o título executivo não se forma contra ele, pois, nessa hipótese, haveria ofensa ao princípio do devido processo legal. (pág. 217)

Tendo em vista os princípios acima aduzidos (direito ao silêncio, devido processo legal), conjugados com o da presunção de inocência, fácil é notar que a revelia no processo penal não possui os mesmos efeitos do processo civil, porquanto não importa confissão ficta. (pág. 231)

A s assertivas devem ser tomadas com as necessárias ressalvas: ao contrário do que pode parecer, sempre haverá necessidade de intimação da decisão, em respeito aos ditames do princípio constitucional do devido processo legal (CF, art. 5º, LI V), pois condição essencial à garantia do contraditório é a possibilidade, conferida a quem deva intervir no processo, de conhecer inequivocamente do termo inicial dos prazos em geral, bem como de utilizá-los em sua integralidade. (pág. 250).

Na hipótese de o crime ser praticado por dois ou mais agentes em concurso, em que um deles tiver foro privilegiado, todos os coautores e partícipes deverão ser julgados perante esse juízo especial, reunindo-se os processos pela conexão ou continência. Nesse sentido, a Súmula 704 do S TF, publicada nos dias 9, 10 e 13 de outubro de 2003, segundo a qual: não viola as garantias do juiz natural, da ampla defesa e do devido processo legal a atração por continência ou conexão do processo do corréu ao foro por prerrogativa de função de um dos denunciados. Assim, quando somente um dos réus gozar de foro por prerrogativa de função, haverá a atração ao mesmo de todos os demais processos. Na hipótese de um dos agentes ter seu foro especial fixado diretamente pela CF e o outro, exclusivamente, pela Constituição estadual, os processos também deverão ser reunidos. (pág. 268)

Em outras palavras: como proceder diante de um eventual conflito entre as garantias constitucionais protetivas do cidadão, derivadas do devido processo legal, e o interesse da sociedade no combate à criminalidade? Nosso entendimento: não é razoável a postura inflexível de se desprezar, sempre, toda e qualquer prova ilícita. Em alguns casos, o interesse que se quer defender é muito mais relevante do que a intimidade que se deseja preservar. Assim, surgindo conflito entre princípios fundamentais da Constituição, torna-se necessária a comparação entre eles para verificar qual deva prevalecer. Dependendo da razoabilidade do caso concreto, ditada pelo senso comum, o juiz poderá admitir uma prova ilícita ou sua derivação, para evitar um mal maior, como, por exemplo, a condenação injusta ou a impunidade de perigosos marginais. Os interesses que se colocam em posição antagônica precisam ser cotejados, para escolha de qual deva ser sacrificado. (pág. 369)

RESUMO DO PROF. MÁRIO

- Devido processo legal substantivo assegura que as leis sejam razoáveis

- Devido processo legal procedimental é um princípio síntese que engloba todos os demais princípios e garantias constitucionalmente assegurados

- o modelo constitucional do devido processo legal no sistema brasileiro é de um processo que se desenvolva perante o juiz natural, em contraditório, assegurada a ampla defesa, com atos públicos e decisões motivadas, em que ao acusado seja assegurada a presunção de inocência, devendo o processo se desenvolver em um prazo razoável (BADARÓ, p. 79).

5.8. Proibição de provas obtidas por meios ilícitos

Art. 5º LVI CF/88 - ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal;

5.9. Inocência Presumida

CF/88 - Art. 5º LVII - ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória;

RESUMO DO PROF. MÁRIO

reo sacra est o réu é coisa sagrada

- Liberdade individual versus repressão penal coletiva a liberdade não é uma concessão, mas sim um direito originário do indivíduo

- ART. 5. LVII , LXI , LXVI CF; ART. 8.2 CADH E ART. 283 CPP

- Dever de tratamento interno: carga de prova inteiramente da acusação; restrição ao uso das prisões cautelares e demonstração concreta de sua necessidade; justa causa para instauração de investigação e de ação penal (indícios de autoria e prova da materialidade); in dubio pro reo; proibição de cumprimento antecipado de pena

- Dever de tratamento externo: proteção contra publicidade abusiva e estigmatização precoce do réu

- Vide ADCS 43 e 44 STF

5.10. Publicidade dos atos processuais

CF/88 - Art. 5º LX - a lei só poderá restringir a publicidade dos atos processuais quando a defesa da intimidade ou o interesse social o exigirem;

5.11. Iniciativa das partes

A promoção da ação penal pública cave privativamente ao Ministério Público; não existe mais ação penal com início por portaria do juiz ou da autoridade policial; a promoção da ação penal privada cabe ao ofendido ou seu representante. CF/88. Art. 129, I Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público: I - promover, privativamente, a ação penal pública, na forma da lei;

5.12. Impulso oficial

Uma vez iniciada, porém, a ação penal, compete ao juiz do Crime manter a ordem dos atos e o seguimento do processo. Art. 251 CPP. Ao juiz incumbirá prover à regularidade do processo e manter a ordem no curso dos respectivos atos, podendo, para tal fim, requisitar a força pública.

5.13. Verdade real

O juiz criminal deve buscar, tanto quanto possível, a verdade dos fatos; mas de modo comedido e complementar, sem se sobrepor às partes;

5.14. Legalidade ou obrigatoriedade

A persecução penal, em princípio, é obrigatória e indisponível, não podendo ser dispensada por conveniência ou oportunidade. A Lei 9099/95[36], porém, que criou os Juizados Especiais Criminais, passou a adotar o princípio da oportunidade, ou da conveniência da ação penal, embora ou regrada, nas infrações penais menores;

5.15. Ordem processual

Não devem ser repetidas fases processuais já concluídas e superadas (preclusão pró-judicato), salvo no caso de previsão legal expressa.

  1. PROCESSO PENAL. 2020.

  2. CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal. 25ª ed. Saraiva, 2018. Págs 43-46

  3. JUS PERSEQUENDI - O direito de demandar, isto é, o direito de agir em juízo, reclamando da coisa que se encontra ilicitamente em poder de outrem. Lê-se: iús persecuêndi.

  4. JUS PUNIENDI. O direito de punir. Lê-se: iús puniêndi.

  5. A teoria define a LIDE como uma pretensão insatisfeita, independentemente da resistência do réu. PACELLI, 2018. Curso de Processo Penal. pág. 231

  6. LITÍGIO: 1. JURÍDICO (TERMO) - ação ou controvérsia judicial que tem início com a contestação da demanda. 2. FIGURADO (SENTIDO) FIGURADAMENTE - conflito de interesses; contenda, pendência. Fonte: Dicionário.

  7. DIREITO MATERIAL - O corpo de normas que disciplinam as relações jurídicas referentes a bens e utilidades da vida (direito civil, penal, administrativo, comercial, tributário, trabalhista etc.), assim, podemos dizer que o direito material são os bens jurídicos que são titulados por uma pessoa. Fonte: Teoria Geral do Processo. CINTRA, GRINOVER, DINAMARCO.

  8. DIREITO PROCESSUAL: é o complexo de normas e princípios que regem tal método de trabalho, ou seja, o exercício conjugado da jurisdição pelo Estado-juiz, da ação pelo demandante e da defesa pelo demandado. Em outras palavras, o direito processual é um conjunto de normas e princípios que regulamentam a maneira da aplicação do direito material. Fonte: Teoria Geral do Processo. CINTRA, GRINOVER, DINAMARCO.

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