O consórcio público como instrumento de atuação coordenada dos entes subnacionais no enfrentamento à covid-19

26/10/2021 às 19:19
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Erick Teixeira Barreto[1]

SUMÁRIO: 1. Introdução; 2. Direito à saúde no contexto pandêmico; 3. A responsabilidade pela saúde no regime de competências constitucional; 4. O consórcio público como instrumento de gestão da saúde; 5. A atuação dos consórcios públicos no contexto pandêmico brasileiro; 6. Considerações finais; Referências bibliográficas.

RESUMO: Este artigo visa detalhar o instituto do consórcio público, no âmbito do direito administrativo, como forma de atuação coordenada dos entes subnacionais no enfretamento da pandemia causada pela Covid-19. Em razão de uma realidade impositiva, os administradores públicos, das diversas unidades da federação, necessitaram encontrar novo mecanismos de combater os efeitos da incontinenti calamidade pública instalada pela pandemia do novo coronavírus. Um desses meios foi o manejo da gestão consorciada de serviços públicos voltados à mitigação dos impactos da pandemia na saude pública e na ordem econômica. Neste trabalho, será detalhado como funciona o regime de repartição constitucional de competências em matéria de saúde e como essa estruturação é pertinente à utilização do consórcio público como instrumento do administrador público na tomada de decisões e compartilhamento de ações e infraestrutura para atuação coordenada. Além disso, será estudado como tal atuação coordenada favoreceu a tomada de decisão e a racionalização do recurso no enfrentamento à Covid-19 e como essa sistemática ajudou na concretização da repartição de competência administrativa dos entes, através da racionalização e redução das despesas. Por derradeiro, será realizado um breve estudo de caso sobre a atuação de alguns consórcios públicos de sucesso no enfrentamento à Covid-19.

Palavras-chave: consórcio público; Covid-19; gestão consorciada; federalismo cooperativo; saúde pública;

1 INTRODUÇÃO

A Covid-19 é uma doença altamente infecciosa ocasionada pelo novo coronavírus (SARS-CoV-2) que fustigou, de modo inaplacável, a realidade mundial a partir de meados de março/2020. A novel crise de saúde se somou a uma já conturbada conjuntura de instabilidades social e econômica e incertezas geopolíticas.

Desde a catalogação da doença como pandemia, pela Organização Mundial da Saúde (OMS), no começo de março de 2020, o consenso científico acerca da importância de medidas de distanciamento social fez com que países adotassem um irrefragável protocolo sanitário composto de medidas de isolamento social e cuidados com a higiene. Tal fato, ante a diminuição da circulação de pessoas e serviços, inevitavelmente, redundou na diminuição da atividade produtiva e econômica, deteriorando ainda mais a capacidade financeira de todos os governos. Uma nova realidade se impôs e com ela novas dificuldades econômica à maior parte das nações mundais.

Não se olvide, por óbvio, do resultado mais funesto causado pelo alastramento da doença e consequente aumento do número de infectados: a elevada quantidade de óbitos e internações. De acordo com dados da OMS, até a data em que este artigo foi escrito, o número de óbitos causadas pela Covid-19 era de aproximadamente 2.778.310. No Brasil, a doença tomou proporções devastadoras, com mais de 3.000 mortes diárias e um total de mais de 310 mil vidas ceifadas até o momento. É uma realidade que alude a períodos da humanidade nos quais se observa eventos catastróficos, como a peste bubônica e a gripe espanhola.

Na conjuntura brasileira, é fato inconteste que a crise sanitária agravou sobremaneira a capacidade financeira do poder público em custear suas atividades administrativas, especialmente devido ao remanejamento de despesas como resposta ao aumento de gastos com os serviços de saúde e assistência social, e também como resultado das indispensáveis medidas de distanciamento social que reprimiram a atividade econômica do setor privado e, consequentemente, a arrecadação de tributos.

Verificou-se, a outro giro, enorme sobrecarga nos sistemas público e privado de saúde, o que reverberou de modo negativo na prestação do serviço básico à saúde, causada pela redução e até completa indisponibilidade de leitos e unidades de atendimento para prestação de atendimentos, dado o aumento descomunal de novos casos, fato que também comprometeu a capacidade do Estado em reduzir esse ciclo vicioso de mais infecções e óbitos.

Tal conjuntura desafiadora exigiu - e ainda exige - atuação coordenada dos mais diversos atores, em especial o poder público, mas sem olvidar do setor privado e da sociedade civil organizada, os quais contribuíram com sacrifícios pessoais e com a busca de soluções para a crise.

Num cenário em que se defrontam constrições orçamentárias decorrentes do aumento de gastos públicos e necessidade de observância às obrigações constitucionais de contínuo provimento de serviços públicos voltados à satisfação de direitos fundamentais notadamente a saúde e a assistência social , administradores públicos de todas as esferas necessitaram adaptar o modelo de governança pública ao desenvolvimento e aplicação de novas soluções, com vistas a obter melhor racionalização de recursos e eficiência no desempenho da atividade administrativa.

Sob essa premente necessidade de contenção de despesas e racionalização dos recursos, a tônica da administração pública na crise foi edificada em torno de medidas de governança que preservassem recursos públicos sem, contudo, reduzir o manto social materializado em serviços públicos essenciais e canalizados para a mitigação dos efeitos sanitários e sociais da crise, tencionando a redução do número de óbitos, a assistência social às pessoas impactadas pela crise e a retomada gradual da atividade econômica.

Dado a ausência de solução imediata seja por vacinas ou remédios , em geral, as medidas tomadas pela administração pública foram voltadas, sobretudo, para o fomento das políticas de saúde pública, mediante ações preventivas e paliativas que reduzissem o número de internações e óbitos, com reforço do Sistema Único de Saúde, o que irremediavelmente redundou no aumento de gastos públicos e na degradação da capacidade orçamentária dos entes federados, em especial os municípios, que em sua grande maioria já se encontram em estado de calamidade fiscal.

Diante de uma realidade recalcitrante e avassaladora, União, Estados e Municípios se viram em situação desesprepradora para enfretar a pandemia e honrar com suas obrigações legais e contratuais.

Exigiu-se, como resposta a essa crise, a remodelagem emergencial nas diretrizes gerenciais da administração pública durante os períodos de aprofundamento. A administração pública de todos os entes precisou se reinventar e buscar novos institutos, sobretudo no âmbito do direito público, e em especial no direito administrativo, para, ao passo em que continuasse realizando o manto fundamental da Carta Política, não descurasse da necessidade de se racionalizar os recursos inerentes à atividade político-administrativa, enquanto espera uma solução que dê cabo à calamidade instalada.

Digno de nota, um dos institutos de maior relevo utilizados pelos entes subnacionais, para mitigação dos efeitos da crise, foi o consórcio público.

Tais consórcios, integrados por diferentes entes políticos, consolidaram importante técnica de gestão associativa de serviços públicos, através da articulação de medidas que promoveram eficiência na prestação de serviços públicos e racionalizaram recursos, reduzindo sobremaneira as consequências adversas da pandemia.

Entre essas medidas, é possível citar o compartilhamento de informações e recursos, a aquisição conjunta de insumos e equipamentos médicos, a criação de paineis públicos de coleta e divulgação de dados, a preparação conjunta de equipes, a gestão de doações, a preparação de medias restritivas, dentre várias outras que favoreceram a divisão de trabalho e a racionalização das atividades.

Tal solução encontrada pelos gestores públicos no enfrentamento à pandemia se revestiu de enorme importância na manutenção dos serviços públicos e na proteção da vida. Através da atividade consorciada, foi possível estabelecer um paradigma cooperativo de governança pública que favoreceu o compartilhamento de recursos e o auxílio nas tomadas de decisões.

Motivados pela unificação de procedimentos, pelo compartilhamento de boas práticas e pela mobilização conjunta, os consórcios se nortearam, especialmente, pelos princípios da eficiência e da continuidade dos serviços públicos, visando obter o melhor resultado possível na prestação da saúde, com menor impacto nas ordens econômica e social.

Este trabalho buscará sintetizar todos os elementos jurídicos subjacentes aos consórcios públicos, buscando tracejar como, efetivamente, esse instituto foi manejado por vários gestores públicos, nas mais variadas regiões do Brasil, visando à redução das consequências do estado de calamidade por que passa o país, buscando compreender como as soluções adotadas efetivamente auxiliaram na melhoria dos serviços públicos e na consecução de uma atividade administrativa eficiente em época de críticas limitações ao desempenho da atividade executiva pelo Estado.

2 DIREITO À SAÚDE NO CONTEXTO PANDÊMICO

A Declaração Universal dos Direitos Humanos[2] reconhece, em seu art. 25, que a saúde é um direito universal, devendo ser propiciado em nível mínimo para qualquer indivíduo, de modo que lhe seja assegurada a plena integridade corporal e psicológica. Sob a ótica dos direitos humanos, o direito à saúde é elemento indissociável do direito à vida, o qual, por sua vez, sedimenta e inspira todos os demais vetores da aludida Declaração.

Do mesmo modo, a Organização Mundial de Saúde consagra, em sua Constituição de 1946[3], o direito à saúde como estado de completo bem-estar físico, mental e social, que não consiste apenas na ausência de doença ou de enfermidade, mas num equilíbrio mental e corporal do indivíduo frente ao ambiente. Nesse sentido, reconhece que a saúde é um estado qualitativo, de boa higidez física ou mental, capaz de promover, individualmente, o pleno desenvolvimento dos indivíduos e, globalmente, a paz e a segurança dos povos.

A mesma Organização Mundial da Saúde também reconhece na sua Constituição que os governos devem ter responsabilidade pela saúde de seus povos, a qual só pode ser assumida pelo estabelecimento de medidas sanitárias e sociais adequadas. A saúde é, sob essa ótica, um direito subjetivo do qual decorre um impostergável dever de prestação estatal, sem o qual não se garantiria o mínimo de bem-estar reconhecido tanto na Constituição da OMS quanto na Declaração Universal de Direitos Humanos.

Também nesse aspecto, cumpre evidenciar importante diretriz da OMS quanto ao tratamento de doenças infecciosas, como é qualificada a Covid-19. A OMS é bastante feliz ao disciplinar que o desigual desenvolvimento na promoção de saúde e combate às doenças - especialmente as contagiosas - constitui perigo comum e concreto a nível mundial, pondo em risco não só os indivíduos, mas a própria continuidade da espécie humana. Destarte, os governos devem prezar por políticas públicas virtuosas, capazes de evitar a propagação de doenças infectocontagiosas, propensas a causar calamidades em escala global[4].

A Constituição Federal de 1988, perfilhando os mesmos fundamentos filósoficos, reconhece o a saúde como direito social em seu art. 6º. Já em seu art. 196, reconhece a saúde como direito de todos e dever do Estado, implementada mediante políticas públicas sociais e econômicas que visem à redução do risco de contração de doenças e à ampliação do acesso universal aos serviços público de saúde, por meio de programas e ações e de promoção, proteção e recuperação da saúde.

O exato alcance do direito à saúde, contudo, não deve se limitar somente à tutela da integridade física ou mental dos seres humanos, em sua acepção individidual. Malgrado essa seja sua primeira interpretação, a garantia do bem-estar coletivo, como vertente difusa do direito à saúde, promove a expansão conceitual desse direito, que passa a abranger a incolumidade de toda coletividade. Trata-se de redimensionar o conceito de saúde, dando-lhe maior amplitude, para que se garanta comunitariamente, seja a nível local ou global, garantias mínimas de existência e desenvolvimento humano, e, em última instância, a preservação da própria espécie.

O direito à saúde, além de sua faceta como direito fundamental individual, ganha, portanto, magnitude de direito coletivo e difuso, por se tratar de um garantia de preservação da incolumidade do corpo social. Revela-se, nesse sentido, como o direito a ter um ambiente livre de elementos patológicos que ameaçem a integridade dos indivíduos. Aqui passa a dialogar com o direito ao meio ambiente equilibrado, no sentido que a saúde depende de um ambiente saudável e livre de moléstias. Nessa acepção, a eficiência na prestação do direito à saúde passa pela elaboração de diretrizes e ações governamentais capazes de reduzir contaminações por doenças, incluído aí, principalmente a adoção de protocolos e procedimentos técnicos, que sejam ratificados por evidências científicas e protocolos aprovados por autoridades sanitárias.

Assim sendo, a proteção da integridade individual é jungida à tutela da saúde coletiva, esta concebida como a promoção de políticas públicas que visam resguardar a intangibilidade, seja em seus aspectos psicológicos ou físicos, de toda a população. Portanto, a prestação à saúde exige o direcionamento de recursos e a implantação de políticas públicas voltadas tanto para o asseguramento do atendimento individual como para a conservação da higidez coletiva.

No contexto pandêmico atualmente enfrentado, a reclamação por tais políticas coletivas é facilmente perceptível e implica a adoção de medidas urgentes para a redução da curva de contágio, o desafogamento do sistema de saúde e a diminuição do número de mortes. Entre tais medidas, pode-se citar: distribuição e aplicação urgente de vacinas, expansão da rede hospitar com leitos de UTI voltados ao tratamento da Covid-19 e obrigatoriedade de observância de protocolos sanitários rígidos, em ambientes públicos e privados.

Mister se faz destacar que a prestação da saúde caracteriza-se como um serviço público indispensável, de natureza metaindividual. É, portanto, um direito assegurado a todos, sendo, conforme preleção de Fernando Facury Scaff, prestado independente de raça, sexo, credo, origem e outros possíveis discrímenes fáticos ou jurídicos, sendo um dever do Estado, compreendido como Poder Público, independente de seu fracionamento federativo ou organizacional.[5]

Nessa contingência, o direito à saúde envolve a atuação simultânea das mais variadas esferas do poder político, incluindo os Estados soberanos, e, dentro deles, os governos locais, em suas mais distintas áreas de atuação, atribuindo-se-lhes o encargo de buscar atuação conjunta, mediante parcerias e gestões consorciadas, de modo a se prevenir o contágio de doenças e recuperar os enfermos de maneira mais eficiente. Em nível internacional, o direito à saúde é um direito humano fundamental, que visa proteger também a própria espécie humana de doenças perigosas, concretizadas por protocolos e diretrizes da OMS e por acordos e tratados internacionais, visando à promoção de medidas concomitantes que reduzam, ao mínimo possível, a propagação de doenças.

A experimentação empírica durante a pandemia causada pela Covid-19 comprova essa premissa. A partir de análise do contexto social e de políticas públicas muitas vezes desencontradas, nota-se, pragmaticamente, que vários Estados nacionais adotaram políticas isoladas e contrárias às diretrizes da OMS e ao consenso científico internacional, acarretando o aumento do número de casos da doença e, consequentemente, o número de óbitos.

No recorte geográfico brasileiro, támbém se percebe claramente esse fenômeno. A falha na condução de políticas públicas voltadas ao controle da doença envolve alguns fatores, sobretudo políticos, e tem como pano de fundo a transformação da crise sanitária em propósito político-ideológico. Atualmente, nota-se um quadro de desarranjo na adoção de políticas controle da contaminação, especialmente pela ausência de uma gestão centralizada de crise e pela falta da unificação de protocolos e medidas. Tal conjuntura faz com que Estados e Municípios adotem políticas e protocolos peculiares e muitas vezes desencontrados, que dificilmente serão capazes de mitigar os efeitos da doença a um nível de total controle. Como resultante, nota-se um retardamento na consecução de ações de saúde capazes de reverter esse quadro, como a lentidão na vacinação e a ausência de medidas de controle inter-regional, que seriam capazes de reduzir o contágio.

Ademais, verifica-se o acolhimento de um discurso negacionista capitaneado por políticos dos mais altos escalões do governo federal, que ecoa em vários segmentos sociais, dificultando a conscientização das pessoas e a disseminação de informações importantes.

Nesse sentido, no momento em que desigualdades patentes são notadas na condução de políticas públicas, a tônica de prevenção e combate à Covid-19 deveria estar voltada para a adoção de instrumentos administrativos capazes de organizar e aglutinar esforços em favor do mesmo objetivo: redução da curva de contágio e do número de óbitos. Por isso, é um postulado facilmente identificável, mas negligenciado por muitos governantes, que as políticas públicas de enfrentamento à pandemia devem ser formuladas e aplicadas, invariavelmente, por meio de atuação conjunta, coordenada e sincrônica de todas as esferas de governo, nos seus mais variados âmbitos de atuação; sem isso, indubitavelemente, não se conseguirá deter o avanço da pandemia e, como resultado, reduzir os efeitos sanitários e sociais causados pela doença.

3 A RESPONSABILIDADE PELA SAÚDE NO REGIME DE COMPETÊNCIAS CONSTITUCIONAL

A Constituição Federativa de 1988 estatui um sistema federalista qualificado por um pacto que disciplina a repartição de competências de modo harmonioso entre os entes subnacionais. A divisão de competências é a técnica pela qual o constituinte distribui, a partir de critérios materiais, os encargos de cada ente federativo, preservando sua autonomia política[6].

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Como bem vaticina José Afonso da Silva, as competências são faculdades juridicamente outorgadas a um ente público para emitir decisões e, portanto, revestem-se como projeção do poder público de que servem os órgãos e entidades estatais para realização dos fins colimados na lei. A Constituição brasileira adota um sistema complexo que busca equilibrar os poderes federativos, por meio de repartição de competências fundada na técnica de enumeração dos poderes da União (arts. 21 e 22), com poderes remanescentes para os Estados (art. 25, § 1º) e poderes definidos indicativamente para os Municípios (art. 30) [7].

A Carta Política reserva, dentre as competências constitucionalmente instituídas, algumas para serem exercidas de modo cumulativo (ou simultâneo), por meio da previsão insculpida em seu art. 23. É o que Uadi Lammêgo Bulos chama de técnica da atuação administrativa paralela[8]. Tais competências são encargos positivos vinculados ao cumprimento por todos os entes que integram o regime federalista brasileiro, de modo simultâneo e harmônico. Sob o ponto de vista material, tais competências são cristalizadas pelo desempenho da função político-administrativa no âmbito de cada esfera de poder, cuja finalidade é o interesse público e o bem-estar coletivo colimados na própria lei.

Nesse regime de competências vige o princípio da predominância dos interesses[9], segundo o qual matérias de interesse geral cabem à União; temas de interesse regional aos Estados; e assuntos de interesse local aos municípios[10]. Compreender e discernir o que são esses interesses são os pontos cardeais que norteam o regime de repartição de competências.

A distribuição de competência da forma que foi concebida pela Carta Política é predicado nuclear do processo formador do federalismo brasileiro. A gestão compartilhada de competências caracteriza elevada descentralização do poder decorrente do compromisso político firmado pelo texto constitucional. A adoção desse sistema complexo visa, em última instância, ao equilíbrio de competências e atuação harmônica de todos os entes.

Como citam Flexa e Barbastefano, a federação brasileira é caracterizada pela forte assimetria entre os governos, o que se traduz na necessidade de se planejar políticas capazes de corrigir ou minimizar as desigualdades entre os entes federativos[11].

De fato, a essência do federalismo brasileiro foi estruturada por um sistema que combina competências privativas e comuns, buscando conferir equilibrio nas relações entre os entes federativos e reduzir a concentração da atividade político-adminsitrativo em poucos entes federativos.

Não obstante, esse regime foi amplamente fortalecido com a inclusão dos municípios no pacto federativo e na dinâmica ordinária de atuação conjunta. Imbuiu-se aos municípios um rol de atribuições constitucionais que visam atender ao chamado interesse local. Tal modificação alavancou significativamente a participação desses entes no regime compartilhado de competências haurido nos arts. 23 e 24 da Carta Política, mediante previsão de serviços públicos para a consecução dos direitos fundamentais.

Nesse aspecto, a Constituição Federal preconiza, em seu art. 23, que a atuação paralela entre União, Estados, Distrito Federal e Municípios se estende sobre ampliado rol de matérias, iniciando-se pelo zelo e guarda da própria Constituição, das leis e do sistema democrático (art. 23, I, CF).

A saúde, matéria de grande relevo e insígne relevância, não foi olvidada nessa dinâmica repartição constitucional de competências. Consagra a Carta Política, no inciso II do art. 23, que é competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios cuidar da saúde e da assistência pública. Igualmente, em seu art. 24, XII, a Constituição consagra a competência concorrente dos entes federativos quanto à legislação acerca da proteção e defesa da saúde.

No que concerne à prestação de serviço à saúde de maneira concorrente, reputa-se como principal instrumento concretizar dessa política o Sistema Único de Saúde (SUS), conforme disciplina dos arts. 198 e 200 da CF. Especialmente no que tange a crise epidemiológica, cabe rememorar, conforme prescrito no art. 200, II, que cabe ao SUS, em todos os níveis governamentais, executar ações de vigilância sanitária e epidemiológica. Tal norma vai ao encontro do regime de competências constitucional, garantindo a todos os entes federativos a incumbência de velar por medidas que visem reduzir efeitos de crises epidemiológicas.

A teleologia dos supramencionados dispositivos reside na combinação de esforços de todos os entes públicos na consecução de serviços públicos fundamentais.

A doutrina costuma chamar essas competências de concorrentes porque todos os entes públicos são capazes de desenvolvê-las, sem supressão de uns em relação aos outros. Os entes federados não podem, nesse regime, abrir mão, transferir ou monopolizar tais competências, devendo desenvolvê-las de modo simultâneo, preferivelmente de modo coordenado e sistematizado, à luz do princípio de predominância dos interesses; portanto, essa é a interpretação que se deve dar à fórmula prescrita no art. 23 da CF.

Segundo escólio de Gilmar Mendes e Gonet Branco, a cooperação entre os entes é almejada pela realização de objetivos e finalidades comuns. A finalidade do instituto é evitar a dispersão de recursos e esforços, e a canalização de ações com o objetivo de se obter resultados mais satisfatórios, à luz da eficiência da atividade administrativa[12].

Nessa baila, merece destaque a Lei Complementar nº 140/11, que fixa normas para cooperação entre os entes subnacionais, decorrentes do exercício da competência comum outorgada pela Constituição Federal. Conforme dicção de seu art. 4o,, os consórcios públicos são expressamente considerados instrumentos de cooperação institucional.

Apesar de a Lei Complementar não enquadrar a hipótese de saúde pública, estatuída no art. 23 da CF, sua disciplina reverbera o interesse positivo do legislador na promoção de atividades coordenadas entre os entes públicos, como forma de se garantir efetivade à eficiência e prestação dos serviços públicos. Portanto, é de se afirmar positivamente que a prestação à saúde está abraçada pela teleologia do aludidado normativo, podendo ser objeto de gestão consorciada, conforme seu art. 4o, I.

Especificamente em matéria de saúde, temos a Lei Complementar 141/12, que estatui em seu art. 21 a previsão de Estados e Municípios, ao estabelecerem consórcios ou outras formas legais de cooperativismo, para a execução conjunta de ações e serviços de saúde e cumprimento da diretriz constitucional de regionalização e hierarquização da rede de serviços, poderem remanejar entre si parcelas dos recursos dos Fundos de Saúde derivadas tanto de receitas próprias como de transferências obrigatórias, que serão administradas segundo modalidade de gestão pactuada. Isso implica dizer que a gestão consorciada desses entes pode e deve favorecer o remanejamento de recursos e a cooperação como instrumentos de efetivação da política nacional de saúde pública.

Da mesma maneira, é importante trazer à lume o advento da Lei nº 13.979/20, em fevereiro de 2020, ainda no início da pandemia em solo brasileiro, que passou a dispor sobre medidas emergenciais para enfrentamento da crise de saúde pública causada pelo novo coronavírus. Reconhecendo a responsabilidade concorrente dos entes, a norma objetiva determinar orientações gerais no âmbito de competência de cada autoridade, a fim de promover a adoção, em território nacional, de medidas uniformes para a contenção e redução dos efeitos da crise, como esposado em seu art. 3º.

Ocorre que, a partir da edição da Medida Provisória nº 926/2020, que visava promover alterações na Lei 13.979/20, observou-se uma tentativa de concentração de poderes por parte Executivo Federal, mediante limitação da atuação de governadores e prefeitos em impor medidas de distanciamento social e de restrição de atividades. A principal alteração na MP foi, sem dúvidas, a previsão de o Presidente da República poder, mediante decreto, definir quais são os serviços e atividades considerados essenciais (art. 3º, § 9º) . Com isso, seria suprimida, no âmbito regional e local, a imposição de medidas restritivas concernentes a esses serviços e atividades essenciais definidas pelo Executivo Federal. Tal previsão normativa denota transgressão frontal ao pacto federativo e à já mencionada distribuição de competências federativas.

Com base nesse contexto, a ADI 6341/DF[13] foi proposta pelo Partido Democrático Trabalhista (PDT), em face da manifesta incompatibilidade da referida MP 926/20 com a Constituição Federal. Na alegativa da parte autora, sob o ponto de vista material, a Medida Provisória colide frontalmente com a Constituição, sobretudo em aspectos atinentes à repartição de competências, posto que suprime a responsabilidade de Estados e Municípios na definição de quais são os serviços essenciais em suas respectivas esferas de atuação. O autor sustentou, também, que a referida MP visava esvaziar e desacreditar políticas adotas por outros entes federativos.

Ainda em julgamento de Medida Cautelar, referendada pelo Plenário da Corte, o STF, a despeito de não reconheceer a inconstitucionalidade do preceito impugnado (art. 3º, § 9º), emprestou interpretação conforme ao dispositivo, para, reconhecer que, em atenção à autonomia e à competência comum dos entes federativos para tratar sobre medidas de política sanitária, as prerrogativas para adotar providências de poder de polícia (isolamento social, quarentena e limitação de circulação) adotadas e a definição de quais serviços são considerados essenciais pelo Presidente da República, não tem o condão de afastar a competências de Prefeitos e Governadores para tratar do mesmo assunto. Assim sendo, reconhece o STF que Estados e Municípios podem, em seu âmbito de atuação, dispor sobre quais serviços são considerados essenciais, bem como podem estabelecer medidas mais restritivas que melhor se coadunem aos interesses regionais e locais.

Nesse sentido, a Corte reconheceu que o trecho da MP que atribui ao Presidente a competência para dispor sobre a essencialidade de atividades e serviços públicos deve preservar as atribuições dos outros entes políticos, conforme preconizado no art. 23 da CF. Portanto, o STF afirma a validade de decretos de governadores e prefeitos que dispuserem sobre a essencialidade de serviços e atividades, não estando tais normativos subordinados às medidas decretadas pelo Governo Federal. A não observância da autonomia dos demais entes federativos para tratar sobre a matéria seria uma afronta ao pacto federativo e à repartição de competências[14]. Espera-se que em julgamento definitivo a posição seja mantida pelo Colegiado.

4 O CONSÓRCIO PÚBLICO COMO INSTRUMENTO DE GESTÃO DA SAÚDE

A Administração Pública é composta pela administração direta e pela indireta. A administração direta decorre expressamente da Constituição, e qualquer ampliação dos poderes políticos ali disciplinados não poderá ser realizada por via infraconstitucional. São as pessoas políticas de direito público interno constituídas diretamente pelo poder constituinte originário e os órgãos criados para o desempenho direto da atividade administrativa, mediante fenômeno da desconcentração. São elas: União, Estados, Distrito Federal e Municípios. Por sua vez, a administração indireta são as pessoas jurídicas que a administração direta cria para auxiliá-la na execução de suas tarefas, decorrente da vontade legislativa infraconstitucional de descentralização da atividade administrativa[15]. No Brasil, a criação de entidades da administração indireta pode dar-se somente por lei[16].

Os entes políticos e as pessoas jurídicas que compõem a administração indireta são dotadas de personalidade jurídica de direito público (art. 41 do Código Civil), salvo as hipóteses legais preconizadas à administração indireta, cujas entidades podem assumir a personalidade jurídica de direito privado, como nos casos de empresas públicas e sociedades de economia mista, em razão de o ordenamento jurídico reconhecer a possibilidade dessas entidades explorarem atividade econômica e, portanto, coadunarem-se melhor com o regime privatístico[17].

Di Pietro leciona que, no caso de pessoas jurídicas de direito público, isto é, aquelas essencialmente regida por normas de direito público, elas só poderão ser instituídas por uma norma jurídica, a qual lhe empresta competências e funções, e sujeitará a pessoa jurídica ao regime jurídico-administrativo. A seu turno, as pessoas jurídicas de direito privado que compõem a administração pública, são constituídas sob o regime predominantemente de direito privado[18].

Ocorre que o modelo de descentralização política e administrativa imposto pelo federalismo brasileiro não foi acompanhada de instrumentos de planejamento e coordenação dos planos governamentais[19]. Apesar de o regime de competências constitucionais estimular a competência comum dos entes federados, após a promulgação da Constituição de 1988, faltaram instrumentos administrativos capazes de garantir a orquestração da atuação dos entes subnacionais, em relação ao rol de competências estatuídas nos arts. 23 e 24 da CF.

Diante desse cenário, foram necessários novos institutos para que os entes subnacionais conseguissem promover a realizar conjunta de serviços públicos, conforme previsão constitucional.

Com o advento da EC nº 19/1998, foi introduzida na Constituição Federal, mediante norma expressa em seu art. 241, a figura dos consórcios públicos e dos convênios de cooperação entre os entes federados entendidos aqui como União, Estados, Distrito Federal e Municípios. O desiderato, a partir de própria análise dogmática do texto constitucional, teve como finalidade a gestão associada de serviços públicos e o exercício compartilhado de atribuições constitucionais. A redação, dada pela Emenda Constitucional, com o objetivo de alavancar a gestão associada de serviços públicos, foi clara ao disciplinar que União, Estados, Distrito Federal e Municípios poderão, por meio de lei, disciplinar os consórcios públicos e demais convênios de cooperação entre os entes federados, autorizando a gestão associada de serviços públicos, possibilitando a transferência total ou parcial de encargos, serviços, pessoal e bens essenciais à continuidade dos serviços transferidos.

Ocorre que, como os consórcios envolvem a participação da pessoas jurídicas públicas diversas (por exemplo, alguns municípios), é essencial que haja uma disciplina jurídica das normas às quais o consórcio deve se submeter. Por isso, em sede infraconstitucional, a promulgação da Lei nº 11.107/2005, também chamada de Lei dos Consórcios, regulamentada pelo Decreto nº 6.017/07, inaugurou a disciplina dos consórcios públicos no ordenamento jurídico brasileiro, estabelecendo os pontos comuns a serem observados na instituição de qualquer consórcio público.

Como bem assevera Di Pietro, a finalidade da norma constitucional foi consolidar a gestão associada entre entes federados para a consecução de fins de interesse geral entre distintos entes da federação[20]. Obviamente, as finalidades de interesse geral são os fins do Estado, perseguido pela Constituição em suas normas, também chamado de interesse público. Segundo a doutrinadora, normalmente, essas matérias são as que se inserem na competência comum prevista no artigo 23 da Constituição. Muitas vezes, o serviço que uma pessoa jurídica pública não pode ou tem dificuldades para executar sozinha torna-se possível ou mais eficiente mediante a conjugação de esforços[21].

Cotejando a norma insculpida no art. 241 da Constituição Federal com a Lei nº 11.107/05, é possível perceber a possibilidade da criação de novos sujeitos integrantes da administração pública: os consórcios e os convênios públicos. Tais pessoas jurídicas certamente não podem integrar a administração pública direta, uma vez que não podem ser consideradas pessoas jurídicas de direito público interno, sob pena de violação do pacto federativo, tampouco podem ser considerados órgãos da administração direta, uma vez que são formados pela gestão associada de entes políticos distintos.

Lado outro, não se vê óbice legal para que a criação de pessas pessoas siga as regras das pessoas jurídicas integrantes da administração indireta.Tal possibilidade, inclusive, está estampada no art. 6º, I e II, da Lei nº 11.107/05, cuja diccão não deixa dúvidas, ao prever a possibilidade o consórcio adquirir personalidade jurídica de direito público ou privado.

À vista disso, os consórcios podem assumir duas possibilidades previstas na lei: personalidade jurídica de direito público, constituindo-se na forma de associação pública; ou pessoa jurídica de direito privado com personalidade jurídica de direito privado, caso em que deve atender aos requisitos da legislação civil. Quando revestir-se de personalidade jurídica de direito público integrará a administração pública indireta de todos os entes federados consorciados (art. 6º, § 1º, da Lei nº 11.107/05) e assim gozará de todas as prerrogativas e privilégios inerentes ao regime jurídico-administrativo.

Em contraste, se se apresentar sob a personalidade de direito privado não poderá deixar de observar as normas de direito público atinente à realização de licitação, celebração de contratos, prestação de contas e admissão de pessoal, que deverão ser regidos pela Consolidação das Leis do Trabalho (art. 6º, §§ 1º e 2º da lei 11.107/05). Devem seguir, portanto, um regime de direito privado parcialmente derrogado por normas de direito público, sendo regido pelo direito privado em tudo que não for expressamento derrogado por normas de direito público.

Dessarte, qualquer que seja a personalidade adotada, os consórcios podem ser definidos, à luz dos ensinamentos de José Afonso Da Silva, como um acordo entre entidades da mesma espécie (dois ou mais municípios, por exemplo) com o objetivo de promover a realização de atividades e serviços públicos consorciados, garantindo-se mais eficiência na atividade administrativa[22]. Em ambos os casos quando adota personalidade jurídica de direito público ou privado - passa a constituir-se em nova espécie de entidade da Administração Indireta de todos os entes federados que o compõem, até porque o desempenho das atividades consorciadas dar-se-á por meio de descentralização da atividade administrativa, na modalidade de descentralização por serviços[23].

Na ampla maioria dos casos, é de se pensar que os consórcios públicos adotarão a personalidade jurídica de direito público, porque nesses casos poderão gozar plenamente dos benefícios do regime jurídico-administrativo.

Nesse aspecto, defendem Flexa e Barbastefano que os consórcios públicos podem ser entendidos enquanto uma solução organizacional para suprir as necessidades de coordenação e integração entre os entes federativos, destinada a operar competências a ele delegadas, constituindo-se como expressão do exercício das autonomias dos entes consorciados[24].

Dentre essas finalidades, sem dúvidas, residem a saúde pública e a assistência social. Todos esses foram campos de atuação estatal profundamente afetados pelas consequências do estado de calamidade pública que hoje se instalou no Brasil.

Tais matérias estão inseridas no já mencionado art. 23 da Constituição, o qual consolida as competências adminsitrativas comum dos entes subnacionais. De um modo geral, os consórcios possuem competência para executar os serviços públicos previstos no art. 23, pois tais competências são passíveis de cooperação para sua execução, obviamente observando-se as limitações impostas quanto aos interesses de cada ente, de acordo com o princípio da predominância dos interesses.

Em relação à gestão consorciada de serviços públicos, a Lei nº 11.107/05 outorgou alguns privilégios aos consórcios públicos, como (1) poder de promover desapropriações e instituir servidões nos termos de declaração de utilidade ou necessidade pública; (2) ser contratado pela Administração Direta ou Indireta dos entes da Federação consorciados, com dispensa de licitação; (3) firmar convênios, contratos, acordos de qualquer natureza, receber auxílios, contribuições e subvenções sociais ou econômicas de outras entidades e órgãos do governo.

O Decreto nº 6.017/2007, visando regulamentar a Lei nº 11.107/05, estabelece os parâmetros e objetivos a serem perseguidos mediante gestão consorciada, disciplinando, em relação a matéria de saúde, a possibilidade de os consórcios desenvolverem ações e os serviços de saúde, obedecidos os princípios, diretrizes e normas que regulam o Sistema Único de Saúde (SUS), conforme seu art. 3o, § 2o. Especificamente em relação à legislação do Sistema Único de Saúde (SUS) que compõem o marco legal da saúde pública , esta prevê expressamente o consórcio como instrumento de concretização da política de saúde, a exemplo da Lei 8.080/90, que, em seu art. 10, institui o consórcio público como instrumento de ações e serviços conjuntos que promovam as políticas públicas de saúde.

Não é difícil compreender por que as políticas públicas de saúde geralmente concebem os consórcios públicos na organização do SUS. O arcabouço legal do SUS é de suma importância e dialoga muito bem com a gestão associada de serviços e programas, pois, à vista da descentralização e da vasta capilaridade do Sistema em todo o território nacional, os consórcios públicos podem obter larga vantagem na cooperação de promoção de serviços de saúde, uma vez que os princípios orientadores do SUS, dentre eles a hierarquização da rede de atendimento, favorecem a adoção de políticas e instrumentos cooperativos. É patente que a muitos municípios não conseguem sozinhos dar vazão aos atendimentos de saúde nas suas mais variadas necessidades e em sua totalidade. Não raramente, percebe-se que municípios maiores e com mais equipamentos de saúde cooperam e dialogam com outros municípios menores na demanda de serviços de maior complexidade.

Conquanto se nota a demanda de municípios menores para os maiores, sobretudo em relação a procedimentos mais especializados, os municípios maiores podem cooperar com os menores para que estes provejam, em seus próprios territórios, serviços de atenção básica, uma vez que, por imposição legal, que estes são atribuição elementar de qualquer município, independementemente da receita e do tamanho. Assim, o modelo cooperativo favorece o desafogamento da rede de atendimento dos municípios maiores e melhora a eficiência do sistema como um todo.

Por isso, especificamente em matéria de saúde, os consórcios adaptam-se muito bem ao modelo assistencial idealizado pelo SUS, no que pertine a aplicação descentralizada de políticas públicas de promoção, prevenção e recuperação, uma vez que o SUS dialoga muito bem como esse instrumento de gestão administrativa.

Em matéria epidemiológica, a funcionalidade do SUS não foge a essa regra. A descentralização e a hierarquização do Sistema de Saúde, além de favorer a gestão de recursos e a eficiência das políticas sanitárias, permite a implementação de políticas públicas específicas para o refreamento da curva de contágio e para recuperação dos enfermos. Nessa atuação, os consórcios podem possibilitar, de modo mais eficiente, à luz do Política Nacional de Regulação do Sistema Único[25], dentre outras ações: a organização de redes regionais integradas de atenção à saúde, a fim de garantir compartilhamento de equipamentos, medicamentos, profissionais e assistência em diversas especialidades, envolvendo os equipamentos municipais e estaduais dos entes integrantes; a ampliação da oferta de leitos públicos e seu compartilhamento; a disponibilização e o acesso a redes de atendimento de maior complexidade e com diferentes especialidades médicas; o fortalecimento do sistema de regulação municipal e regional, com a edição de normas e atos administrativos conjuntos; a adoção de medidas restritivas conjuntas, de modo a reduzir o fluxo de pessoas no espaço intermunicipal ou interestadual; o aprimoramento dos sistemas de vigilância sanitária, incluindo a adoção de medidas de polícia concorrentes e o compartilhamento de insumos, técnicas e profissionais; a implementação de campanhas de vacinação simultâneas, com eventual remanejamento de doses; o compartilhamento de medicamentos e outros equipamentos médicos; a realização de licitação compartilhada para a compra de doses de vacinas, medicamentos e insumos médicos, reduzindo o tempo para o recebimento.

Como se vê o Consórcio Público é um indispensável instrumento de gestão de crise epidemiológica, especialmente em momentos de agravamento da pandemia da Covid-19, em que regiões do país passam por aumento do número de casos e mortes. Reconhece-se na gestão conjunta de serviços e ações de saúde eficiente método para achatar a curva de contágio, posto que tem o potencial de atacar o problema da pandemia na raiz de sua causa, isto é, na transmissão desenfreada do vírus causada pelo descontrole de rastramento da doença e pela falta de medidas sanitárias preventivas e fiscalizatórias.

Isso porque, mediante gestões consorciada, promove-se a adoção de medidas descentralizadas, colaborativas e simultâneas, especialmente de cunho preventivo, que têm a virtude de interromper o contágio, reduzindo, assim, a curva da doença e consequentemente a renitência de novos surtos. Nesse sentido, não há alternativas senão a adoção de medidas cooperativas entre as mais diversas autoridades para que o país veja o controle do vírus.

5 A ATUAÇÃO DOS CONSÓRCIOS PÚBLICOS NO CONTEXTO PANDÊMICO BRASILEIRO

Como já afirmado neste estudo, a área de atuação dos consórcios podem ser as mais amplas possíveis, principalmente quando logram a prestação de um serviço público reputado essencial, como, por exemplo, a administração tributária, a cultura, a educação, o meio ambiente, o planejamento urbano e a saúde.

De acordo com o Observatório Municipalista de Consórcio Públicos[26], o Brasil possui atualmente 488 consórcios públicos intermunicipais. Em recente estudo da Confederação Nacional de Municípios (CNM), observou-se que, dos 5.568 municípios brasileiros, mais de 4 mil participam ativamente de pelo menos um consórcio público[27]. O mesmo estudo identificou também que, de todos os consórcios atualmente em vigor, mais de 90% deles adotaram a personalidade jurídica de direito público, sendo regidos pela Lei nº 11.107/05.

No plano estadual, verifica-se a existência de consórcios macrorregionais, que incorporam Estados de mais de uma Região brasileira. Quatro são os consórcios interestaduais de maior relevância no cenário brasileiro; são eles: Consórcio Nordeste ambrangendo os nove estados da região Nordeste; Consórcio de Integração Sul e Sudeste (COSUD) que contempla todos os estados dessas duas Regiões; Consórcio Brasil Central que inclui o Distrito Federal, os Estados do Centro-Oeste e os Estados de Rondônia, Maranhão e Tocantins; e o Consórcio de Desenvolvimento Sustentável da Amazônia Legal que agrega todos os Estados da Região Norte e o Estado do Maranhão.

No que concerne à área de atuação, a pesquisa da CNM revelou que a área da saúde é a que recebe maior atenção na promoção de gestão consorciada de serviços públicos, merecendo a finalidade precípua de 181 consórcios públicos. Esse dado estatístico vai ao encontro do que afirmado no capítulo anterior, de que a gestão consorciada é um dos componentes viscerais da Política Nacional de Saúde Pública e se coaduna muito bem com os princípios e características do Sistema Único de Saúde.

Outra distinta conclusão do estudo que merece realce é que os consórcios públicos intermunicipais são predominantes em municípios de pequeno porte e com menor receita líquida, indicando que esses entes se socorrem à gestão consorciada como importante instrumento administrativos de promoção da eficiência e de implementação de políticas e serviços públicos essenciais. A dificuldade em prestar a atenção básica de saúde nesses entes, dado a falta de recursos e profissionais, estimula a adoção de parcerias e acordos com municípios próximos, enxergando-se nos consórcios uma segunda via para conservação de recursos públicos ao mesmo tempo em que se preserva o serviço básico de saúde local.

No contexto pandêmico, os consórcios públicos de saúde tiveram papel fundamental para se evitar o colapso dos sistema de saúde, dado o aumento exponencial de casos e, portanto, de pessoas que se socorreram aos hospitais e pontos de atendimento do SUS, bem como para se garantir uma melhor eficiência na prestação do serviço de saúde, em todas suas etapas de atuação, desde a vigilância sanitária até o atendimento em Unidades de Terapia Intensiva para os casos mais graves.

Nesse aspecto, vários são os exemplos de consórcios públicos que se beneficiaram do instrumento administrativo para aumentar a eficiência na adoção dessas medidas de combate à pandemia.

Observa-se, por exemplo, no Consórcio Intermunicipal de Saúde da Região Norte e Nordeste de Santa Catarina que promoveu uma gestão centralizada de divulgação de um painel público sobre casos de Covid-19 na região, bem como de realização de compras públicas (nas modalidades pregão e dispensa de licitação), de preparação e treinamento de equipes médicas, de unificação de protocolos e de recebimento de doações. O Consórcio instituiu a chamada Comissão Regional de Combate ao Novo Coronavíruso, atuando em diversas áreas, em especial na divulgação de notas técnicas orientativas, que visam normatizar a tomada de ações pelos municípios e informar as medidas a serem tomadas no sistema de saúde de cada município, de forma coordenada e conjunta. Além disso, o Consórcio autou, nos anos de 2020 e 2021, em licitações e compras conjuntas para enfrentar emergencialmente as necessidades de material e insumos para os hospitais da região, o que diminuiu substancialmente os custos de aquisição e os prazos de entrega para os municípios consorciados, uma vez que são realizadas compras de grande escala e em um único procedimento, reduzindo a logística necessária e o esforços dos municípios em realizar essas compras separadamente.[28]

Outro exemplo importante se refere à atuação do Consórcio Intermunicipal Grande ABC[29], que engloba os sete municípios da região do ABC Paulista, os quais possuem elevada importância no PIB do Estado de São Paulo e, segundo dados do IBGE, concentram quase três milhões de habitantes. Entre as medidas tomadas mediante gestão consorciada, cite-se: (i) negociação da compra de vacinas diretamente da China, que seriam distribuídas mediantes necessidades traçadas a partir do mapeamento da população de acordo com os grupos prioritários, eliminando a dependência de aguardar o Governo Federal[30]; (ii) realização de assembleias extraordinárias para determinação de medidas restritivas no âmbito de atuação do consórcios, com realização de testes e fiscalização conjunta de atividades e espaços públicos e privados; (iii) determinação de lockdown em todos os municípios integrantes; (iv) disponibilização de paineis com números de vacinados, recuperados, casos confirmados e mortes, incluindo a média morte e o respectivo recorte por município; (v) compra conjunta de quatorze milhões em equipamentos médicos e insumos para o combate à doença, destinados a todos os municípios da região.[31]

A atuação do Consórcio ABC é importante para que fique assentada a importância das compras compartilhadas pelos consórcios públicos, que se beneficiam pela desburocratização dos procedimentos e pela grande economia de escala obtida por compras de grande monta, beneficiando vários municípios. Além disso, o Consórcio ABC serviu de amparo legal e técnico para todos os municípios da região, uma vez que disciplinou as medidas que deveriam ser adotadas localmente, em linha com as melhores práticas. Da mesma forma, ficou responsável por toda a prática burocrática e jurídica relacionados a compras e contratações necessárias ao enfrentamento da Covid-19, reduzindo o trabalho burocrático dos municípios, o que lhes permitiu focalizar a atenção à saúde e na linha de frente do enfrentamento.

Seguindo nessa linha de bons exemplos, talvez a atuação mais notável e digna de menção se deu pelas ações tomadas pelo Consórcio Nordeste[32]. A primeira dessas medidas foi sem dúvidas a recente aquisição de 37 milhões de doses de vacinas, cuja compra foi realizada de modo centralizado pelo Consórcio e cuja distribuição e aplicação se darão mediante Plano Nacional de Imunização, sendo as doses remanejadas para todos os Estados do Nordeste e, as doses não aproveitadas por grupo prioritários serão enviadas para outros Estados do Brasil.

O Consórcio Nordeste também instituiu o chamado Comitê Científico de apoio ao combate da pandemia do novo cornavírus (Resolução nº̣ 05/2020), tendo como finalidade o assessoramente dos Estados consorciados na adoção de medidas para prevenção, controle e contenção de riscos, danos e agravos à saúde pública, visando reduzir a disseminação da doença e a estruturação do sistema de saúde. Compostos por cientistas e profissionais atuantes no enfrentamento da pandemia, o Comitê é responsável por coletar dados e centralizar a gestão de informações e técnicas a serem posteriormente informadas aos estados, visando gerar uma base de conhecimento única, apoiada no consenso científico e nas melhores práticas epidemiológicas.

Outras ações de importante relevo que merece destaque são: (i) realização de compras conjuntas de insumos e equipamentos, voltados para a abertura de novos leitos de tratamento intensivo; (ii) uniformização das alíquotas do ICMS sobre os bens adquiridos internacionalmente, visando ganho de escala na realização de compras conjuntas; (iii) implantação de sistema eletrônico, com o objetivo de prover informações aos usuários de saúde, criar canal de comunicação ágil entre os serviços de saúde e os usuários, permitir a coleta de informações sobre o estado clínico dos cidadãos, capacitar recursos humanos, absorver e transferir tecnologia para o SUS e permitir adequada alimentação do Registro Eletrônico de Saúde; (iv) uniformização, com respeito às especificidades de cada estado, e monitoramento das determinações governamentais voltadas à garantia do isolamento social; (v) divulgação de boletins epidemiológicos constantes, com evolução da situação epidemiológica por estado; (vi) criação de redes de pesquisa e de desenvolvimento tecnológico, visando obter novas técnicas de combate ao novo coronavírus e financiar pesquisas nesse sentido; (vii) desenvolvimento de outras ações e políticas públicas integradas, visando melhorar a qualidade de vida e saúde e prevenir demais riscos envolvidos com a pandemia.

Especialmente no que pertine às aquisições de bens voltados ao combate à pandemia, o Consórcio Nordeste se valeu de inúmeros instrumentos chamados de contratos de rateio, em que são definidos os valores, as regras e os critérios de participação financeira dos entes consorciados no custeio das despesas decorrentes da realização das aquisições conjuntas. Os custos de aquisição são rateados entre os entes consorciados de acordo com a capacidade financeira e a necessidade de cada um naquela aquisição.

Com isso, o Consórcio estima que se tenha sido drasticamente reduzido o custo global de aquisição em comparação com as aquisições isoladas de cada Estado componente do Consórcio. Além disso, o prazo para recebimento dos materiais adquiridos foi reduzido sensivelmente, visto que o recebimento ficou a cargo de um órgão centralizado, a quem coube distribuir de acordo com as exigências de cada Estado membro, facilitando a logística e agilizando a distribuição. O Consórcio estima que tenha havido uma redução de R$ 48,8 milhões (30% da compra global) na aquisição de dez tipos de medicamentos envolvidos no tratamento da Covid-19, somente no ano de 2020[33].

À vista do exposto e diante de todos os exemplos aqui colacionados, fica evidente, portanto, que a adoção de medidas centralizadas de gestão consorciada, que envolvem a cooperação, colaboração e atuação simultânea de todos os entes consorciados, têm o condão de promover o princípio da eficiência na atividade administrativa, por meio de uma governança mais célere e racional, que promova não somente a economia de recursos públicos, mas sobretudo a obtenção de resultados mais ágeis e satisfatório na promoção da saúde em um momento tão delicado.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Não resta dúvidas sobre a eficiência das gestões consorciadas durante a atuação no contexto pandêmico brasileiro. A aplicação de técnicas de gestão colaborativa em linha com a atuação do Sistema Único de Saúde têm sido uma estratégica muito eficaz na aplicação de medidas para superar ou, ao menos, mitigar ao máximo possível os efeitos da catástrofe enfrentada atualmente pelo Brasil.

Em se tratando da atividade da Administração Pública brasileira, os novos desafios exigem a adoção de inventivas técnicas e soluções. O ineditismo do caos pandêmico pela qual a geração atual passa e com a qual o administrador público se defronta impõe desafios para os quais não se encontra uma panaceia, tampouco soluções fáceis ou manuais prontos. No contexto de mais de 300 mil mortes, em recorrentes situações o gestor público se depara com verdadeiras escolhas de vida ou morte para determinar quais medidas deve tomar, buscando ao mesmo tempo impor o menor ônus possível à coletividade.

Nessa conjuntura, em que se conjugam caos sanitário e social, somados ainda a um grave problema de carência orçamentárias e engessamento nas contas públicas, impõem-se desmedidos desafios a todas as esferas da Administração Pública brasileira. Quando isso ocorre, não se vislumbra melhor saída do que o compartilhamento de informações e a adoção de protocolos e ações conjuntas.

Uma das poucas soluções disponíveis no momento, sem dúvidas, tem sido o manejo de instrumentos administrativos para contornar as dificuldades impostas; e, no âmbido da administração pública, uma das poucas medidas que podem ser tomadas para mitigar os riscos e os efeitos da crise sanitária têm sido a cooperação entre os entes subnacionais, mediante consórcios e convênios de cooperação.

Sobre o autor
Erick Teixeira Barreto

Graduando em Direito pela Universidade Federal do Ceará (UFC).

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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