ARBITRAGEM NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA
Por Gleibe Pretti
O emprego da arbitragem para a resolução de litígios que envolvem a Administração Pública é prática antiga, cuja legalidade encontra amparo na hodierna legislação nacional (LEMES, 2007). Esse reconhecimento legal, amplo e expresso, da arbitragem envolvendo a Administração Pública, é um fenômeno recente, cuja consolidação remete à alteração normativa ocorrida com o advento da lei Federal 13.129/2015, que reformou a lei Federal 9.307/1996, popularmente conhecida como a lei da arbitragem (SALLES, 2011).
A consolidação do entendimento de que a Administração Pública pode se submeter à arbitragem sedimentou-se, paulatinamente, na jurisprudência, a partir do julgamento do Caso Lage, pelo Supremo Tribunal Federal, em 14 de novembro de 1973, em que fora reconhecida a possibilidade de que um árbitro definisse o montante de uma indenização devida pela União (STF RTJ 68/382).
A fim de conhecimento, no Estado de São Paulo, a Procuradoria-Geral do Estado desenvolveu a arbitragem como um expediente contratual próprio para as Parcerias Público-Privadas do Estado, adotando-a, tecnicamente, como método de solução de controvérsias. Ainda a título de exemplo, o Município do Rio de Janeiro adotou a arbitragem como meio de solução de controvérsias na PPP do Porto Maravilha, um audacioso projeto de revitalização da zona portuária da cidade (JUNQUEIRA, 2013).
Nesse contexto, constata-se uma tendência entre as câmaras de arbitragem nacionais de desenvolver regulamentações específicas aos procedimentos arbitrais envolvendo a Administração Pública.
Destacam-se as Resoluções Administrativas 03/2014 e 02/2016, do Centro de Arbitragem da Câmara de Comércio Brasil-Canadá (CAM/CCBC), que dispõe sobre procedimentos e sobre a interpretação do Regulamento do CAM/CCBC em procedimentos arbitrais que envolvem a Administração Pública brasileira.
Acerca da Administração Pública na arbitragem, necessária a observância de certas peculiaridades no procedimento alternativo de solução do conflito. Tais particularidades decorrem da função estatal envolvida no litígio arbitral, que atrai as regras norteadoras do sistema democrático e do regime público, em especial para garantir a fiscalização das condutas do Poder Público pelos órgãos de controle e pela sociedade. A legitimidade da arbitragem depende da consideração por aqueles envolvidos direta ou indiretamente no tratamento do conflito por juízo arbitral, cabendo aos árbitros, aos prepostos e aos procuradores das partes o dever de adequação da utilização do instituto da arbitragem pela Administração Pública.
É certo que, em qualquer agir ou não agir, a Administração Pública obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência, nos termos do art. 37, caput, da Constituição Federal e aos preceitos insculpidos nos incisos e parágrafos do mencionado dispositivo constitucional. A atividade estatal que não esteja em consonância com eles será eivada de nulidade, que poderá ser decretada tanto pela própria Administração Pública quanto pelo Poder Judiciário.
A lei 9.307/96 prevê expressamente que a sentença arbitral pode ser declarada nula por meio da promoção de ação judicial pela parte interessada. É o que disciplina o art. 32 e seguintes da lei de arbitragem. Por isso que a arbitragem que tenha a participação da Administração Pública apresenta especificidades que devem ser observadas, como forma até mesmo de conferir segurança jurídica ao instituto arbitral. O instrumento que conferirá a legalidade da arbitragem é a convenção arbitral, que pode ser instrumentalizada por meio de cláusula arbitral ou compromisso arbitral.
A convenção arbitral deve garantir que os conflitos envolvendo a Administração Pública, que forem submetidos à arbitragem, discutam efetivamente direitos patrimoniais disponíveis. A indicação de interesse público indisponível abre a possibilidade de intervenção do Poder Judiciário, com análise do procedimento arbitral e eventual decretação de sua nulidade.
Aqui pode ser encontrado um dos maiores entraves da adoção da arbitragem pelo Poder Público, pois a diferenciação entre direito patrimonial disponível e direito indisponível é traçada por uma linha muito tênue, sendo plenamente possível que as dimensões da indisponibilidade e da disponibilidade restem nebulosas (SCHIEFLER, 2014).
A promulgação da Constituição Federal de 1988 conferiu uma nova roupagem ao direito administrativo, de modo a torná-lo contemporâneo. Uma das regras introduzidas consistiu na observância da boa governança no processo administrativo, que remete a Administração Pública ao protagonismo na implementação dos direitos fundamentais e à condução das ações governamentais com a adoção de mecanismos participativos que permitem a oitiva dos indivíduos e das entidades afetadas por suas decisões (OLIVEIRA, 2017).
A boa governança, com isso, permite que as decisões administrativas sejam tomadas com base na verificação do interesse público e em consonância com os princípios administrativos, dentre eles a eficiência, a motivação, a proporcionalidade, a imparcialidade e o participativo, que devem ser aplicados no caso concreto, de modo a conferir legitimidade ao processo decisório (SCHIEFLER, 2014).
Nesse ponto, importante ressaltar um aspecto relevante que se dá até a entrada em vigor da lei 13.129/2015, onde a doutrina ainda divergia em relação ao uso da arbitragem pela Administração Pública. Salomão (2011), por exemplo, entendia que o juízo arbitral só poderia ser acionado pelo poder público se fosse através da Administração Pública indireta. Ou seja, o Estado, quando da execução indireta do serviço público, poderia criar pessoas jurídicas para assim procederem.
Neste sentido, empresas públicas, sociedades de economia mista ou até mesmo as parcerias público-privadas poderiam adotar a Arbitragem quando o contrato abordasse direitos meramente disponíveis, passíveis de valoração patrimonial, e a causa versasse sobre atividade econômica. No entanto, ficaria proibida a adoção do juízo arbitral quando o contrato dispusesse sobre a execução de algum serviço público.
Ainda segundo Salomão (2011), considerando que a Administração Pública tem princípios e regras próprios, a utilização do juízo arbitral para resolução dos litígios originados de contratos administrativos, os quais apresentem como partes Administração Pública e um particular, mostra-se eficiente e célere, vindo a alcançar o interesse público de forma mais prática e benéfica para a sociedade.
Desde a regulamentação do uso do procedimento arbitral, foi percebido um uso crescente da arbitragem por particulares e pelo meio empresarial para a composição de conflitos, sem a intervenção, a princípio, do estado-juiz. Mesmo antes da alteração ocasionada pela lei nº 13.129/15, muitos autores entendiam ser aceitável o uso da arbitragem também pela Administração Pública, na solução de contendas com o particular. Em 2015 já estavam superadas as objeções iniciais à utilização da arbitragem pela Administração Pública, dado o avanço da legislação, da doutrina e da jurisprudência nos últimos anos.
Em relação à legislação, conforme Nogueira (2009, p. 125-141), o princípio da legalidade autorizava a aplicação da arbitragem nos contratos firmados com o Poder Público, uma vez que já estava previsto em diversos dispositivos legais, como no artigo 11 da lei de Parceria Público-Privada e no artigo 23-A da lei 8.987/05, que dispõe sobre a Concessão e Permissão de Serviços Públicos. Mesma conclusão foi obtida por Juliane Locks (2012, p. 19-20).
Importante ressaltar que o artigo 1º da lei nº. 9.307/1996 não impedia que o poder público fizesse uso da arbitragem para a solução de conflitos envolvendo contratos administrativos. Com efeito, a ordem legal referida não apresenta qualquer vedação quando menciona que as pessoas capazes de contratar poderão valer-se da arbitragem para dirimir litígios relativos a direitos patrimoniais disponíveis.
Em relação à doutrina, o entendimento jurisprudencial dos tribunais superiores do Brasil já autorizava a opção pelo uso da arbitragem pela Administração Pública, quando em contrato com o particular. É possível citar, por exemplo, o julgamento do Recurso Especial nº 606.345 de 2003, no qual o voto proferido pelo Ministro Relator João Otávio de Noronha demonstra claramente a aplicabilidade da Arbitragem nos contratos administrativos.
Ressalta-se, ainda, o julgamento do Mandado de Segurança nº. 11.308 de 2005. Nele, o ministro relator Luiz Fux, em seu voto, enalteceu o uso da Arbitragem pelas Sociedades de Economia Mista e deu enfoque aos direitos disponíveis transacionáveis pela Administração Pública. O ministro ressaltou ainda a afastabilidade do juiz natural quando convencionada a adoção da convenção arbitral.
Alterações causadas pela lei nº. 13.129/15
A lei 13.129/2015 trouxe três parágrafos que alteraram o texto original da lei nº 9.307/96 e puseram fim às divergências jurídicas. Abaixo estão alguns trechos do referido dispositivo legal, os quais autorizam a utilização da arbitragem pela Administração Pública.
Art. 1º
§ 1º A Administração Pública direta e indireta poderá utilizar-se da Arbitragem para dirimir conflitos relativos a direitos patrimoniais disponíveis.
§ 2º A autoridade ou o órgão competente da Administração Pública direta para a celebração de convenção de Arbitragem é a mesma para a realização de acordos ou transações.
Art. 2º
§ 3º A Arbitragem que envolva a Administração Pública será sempre de direito e respeitará o princípio da publicidade.
Se a Administração Pública deve agir apenas com base na lei, de acordo com o princípio da legalidade, pode-se concluir que o poder público pode sim recorrer à arbitragem, vez que há ampla legislação autorizativa neste sentido. A título de exemplo, há a lei de Concessões Públicas (lei nº 8.987/95), que admite, em seu artigo 23-A, o emprego de mecanismos privados para resolução de disputas decorrentes ou relacionadas ao contrato, inclusive a arbitragem.
Da mesma forma, a lei nº 13.303/16 permite que sociedades de economia mista solucionem conflitos entre acionistas e a sociedade por meio da arbitragem. A lei de Licitações (lei nº 8.666/93), por sua vez, em seu artigo 54, caput, dispõe que os contratos administrativos de que trata esta lei regulam-se pelas suas cláusulas e pelos preceitos de direito público, aplicando-se lhes, supletivamente, os princípios da teoria geral dos contratos e as disposições de direito privado.
Segundo Nogueira (2009, p. 125-141), a possibilidade, conferida por lei, para adoção da arbitragem como forma de solução de conflitos atesta evolução do direito administrativo brasileiro, dado que este método favorece a solução célere e eficaz de conflitos pela via consensual. Importante destacar que com a utilização da arbitragem, há uma flexibilização do princípio da indisponibilidade do interesse público, outrora engessado pela doutrina clássica. Trata-se de um rompimento com a visão da relação de verticalidade entre a Administração Pública e os particulares, de modo a permitir a existência de relações jurídicas horizontais.
O professor Carmona (2016, p. 7-21), motivado pela alteração decorrente da lei 13.129/2015, ressalta diversos desafios referentes à utilização da Arbitragem pela Administração Pública. Para ele, a lei nº 9.307/96, na sua origem, não se preocupou com o Estado e suas particularidades, sendo regulamentada apenas recentemente. O autor enfatiza que a Administração Pública deve se adaptar à arbitragem para que possa se manter competitiva em suas contratações, em especial no âmbito das parcerias público-privadas. Como pontos de atenção, o autor ressalta: a escolha do órgão arbitral; a nomeação de árbitros; as custas e despesas; a verba honorária; a sede de arbitragem; o idioma e a publicidade.
Sobre a escolha do órgão arbitral, o professor Carmona (2016, p. 7) entende ser possível a utilização da arbitragem ad hoc; porém, devido a sua falta de expertise, é natural a escolha de uma arbitragem institucional, uma vez que, apesar dos custos mais altos, haveria maior estrutura para o desenvolvimento do processo.
O autor defende que a escolha da instituição seja feita já na cláusula compromissória, visto que, após o surgimento do litígio, já existirá alto grau de desconfiança entre as partes e um acordo será mais difícil. Incabível, ainda, a promoção de licitação entre as entidades que oferecem o serviço, visto que os critérios são muito diferentes: preço, serviços oferecidos, qualidade das instalações, regulamento, existência ou não de lista de árbitros, experiência prévia e outros. Entretanto, a Administração Pública deve definir, no contrato, parâmetros realistas, que atendam às necessidades das partes. Para Carmona (2016, p. 7-21), também é perfeitamente possível a escolha de entidades com sede no exterior, como a CCI Câmara Internacional do Comércio, ou a LCIA Tribunal de Arbitragem Internacional de Londres.
A questão das custas e despesas também é problemática para a realização da arbitragem, uma vez considerada a burocracia e a limitação orçamentaria da Administração Pública. Carmona (2016, p. 7-21) argumenta que a solução prática é a antecipação das custas pela parte adversária; porém, tal prática pode gerar diversos outros problemas, dando margem, por exemplo, ao abuso de poder por parte do Estado. O professor defende que, caso o Estado inicie o procedimento, ele deverá arcar com as despesas devidas. Neste sentido, caso a Administração Pública de fato pretenda se envolver em arbitragens, é necessário criar mecanismos e verba específica a fim de custear estes processos.
Do mesmo modo das despesas e custas, a verba honorária também se apresenta como impasse. Segundo Carmona (2016, p. 7-21), a tendência da administração é no sentido de evitar a incidência da verba e, naturalmente, a parte contrária pensará de forma diversa. Para o autor, a melhor forma de resolver o problema seria evitar surpresas, incluindo, desde logo, na convenção de arbitragem, se haverá ou não a incidência de verba honorária.
Quanto à sede da arbitragem e ao idioma, Carmona (2016, p. 7-21) afirma que, por questão de segurança e conveniência, a Administração Pública provavelmente optará pela realização em território nacional, de modo que a sentença seja aqui proferida. Porém, não há impedimento para que o Estado celebre convenção arbitral prevendo o desenvolvimento do processo em terras estrangeiras. Quanto ao idioma, a aplicação da lei brasileira à arbitragem envolvendo o Estado, sugere a utilização do idioma português no procedimento. Nada impede, todavia, que sejam elaborados documentos em língua estrangeira, depois traduzidos para o português.
Finalmente, quanto à publicidade, princípio constitucional, o professor Carmona (2016, p. 7-21) defende que as partes deixem claro, na cláusula compromissória, qual grau de publicidade que pretendem dar ao procedimento, atribuindo às partes o dever de tornar públicos os atos e os documentos determinados. Tal atribuição poderia ser delegada aos órgãos arbitrais institucionais, que organizariam um dossiê para informar o público. O professor é particularmente contra a publicitação de todos os documentos e atos visto que, segundo ele, traria ineficiência ao processo e colapsaria o funcionamento do órgão arbitral.
Em 2017, após transcorrido mais de um ano da entrada em vigor da reforma da lei 13.126/15, Sombra (2017, p. 54-72) discorre sobre a superação da primeira fase de obstáculos e crenças levantados contra a arbitragem celebrada pelo poder público. Ele destaca que, neste momento inicial, devido ao cenário de crise política e econômica, que geraram instabilidade no ambiente de negócios, a previsão de convenções arbitrais teve menor incidência em detrimento da solução convencional de litígios por meio do Poder Judiciário. O autor chama atenção ao fato de que, em 2017, apenas duas arbitragens envolvendo a Administração Pública haviam sido identificadas após a entrada em vigor da reforma da lei nº. 13.126/15. Ambas ocorreram perante o Centro de Arbitragem e Mediação (CAM) da Câmara de Comércio Brasil-Canadá (CCBC). Uma envolveu o Estado de Pernambuco e referia-se à Arena Pernambuco; a outra, uma disputa com a União envolvendo a Secretaria dos Portos.
Naquela época (2017) o autor já ressaltava que, apesar do baixo número de disputas arbitrais envolvendo a Administração Pública, eram altas as expectativas em torno do aumento do emprego desta forma de resolução de conflito. Como será visto nas próximas seções, de fato o emprego da arbitragem aumentou consideravelmente, e a expectativa atual é de que cresça ainda mais.
Sombra (2017, p. 54-72) afirma ainda que, para se consolidar enquanto meio alternativo de resolução de conflitos para a Administração Pública, a Arbitragem precisou superar três mitos dogmáticos: (i) a inafastabilidade do controle jurisdicional ou reserva de jurisdição; (ii) o princípio da legalidade; e (iii) a indisponibilidade/supremacia do interesse público.
Quanto ao primeiro dogma, coube ao Supremo Tribunal Federal a tarefa de dirimir eventual dúvida ao declarar a constitucionalidade da lei nº 9.307/96, sob o fundamento de que a cláusula compromissória era restrita a interesses patrimoniais disponíveis, sem prejuízo do controle judicial em casos de vícios e medidas cautelares.
O segundo mito dogmático também foi superado pela legislação. As últimas discussões sobre a legalidade do uso da arbitragem pela Administração Pública foram encerradas pela consagração expressa do instrumento prevista no texto da lei nº 13.129/2015.
Finalmente, em relação ao terceiro dogma, Sombra (2017, p. 54-72) discute que, invariavelmente, os que defendiam essa posição sustentavam que a Administração não poderia se submeter à arbitragem porque a ela não é permitido transigir sobre o interesse público. Contudo, a própria lei nº 13.129/2015 superou esse estigma ao prever que o poder público poderá instituir a arbitragem no tocante a direitos patrimoniais disponíveis.
Verificado que a arbitragem traz estabilidade e celeridade na resolução dos litígios, aumentando os investimentos privados no setor público, conferindo plenitude à autonomia individual, de modo que a pessoa capaz não deve ser vista somente como destinatária da norma, mas também como sujeito investido da capacidade de posicionar-se criticamente em relação a ações próprias e alheias, há cabimento total da sua aplicação no ambiente da Administração Pública.
Comentários ao Decreto nº. 10.025/19
Se a lei 13.129/2015 acabou com toda e qualquer dúvida acerca da possibilidade de adoção da arbitragem pelo poder público, o Decreto 10.025/19 veio para incentivá-la de forma expressa. O referido regramento segue a tendência dos últimos anos, ditando normas para o uso da arbitragem em disputas envolvendo o Estado. Com efeito, o decreto federal dispõe sobre a arbitragem no âmbito da Administração Pública federal, nos setores portuário e de transporte rodoviário, ferroviário, aquaviário e aeroportuário.
A norma trata sobre diversos temas dentro do procedimento arbitral, dentre eles: o objeto da arbitragem, a escolha da câmara arbitral e dos árbitros, prazos e despesas. Além disso, ainda estabelece as diretrizes aplicáveis à cláusula compromissória e ao compromisso arbitral.
O Decreto 10.025/19 veio regulamentar a arbitragem envolvendo o Poder Público Federal e incentivar expressamente o acionamento do juízo arbitral em determinadas ocasiões. Acredita-se que a nova norma pode servir de diretriz para os demais litígios envolvendo a Administração Pública, mas que não foram abarcados pelo decreto.
Prometendo maior celeridade e segurança para contratos envolvendo o Estado e particulares, a arbitragem, enquanto método de resolução de conflitos, gera grande expectativas, acreditando-se, inclusive, que haverá mais investimentos (inclusive investimentos externos).
Outra peculiaridade da arbitragem que envolve a Administração Pública, refere-se aos critérios de julgamento do conflito pelo juízo arbitral. A sentença arbitral aplicável à Administração Pública não poderá se fundamentar ou expressar preferência por critérios alternativos ao direito. Assim, não pode haver decisões arbitrais tomadas com base na equidade, o que afrontaria o art. 37 da Constituição Federal. A vedação do uso da equidade foi expressamente prevista após a reforma da lei 9.307/1996 que incluiu o § 3º ao art. 2º para determinar e enfatizar que a arbitragem que envolva a administração pública será sempre de direito.
A equidade se aplica somente aos métodos heterocompositivos de solução de conflito, onde a direcionamento da tomada de decisão por terceiro, lhe sendo possibilitada a utilização de conjunto axiológico próprio e não necessariamente legislativo, para a análise dos fatos e provas constantes nas alegações das partes. Miguel Reale reconhece a natureza interpretativa da equidade, no sentido de adequar a regra ao caso concreto por critérios de igualdade e proporcionalidade, nas hipóteses em que não é possível identificar o alcance da norma.
Ocorre que a Administração Pública deve observar o princípio da legalidade que significa a submissão ao que a lei permite, porquanto o critério de julgamento da arbitragem em que participa o Poder Público não pode se afastar da norma jurídica. Carlos Ari Sundfeld e Jacintho Arruda Câmara esclarecem que a Administração só pode se submeter a uma decisão que seja tomada com base em critérios rigorosamente jurídicos, oriundos de normas postas formalmente (em lei, regulamento, contrato ou ato administrativo). A decisão por equidade é construída com base em critérios subjetivos, levando em conta a noção de justiça e de equilíbrio que o julgador venha a adotar, e destes não pode a atuação administrativa ficar à mercê (REALE, 2009).
Neste sentido, foi bem-vinda a reforma da lei de Arbitragem, que delimitou o critério de julgamento envolvendo a Administração Pública, relegando a equidade para as decisões entre particulares (CÂMARA, 2014).
Importante destacar que o decreto encerra uma antiga discussão acerca do que seriam os direitos patrimoniais disponíveis, previstos pelo artigo 1º da lei 9.307/96. A nova norma, já em seu artigo 2º, apresenta um rol exemplificativo, englobando I as questões relacionadas à recomposição do equilíbrio econômico-financeiro dos contratos; II o cálculo de indenizações decorrentes de extinção ou de transferência do contrato de parceria; e III o inadimplemento de obrigações contratuais por quaisquer das partes, incluídas a incidência das suas penalidades e o seu cálculo.
No âmbito do procedimento arbitral, a norma prevê que as arbitragens serão realizadas no Brasil, em língua portuguesa, de acordo com a lei brasileira, e serão preferencialmente institucionais, sendo admitida, excepcionalmente, a Arbitragem ad hoc, desde que a escolha seja devidamente justificada. A Arbitragem será pública, excepcionando-se as informações necessárias à preservação de segredo industrial ou comercial, ou ainda aquelas consideradas sigilosas pela legislação pátria. A norma fixa ainda um prazo mínimo de sessenta dias para resposta inicial, e de vinte e quatro meses para apresentação da sentença arbitral, contados da data de celebração do termo de Arbitragem.
As custas referentes ao procedimento arbitral devem ser antecipadas pelo contratado (particular). Entretanto, a sentença arbitral pode atribuir à Administração Pública este ônus, oportunidade em que as custas serão pagas por meio da expedição de precatórios ou de requisições de pequeno valor. Neste caso, o valor pago pela outra parte a título de adiantamento lhe será restituído.
No que tange à escolha da câmara arbitral (art. 10), o decreto dispõe que o credenciamento das câmaras será feito pela Advocacia-Geral da União. Para tanto, elas devem estar em funcionamento há, no mínimo, três anos; ter reconhecidas idoneidade, competência e experiência; e possuir regulamento próprio, disponível em língua portuguesa. Os árbitros, por sua vez, serão escolhidos nos termos da convenção de Arbitragem. Eles devem ter plena capacidade civil, conhecimento compatível com a natureza do litígio e não manter relações com quaisquer das partes para evitar situações de impedimento ou suspeição.
Os contratos de que trata este decreto poderão conter cláusula compromissória ou cláusula que discipline a adoção alternativa de outros mecanismos adequados à solução de controvérsias (art. 5º). Quando estipulada, a cláusula compromissória deve estar destacada, definindo se a arbitragem será institucional ou ad hoc, e remetendo à obrigatoriedade de cumprimento dos termos do decreto federal.
Finalmente, a nova norma prevê que, na ausência de cláusula compromissória, a Administração Pública federal poderá fazer um juízo de ponderação acerca das vantagens e desvantagens da arbitragem para o caso concreto (art. 6º). Todavia, será dada preferência ao procedimento arbitral sempre que a divergência esteja fundamentada em aspectos eminentemente técnicos, ou então quando a demora na solução definitiva do litígio possa gerar prejuízo à prestação adequada do serviço ou inibir investimentos considerados prioritários.
É possível notar que a nova legislação é detalhada e busca solucionar questões persistentes no que tange à arbitragem na Administração Pública, referentes às custas, aos prazos e ao procedimento arbitral em si além de delimitar as hipóteses em que ela é admissível e recomendável. Ainda que o decreto federal tenha delimitado o seu campo de atuação, é provável que sirva de diretriz para dirimir questões que venham a surgir em processos arbitrais de temas outros que envolvam a Administração Pública como um todo.
Cenário pós anos 2020
Desde a edição da lei 13.129/2015, que incorporou a possibilidade de participação da Administração Pública direta e indireta como parte em procedimentos arbitrais, tanto os entes públicos como os privados passaram a se estruturar a fim de utilizar esta forma de resolução de disputas.
Atualmente, diversos editais de concessões públicas preveem o uso da arbitragem como forma de resolução de disputas, como por exemplo o edital de concessão de cemitérios do Município de São Paulo, publicado em 2020, que prevê, em sua cláusula 40ª, a solução de divergências por meio do instrumento.
Os itens presentes na cláusula 40ª do contrato, descrevem detalhadamente como o procedimento deve ser adotado, já prevendo a escolha da Câmara (a CAM-CCBC, no caso), bem como o procedimento para a definição dos árbitros e a penalidade para o caso da recusa na assinatura do compromisso arbitral.
De forma semelhante, o Edital da Concorrência n° 009/SGM/2019, que trata da concessão do Complexo de Interlagos, também do município de São Paulo, prevê, em sua cláusula 37ª, a adoção da arbitragem para dirimir eventuais litígios.
Essa cláusula estabelece, inclusive, que antes de ser adotado o procedimento arbitral, deve ser realizada uma tentativa amigável por meio do procedimento de mediação, e caso reste infrutífera, as controvérsias deverão ser dirimidas obrigatoriamente por meio da arbitragem.
No mercado envolvendo procedimentos de arbitragem, as Câmaras consideram que a Administração Pública possui um grande potencial tanto em termos de volume de processos, quanto em termo de valores discutidos. Os dados do Relatório Anual de 2019 do CAM-CCBC; apenas nesta Câmara, em 2019 demonstram que 41 procedimentos arbitrais em andamento, envolviam entes da Administração Pública direta e indireta, demonstrando a tendência de crescimento da arbitragem no setor público, desde a reforma legislativa de 2015.
Em que pese o número de procedimentos envolvendo a Administração Pública seja pequeno quando comparado com o total (cerca de 10% dos procedimentos que transitaram pelo CAM-CCBC em 2019 envolviam a Administração Pública), a tendência é de que este percentual aumente.
A fim de atender a esta demanda, as Câmaras estão se adequando. Desde 2017, o Regulamento da CAMARB foi modificado de forma a disciplinar especificamente os procedimentos envolvendo a participação da Administração Pública, com adequação ao princípio da publicidade. A título de exemplo, o artigo 12 do Regulamento passou a prever a divulgação em seu site oficial da existência de procedimentos envolvendo entes públicos, bem como a divulgação da data da solicitação da arbitragem e dos nomes dos requerentes e requeridos.
Importante destacar que a CAMARB, assim como a CAM-CCBC são duas das principais Câmaras de Arbitragem do Brasil. Segundo informações divulgadas pela CAMARB, esta entidade já administrou 21 procedimentos arbitrais envolvendo partes sujeitas ao regime de Direito Público, como por exemplo, Estados, Municípios e Agências Reguladoras.
No tocante ao Decreto 10.025/19, tendo em vista se tratar de uma legislação bastante recente, ainda não é possível calcular o seu impacto sobre as arbitragens no corrente ano. De qualquer forma, considerando que a nova norma é bastante detalhada e esclarece alguns pontos levantados em relação às leis 9.307/96 e 13.129/15, é bastante provável que a Administração Pública Federal e o poder público como um todo apresente aumento das demandas solucionadas pelo juízo arbitral.
Percebe-se, portanto, que a controvérsia a respeito da possibilidade de utilização da arbitragem pelo Estado já foi totalmente superada. Após a publicação da lei 13.129/15, várias outras legislações esparsas passaram a admitir a adoção da via arbitral para solucionar litígios decorrentes de contratos de concessão, licitações ou mesmo de disputas envolvendo sociedades de economia mista. Trata-se de um verdadeiro marco para a arbitragem no Brasil, silenciando a divergência doutrinária antes existente.
Entende-se, assim, que a especialidade e a singularidade do serviço prestado pela Câmara selecionada, bem como a notoriedade da instituição arbitral, a sua reputação ilibada e o conhecimento jurídico de seus integrantes, sobrepõem-se ao aspecto meramente financeiro. Ou seja, a câmara de arbitragem não será selecionada da mesma forma que bens ou serviços comuns, pelo menor preço, pois não há parâmetros objetivos que permitam a comparação direta entre diferentes câmaras. Inviável a competição, inexigível a licitação. Uma alternativa para a Administração Pública é a realização de um processo de credenciamento de câmaras de arbitragem.
Nesta sistemática, a Administração Pública deve estabelecer os critérios mínimos de qualificação das câmaras de arbitragem e, eventualmente, até uma tabela com os preços a que se dispõe pagar pelos serviços. Assim, as câmaras interessadas em prestar os seus serviços para a Administração Pública passam pelo processo de credenciamento e, quando houver alguma controvérsia instaurada ou quando da redação das minutas dos contratos administrativos, haverá a seleção de alguma dentre elas.
A seleção da câmara de arbitragem que atuará em determinada controvérsia, dentre as credenciadas, pode ser discricionária ou seguir alguma espécie de critério preestabelecido, sequencial ou aleatório. Outra opção compatível com esta sistemática é permitir que o próprio contratado pela Administração Pública opte pela câmara de arbitragem que atuará para resolver a controvérsia instaurada. Por óbvio, esta opção deverá respeitar o rol de câmaras de arbitragem previamente credenciadas pela Administração Pública, que passaram pelo seu crivo de qualidade e preço (OLIVEIRA, 2017).
Como a reforma da lei de Arbitragem é recente (2015), o número de casos envolvendo a Arbitragem e o Estado ainda é baixo. São muitas as incertezas em relação aos aspectos práticos do procedimento arbitral, desde a escolha da sede de arbitragem e do árbitro até o custeio do processo. Neste sentido, reforça-se que o Decreto 10.025/19 serve como diretriz para futuras arbitragens. Ainda, com o amadurecimento no uso desse mecanismo, certamente tais dificuldades serão sanadas, e o uso será intensificado, aumentando a segurança e a atratividade do ambiente de negócios brasileiro. Além do mais, já que foi concedida a possibilidade por parte da Administração Pública, para que sejam firmadas cláusulas arbitrais, a fim de resolver conflitos individuais, seria ideal que os particulares também pudessem se utilizar dessa ferramenta.