Capa da publicação Acordos no processo penal: possíveis inconstitucionalidades
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Pesos e contrapesos da Justiça negociada.

As possíveis inconstitucionalidades dos acordos no processo penal

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08/11/2021 às 09:53
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3. Aspectos Circunstanciais Antijurídicos dos Acordos: O Vício no Negócio

Avaliando em retrospectiva, conforme todo o exposto, cumpre recapitularmos alguns pontos importantes acerca da temática dos acordos no nosso sistema processual penal. Inicialmente, destaca-se o sistema brasileiro é oriundo do sistema acusatório e inquisitório, em uma mescla de ambos, denota-se também que, no intuito de se reduzir o número de processos e melhorar a colheita de prova, o processo penal brasileiro tem adotado constantemente a prática dos acordos penais, entretanto, tal prática ainda enfrenta certa resistência para crimes de maior expressão ou potencial ofensivo.

Apesar dos avanços, denota-se que, principalmente aos acordos de colaboração premiada, onde ocorre uma verdadeira negociação da pena, tais foram inspirados no sistema adversarial negocial oriundos da commom law norte americana, e como tal, existem contrapontos que não poderiam ser aceitos no ordenamento jurídico brasileiro.

Num desses contrapontos, encontramos a figura do blefe (bluff). Na visão de Hessick Mesmo se a evidência for inadmissível, o promotor pode usá-la como alavanca sobre o réu na negociação de confissão, blefando que a evidência é realmente admissível. (...) O promotor, da mesma forma, pode ameaçar apresentar as evidências na sentença (HESSIK, 2002, p. 196) (Tradução livre)

Tal atitude por parte de um promotor no Brasil, seria inadmissível, ante ao princípio da publicidade das provas, e do contraditório e da ampla defesa. O Ministério Público jamais poderia manter em sigilo provas, mesmo que inadmissíveis, para barganhar num acordo de colaboração premiada, ou não persecução penal. Segundo Norberto Avena Considerando a importância das questões atinentes ao processo penal, nada mais correto do que sejam elas tratadas publicamente. Por isso, os atos que compõem o procedimento, inclusive a produção de provas, não devem ser efetuados secretamente. (AVENA, 2014, p.1370). Portanto, não haveria espaço para os blefes, e se ocorressem, fatalmente levaria a nulidade do acordo, ante não só a violação do princípio recém citado, como também ao da violação da livre vontade, que, de acordo com Fredie Didier Jr a vontade, portanto, não é apenas pressuposto fático do ato jurídico, mas ela também atua no âmbito de sua eficácia, no âmbito da escolha de categoria eficacial e de seu conteúdo, sempre dentro dos limites traçados pelo sistema (DIDIER & BOMFIM, 2016, p. 33).

Produzir e manter provas em segredo, inclusive, fere a Constituição Federal, ante disposição do artigo 93, IX, in verbis:

IX - todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação;

Ou seja, mesmo que os dados e obtenções de prova sejam classificados como sigilosos e não abertos ao público, ainda sim, devem ser disponibilizados os acessos a tais materiais à defesa do acusado, para que este possa se defender de maneira correta.

3.1. Acordos Penais como Negócios Jurídicos: Possível Nulidade por Vicio de Vontade

Antes de seguir no caminho das circunstâncias que acarretariam a nulidade de um acordo, seja de colaboração premiada, seja transação ou não persecução penal, cumpre-nos destacar antes a classificação da natureza jurídica que da origem aos acordos.

Tanto os acordos de não persecução penal (ANPP), e os acordos de colaboração premiada são retratados como negócio jurídico processual. O acordo de não persecução penal é caracterizada por um negócio jurídico que consubstancia a política criminal do titular da ação penal pública na persecução dos delitos (CABRAL, 2021, p. 89), já quanto aos acordos de colaboração premiada, a vontade atua na definição e escolha de categorias jurídicas processuais e materiais. A colaboração premiada é um negócio jurídico processual e material. (DIDIER & BOMFIM, 2016, p. 36).

Fredie Didire Jr ainda complementa a natureza jurídica dos acordos de colaboração premiada como:

Em síntese, a colaboração premiada prevista na Lei nº 12.850.2013 é (i) ato jurídico em sentido lato, já que a exteriorização de vontade das partes é elemento cerne nuclear do seu suporte fático; (ii) é negócio jurídico, pois a vontade atua também no âmbito da eficácia do ato, mediante a escolha, dentro dos limites do sistema, das categorias eficaciais e seu conteúdo; (iii) é negócio jurídico bilateral, pois formado pela exteriorização de vontade de duas partes, e de natureza mista (material e processual), haja vista que as consequências jurídicas irradiadas são de natureza processual e penal material; (iv) é contrato, considerando a contraposição dos interesses envolvidos. (DIDIER & BOMFIM, 2016, p. 37).

Já Rodrigo Cabral complementa seu entendimento acerca da natureza jurídica do acordo de não persecução penal, como:

De tal maneira, cabe aqui reforçar que a natureza jurídica do acordo de não persecução penal é a de negócio jurídico, em que o Ministério Público veicula uma política criminal (eleição de prioridades), regrada pelos termos do art. 28-A do Código de Processo Penal. (CABRAL, 2021, p. 90).

Portanto, os acordos no processo penal, como instrumento processual, são classificados como negócio jurídico e, consequentemente, trazem consigo as regras de um negócio jurídico, como a bilateralidade, expressa voluntariedade em compor o negócio, objeto e forma. Assim como o regramento para se ter um negócio jurídico, a expressa violação de um de seus princípios, acarreta em nulidade do mesmo.

Tanto a lei quanto as resoluções estabelecem o objeto e a forma do acordo de não persecução penal e da Colaboração Premiada, bem como os agentes que figuram nos presentes instrumentos processuais. Assim sendo, o objeto do negócio jurídico ora tratado seria a confissão das acusações em troca dos benefícios no cumprimento da pena, por meio escrito, tendo como agente o promotor de um lado e o acusado/réu de outro. Estes elementos essenciais do negócio jurídico dificilmente teriam sua validade contestada. Por fim, resta o elemento da exteriorização vontade em compactuar o negócio jurídico.

A vontade em compactuar um acordo de não persecução ou de colaboração premiada com o Ministério Público é elemento indispensável para validade do acordo. Portanto, esta deve estar livre de quaisquer vícios ou coação para sua validade, cabendo ao magistrado, antes de homologar, adotar mecanismos que ajude-o a identificar se houve ou não o vício de vontade.

O controle de validade há de ser garantido, notadamente para aqueles que não tiveram a oportunidade de participar do processo de homologação, com poder de influência prévio. Se não há meio específico, é preciso que se encontre algum dentro do sistema. No âmbito do processo penal, os remédios constitucionais do habeas corpus (para o caso de haver restrição ou risco de restrição à liberdade) e o mandado de segurança contra ato judicial (para os demais casos) podem ser tidos como meios idôneos previstos pelo próprio sistema para que tal controle seja requerido. Deve-se ver, aliás, que mesmo aqueles que sejam parte no acordo e no processo de homologação, em algumas hipóteses, poderiam, sendo o caso, postular o controle de validade por exemplo, hipótese de contrato de colaboração celebrado mediante coação. (DIDIER & BOMFIM, 2016, p. 48)

A vontade deve ser resguardada, na sua mais íntima virtuosidade, para que se garantam os verdadeiros efeitos justos da justiça consensual. Um exemplo de vontade viciada, deu-se na Geórgia, quando em 2004 foi preso preventivamente sob alegação de que poderia fugir do país e destruir provas, quando acusado dos crimes de corrupção, apropriação indébita e outras fraudes, e enquanto esteve preso, o estado tratou de colocá-lo preso em conjunto com um homicida, e com o mesmo homem que o sequestrou quatro anos antes, e o agrediu, tendo-o libertado mediante pagamento de resgate, ante a toda essa pressão psicológica realizada pelo Estado, o então investigado, senhor Natsvlishvili aceitou todos os termos no acordo proposto pela Promotoria (WINTER, 2019, p. 18).

Nessas condições, o acusado viu-se completamente acuado ante às pressões exercidas pela promotoria que o acusava, sendo compelido, moral e psicologicamente, a aceitar quaisquer que fossem os termos do acordo proposto, abdicando do direito de enfrentar um julgamento em que poderia tê-lo inocentado, em virtude de sua integridade física e psicológica.

Hessik demonstra que no caso de evidências fracas, o promotor não tem influência sobre o réu, e as barganhas que ele pode propor não terá apelo, seja para o réu porque as chances de condenação são tão baixas. (HESSIK, 2002, p. 196 tradução livre). Dessa forma, visando conseguir uma confissão de culpa, o MP adotaria certas estratégias para forçar o investigado a assumir os delitos.

Segundo Lorena Winter, esta predispõe que os acordos e a voluntariedade devem ser observadas com certa cautela:

O núcleo essencial que legitima este instrumento de resolução do processo penal - e com isso, não afirmo nada de novo - se assenta sobre a base de que a declaração de vontade seja manifestada de forma livre. Precisamente para garantir que a condenação seja aceita de maneira voluntária e livre é que se estabelece o controle judicial. O controle judicial fundamenta-se sobre outra premissa: se o acusado tivesse aceitado o acordo extrajudicial como consequência de pressões indevidas, no comparecimento perante o juiz teria a oportunidade de manifestá-lo; e se não o faz, o sistema conclui que a aceitação foi voluntária. (WINTER, 2019, p. 21)

Portanto, em que pese na oportunidade de contestar o acordo, o acusado não o faz, este pode ainda estar sob os efeitos de coação do órgão acusador, cabendo assim ao juiz analisar não só os termos do acordo em si, mas as circunstâncias que levaram o acusado a firmar tal acordo, vez que estas poderiam influir diretamente no livre arbítrio do acusado.

O ocorrido no caso Natsvlishvili vs Geórgia claramente tratou de um caso de coação, que deve ser evitado pelo MP brasileiro. O vício da vontade é elemento suficiente para a nulidade do negócio jurídico, e, como tratado anteriormente, os acordos penais, sejam de não persecução, sejam de colaboração premiada, tratam-se de negócios jurídicos e, consequentemente, deve ser mantida a virtuosidade da exteriorização da vontade, não podendo o acusado ser compelido forçosamente a firmar um acordo de não persecução penal ou acordo de colaboração premiada, sob pena de nulidade e, nos casos da colaboração premiada, que tem como viés não só a condenação, mas também obtenção de provas, fazer com que todas as provas oriundas de um acordo cuja vontade tenha sido viciada, sejam consideradas inadmissíveis.

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CONCLUSÃO

É certo que o instrumento processual dos acordos se tornaram parte importante para o funcionamento pleno das engrenagens da justiça processual penal no Brasil, trazendo maior celeridade aos processos, maior facilidade quanto à colheita de provas, redução dos processos criminais a serem julgados pelo estado, economia processual, e todos os princípios que foram inaugurados com o advento da Lei 9.099/95, que trouxe ao ordenamento jurídico os juizados especiais criminais e os primeiros passos da justiça consensual e justiça negociada.

Os acordos no processo penal tomaram proporções inimagináveis após a lei 12.850/13, que instituiu a colaboração premiada. Com isso, vários investigados oriundos do crime organizado realizaram acordos que previam ressarcimento de valores ilícitos aos cofres públicos e entrega de provas incriminadoras de terceiros ao Ministério Público, bem como renúncia ao silêncio e confissão formal de culpa, em troca de benefícios no cumprimento da pena. E com a lei 13.964/19, sobrevieram os acordos de não persecução penal, no intuito de reduzir o número de processos criminais na justiça, pautados nos mesmos princípios da transação penal (9.099/95).

Apesar do plea bargain não estar presente em sua originalidade no direito brasileiro, é seguro dizer que exista uma adequação deste instrumento processual, modificado para estar de acordo com nosso regramento constitucional. O acordo de colaboração premiada e o acordo de não persecução penal, refletem a existência da justiça negociada no Brasil, onde o promotor público e o autor do delito entram em comum acordo, negociando os termos da culpa do acusado, em troca de benefícios na sentença, e dessa forma, trazendo economia processual ao Estado.

Contudo, há de se ressaltar que, com as vantagens trazidas pela justiça negociada, devem ser tomados certos cuidados para com os possíveis vícios que podem prejudicar os acordos, em principal, o da livre manifestação da vontade, onde o agente acusado poderia sentir-se coagido, ante a manobras do agente acusador, afim de compeli-lo a se declarar culpado e aceitar quaisquer que sejam os termos do acordo.

É necessário certo controle para que sejam evitadas certas circunstancias capazes de influir na voluntariedade do agente em realizar o acordo. A virtuosidade da vontade deve ser plena e transparente, por parte do acusado, em aceitar negociar os termos, não podendo o Ministério Público pressioná-lo para tal, como prender preventivamente por tempo indeterminado ou ameaçar que as investigações alcancem familiares.


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Abstract: This article will bring the negotiated justice in evidence in Brazil, from its historical emergence with law 9. 9099/95, which brought the first negotiation institute to the Brazilian criminal process, the penal transaction, the attempts of legislative change to implement the plea bargain in the Brazilian legal system, and, finally, it shows the current negotiated justice, with a major focus on the agreement not to prosecute and the collaboration with the parties, which bring with them certain similarities with the American plea bargain, in a first moment, demonstrating its advantages for the judicial system and for the criminal process, as a form of effectiveness in the fulfillment of justice, and the care that must be taken when proposing and ratifying the agreements, in order to avoid possible vices and unconstitutionalities that may arise with the procedural instrument of consensual justice.

Key Words: Negotiated Justice - Coercion - Agreements - Legal Nature.

Sobre o autor
Marcio Messias Cunha

Advogado; Mestre em Direito pelo IDP - Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa; Doutorando em Direito Constitucional pelo IDP - Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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Artigo feito pelo autor na qualidade de Doutorando em conjunto com o IDP - Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa;

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