Judicialização da Saúde: Até onde vai a responsabilidade dos médicos?

05/11/2021 às 10:51
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Um dos assuntos mais presentes na mídia nos últimos anos é a chamada judicialização da saúde (ou judicialização da medicina). O assunto está cada vez mais presente na mídia, em consequência da constante crescente dos processos que versam sobre o tema em nossos tribunais.

Na mesma medida, o chamado erro médico é assunto comum nas manchetes. Os eventos adversos ocorridos na prestação de serviços na área da saúde, que causam consequências às vezes trágicas aos pacientes, têm se tornado a cada dia um dos assuntos preferidos da mídia sensacionalista.

Inevitavelmente, muitas pessoas associam os dois temas (judicialização da saúde e erro médico) com uma relação de causa e consequência, tomando-as como um só fenômeno, e consequentemente, outorgando à classe médica a responsabilidade pelos crescentes números da judicialização da saúde. Equívoco que decorre geralmente da análise equivocada de dados e estatísticas, além da má fé de alguns interlocutores que distorcem a realidade, para vender notícias.    

Assim, entendemos como necessária uma cirúrgica e pontual intervenção acerca do tema, com a finalidade de desmistificar o assunto e demonstrar de maneira cabal que a responsabilização pelo agravamento da judicialização da saúde, que tão comumente é apontada para os médicos, não passa de uma falácia.

Inicialmente, cumpre esclarecer que a judicialização da saúde (ou de qualquer outra área) não é um fenômeno em si, mas sim um reflexo ou uma consequência de outros fenômenos. Trata-se de um sintoma, que aponta distorções a serem corrigidas. E os mesmos números e estatísticas divulgados pelo CNJ, usados para acusar a classe dos médicos, expõe que estas distorções estão em outro lugar.

Segundo o relatório do CNJ divulgado em 2019, houve um crescimento de 198% nos processos que versam sobre a saúde em um intervalo de 8 anos (entre 2009 e 2017) na primeira instância (período em que o numero total de processos sofreu uma diminuição de 6%). O movimento se repete na segunda instância, com um aumento de 85% no mesmo período (frente a um aumento global menor, de 32%).

  

Outro relatório, este divulgado pelo IPEA em 03/2020, mostra a abrangência que os processos que versam sobre a saúde tomaram no Brasil, nas últimas décadas:

Considerando-se todas as demandas da saúde (de natureza cível, não criminal), o número de processos acumulados, ajuizados até 31 de dezembro de 2018 e em trâmite no 1º grau, no 2º grau, nos Juizados Especiais, no Superior Tribunal de Justiça (STJ), nas Turmas Recursais e nas Turmas Regionais de Uniformização, somados, foi de mais de 2,2 milhões.

A análise fria destes dados, junto à influência gerada pela mídia tendenciosa e sensacionalista, de fato pode indicar (aos leigos, que são maioria), a equivocada impressão de que os médicos são os responsáveis pelos crescentes números. Sobretudo os cirurgiões plásticos e obstetras, que pertencem às especialidades médicas mais demandadas judicialmente.

Mas uma simples análise mais atenta e aprofundada dos números é suficiente para que se tenha uma diferente constatação.

O mesmo relatório do CNJ que apresenta os números mais acima citados, também informa quais são os 3 principais assuntos discutidos nos referidos processos, em primeira e segunda instância: Plano de saúde (30,3% em primeira instância), seguro (21,2%), e saúde (11,8%).

            Ora, o referido dado já é suficiente para demonstrar que a responsabilidade civil dos médicos está longe de ser o principal motivo das estatísticas. Haja vista que os termos plano de saúde e seguro direcionam para as ações em face das operadoras de saúde suplementar, e o termo saúde para as demandas que tratam da responsabilidade do Estado (SUS).

Mas um outro dado demonstrado pelo relatório torna a realidade ainda mais clara: O que trata das decisões de segunda instância. Conforme se infere do relatório abaixo, a maior parte das ações trata de medicamentos e produtos.

           

Conforme se verifica no gráfico acima, 69,1% das demandas trata do acesso a medicamentos. Na mesma seara, 63% das demandas versa sobre órteses, próteses e meios auxiliares. 55,6% sobre exames, 47,1% de procedimentos e 45,1% de leitos. Somente 2,9% é classificada com o termo erro médico.

Percebe-se, pois, a falácia que é a responsabilização dos médicos pelos números da judicialização, pois os números não mentem: O SUS (ou o Estado) e a Saúde Suplementar são os principais fomentadores de processos, desde que os números passaram a ser analisados.

Saúde Suplementar

A tese aqui defendida se torna ainda mais clara quando analisamos as demandas que correm junto ao STJ, conforme levantamento realizado no ano de 2018. Do total de processos que versam sobre a área da saúde no tribunal superior, 73% são contra os planos de saúde suplementar (sendo 35% sobre as negativas, 21% sobre os reajustes e 17% sobre manutenção dos planos).

Ou seja, do total de processos que versam sobre a saúde no STJ, somente 27% tratam de outros temas que não seja planos de saúde, estando dentre eles, a responsabilidade civil dos médicos. Portanto, notamos claramente quem é o grande vilão da judicialização da saúde. 

Ainda mais grave é o quadro apresentado pelo estudo conduzido pela USP, acerca dos casos que versam sobre a saúde suplementar, assunto que segundo divulgado pelo próprio TJSP em 2018 (gráfico abaixo), é líder de demandas no estado, ultrapassando até mesmo as demandas contra bancos e telefonia.

Conforme indica o estudo da USP realizado com base em todas as demandas havida no estado de SP entre 2013 e 2014, nada menos que 92,4% das demandas foram sentenciadas de forma favorável ao usuário (sendo 88,08% com procedência total, 4,29% parcial, e somente 7,39% improcedente, ou seja, favorável ao plano de saúde).

O dado escancara o fato de que os planos de saúde suplementar têm absoluta ciência da posição consolidada do Poder Judiciário acerca das matérias discutidas (no caso, plenamente favorável aos usuários). Contudo, seguem negando administrativamente o atendimento aos usuários, por ser a estratégia mais economicamente viável (já que a minoria de usuários judicializa e obtém o acesso à saúde conforme legalmente devido).

O estudo apontou ainda que as legislações mais utilizadas nas decisões foram o Código de Defesa do Consumidor (em 56,8% das demandas), e a Lei 9656/98 (em 56,6% dos casos). O que deixa cristalino que os planos de Saúde Suplementar descumprem recorrentemente o CDC e a própria Lei dos Planos de Saúde, causando o efeito devastador do crescimento da judicialização, por mero interesse financeiro.

Papel da ANS

Em meio ao caos até então demonstrado, uma pergunta óbvia vem à mente: Onde está a ANS para coibir a atuação dos planos de Saúde Suplementar?

Infelizmente, o que constatamos da análise do quadro atual é que a regulação da ANS além de falha, é propositalmente omissa. Embora os planos desatendam recorrentemente não só o CDC (aplicável a estes, por força da súmula 608 do STJ), mas também a própria Lei dos Planos de Saúde. E a ANS ratifica tais práticas, mesmo a justiça as considerando abusivas. Um total contrassenso.

O que se nota é que a agência foca sua atuação, parte com base na Lei 9656/98 (somente no que interessa aos planos de saúde), parte nas normativas que ela própria edita, ignorando quase que completamente disposições claríssimas do CDC, do Código Civil e até mesmo da Constituição Federal de 1988, fazendo com que a justiça seja a real reguladora do setor (mas atendendo somente a quem judicializa).

Nota-se, pois, que a judicialização da saúde, além de responsabilidade dos planos de Saúde Suplementar, é também uma opção regulatória da própria ANS.

Acesso à Saúde

Com a análise dos dados apresentados, é inegável que além da Saúde Suplementar, a Saúde Pública é mais uma grande responsável pelos números da Judicialização da Saúde. 

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Sendo um país subdesenvolvido e único do mundo com mais de 100 milhões de habitantes que optou pelo sistema universal de saúde, de fato não causa surpresa a necessidade de judicialização para acesso à saúde pública.

Segundo o estudo do CNJ, em um período de 7 anos, houve um aumento de cerca de 1.000% nos gastos públicos com a saúde, que passou de 122,6 milhões em 2010 para 1,313 bilhões em 2016. Somados aos gastos dos estados e municípios, o custo anual ultrapassa os 7 bilhões de reais. Contudo, mais de 90% deste valor é referente somente ao fornecimento dos 10 medicamentos de mais alto custo.

O relatório do IPEA (2020) foi cirúrgico em analisar o quadro atual, e os motivos pelos quais a judicialização para acesso à saúde só cresce:

Em resumo, verifica-se a inobservância da legislação nacional que regula as questões sanitárias envolvendo o acesso às tecnologias em saúde no país.

Também permanecem ignoradas as políticas públicas que estabelecem o que será ofertado (quais medicamentos, exames etc.), por que (quais as razões técnicas para a decisão tomada pela administração pública), como (em quais condições/de que forma o atendimento será feito) e de quem é a competência da provisão imediata do bem ou serviço (qual ente da Federação é o responsável, considerando os arranjos organizativos do SUS).

Assim, podemos afirmar sem sombra de dúvidas que além da Saúde Suplementar, temos na Saúde Pública mais um grande fomentador da judicialização.                    

Responsabilidade Civil dos Médicos

Muito embora o presente estudo aponte na direção contrária à dos médicos no aspecto da responsabilidade pelo aumento da judicialização como um todo, a questão não deixa de ser sensível.

Pois é notável o aumento da judicialização também contra médicos, no que tange à responsabilidade civil. Sobretudo durante a pandemia do COVID-19, momento em que houve um aumento em grande escala nas referidas ações.

No estado de MG, o aumento das ações no ano de 2021 (somente até setembro) é estimado em pelo menos 25% em relação aos 3 anos anteriores. Algo deveras preocupante.

Podemos citar uma série de motivos para este aumento. Felizmente, a maioria não ligados a eventual aumento dos casos de negligência, imprudência e imperícia, e sim a fatores externos à relação médico-paciente, mas que influenciam diretamente nesta. Fato que demanda a cada dia mais cuidado por parte dos médicos em relação ao preventivo jurídico, no sentido de evitar as ações judiciais, e garantir que não sejam condenados, caso ocorram.

Conclusão

Sobre a judicialização para acesso à saúde, podemos afirmar que há lados positivos e negativos. Sem delongar no assunto, podemos avaliar como pontos positivos o fomento às políticas públicas e sua constante revisão, e como negativos, a desorganização financeira e a fragilização da isonomia no acesso à saúde. Contudo, trata-se de uma discussão para outro momento.  

Fato é que o crescimento da judicialização revela de forma clara e cristalina o desatendimento do Estado de suas obrigações constitucionais, e a maior consciência dos indivíduos quanto aos seus direitos, além da predisposição do Poder Judiciário em reconhecer este direito.

Contudo, uma constatação inegável é que, frente aos números apresentados, a indicação dos médicos e sua responsabilidade civil como causa do aumento da judicialização é no mínimo, um grande equívoco.

Sobre o autor
Renato Assis

Advogado inscrito na OAB dos estados de BA, ES, MG, PR, SP e RJ; Professor de Direito e empresário; Graduado em Direito pela Universidade FUMEC-MG; Especialista em Direito Processual pela PUC-MG; Especialista em Direito Médico pela Universidade de Araraquara/SP; MBA em Gestão Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas/RJ; Especialista em Direito Ambiental e Minerário pela PUC/MG; Professor do curso de Direito Médico e Odontológico da UCA (Universidade Corporativa da ANADEM); Autor do livro “Direito Processual e o Constitucionalismo Democrático Brasileiro” – 2009; Autor do livro “Socorro Mútuo: Como a Proteção Veicular revolucionou o mercado de Proteção Patrimonial e de Seguros do Brasil” – 2019; Conselheiro Jurídico e Científico da ANADEM – Sociedade Brasileira de Direito Médico e Bioética; Acadêmico Efetivo e Vitalício na área de Ciências Jurídicas da ALACH – Academia Latino-Americana de Ciências Humanas; Membro da AIDA – Associação Internacional de Direito do Seguro; Membro da WAML – World Association for Medical Law; Presidente da Unidade Brasil da ASOLADEME – Associación Latinoamericana de Derecho Médico.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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