DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA NO MÍNIMO EXISTENCIAL

15/11/2021 às 11:10
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O presente artigo pretende demonstrar a inserção da dignidade da pessoa humana no constitucionalismo contemporâneo, em especial no brasileiro, como direito fundamental e de comando estruturante da organização do Estado

DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA NO MÍNIMO EXISTENCIAL
 
André D’ Albuquerque Torreão [1]
 
 
1  INTRODUÇÃO
 
O presente artigo pretende demonstrar a inserção da dignidade da pessoa humana no constitucionalismo contemporâneo, em especial no brasileiro, como direito fundamental e de comando estruturante da organização do Estado, bem como proceder ao estudo da dignidade da pessoa humana à luz da discussão sobre os direitos sociais, em especial sobre o direito ao mínimo existencial. Não há intenção em esgotar o tema referente à dignidade da pessoa humana, os direitos fundamentais, sua aplicabilidade, mas, sim de demonstrar as controvérsias existenciais que resultam em ineficácia e ausência efetiva dos direitos dos cidadãos.
 
 
2 A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA
 
Em uma linha de desenvolvimento que remonta a Roma antiga, atravessa a Idade Média e chega até o surgimento do Estado liberal, a dignidade – dignitas – era um conceito associado ao status pessoal de alguns indivíduos ou à proeminência de determinadas instituições. Como um status pessoal, a dignidade representava a posição política ou social derivada primariamente da titularidade de determinadas funções públicas, assim como do reconhecimento geral de realizações pessoais ou de integridade moral. O termo também foi utilizado para qualificar certas instituições, como a pessoa do soberano, a coroa ou o Estado, em referência à supremacia dos seus poderes. Em cada caso, da dignidade decorria um dever geral de respeito, honra e deferência, devido àqueles indivíduos e instituições merecedores de tais distinções, uma obrigação cujo desrespeito poderia ser sancionado com medidas civis e penais.
Até o final do século XVIII, a dignidade ainda não estava relacionada com os direitos humanos. De fato, na Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, ela estava entrelaçada com ocupações e posições públicas. Portanto, na cultura ocidental, começando com os romanos e chegando até o século XVIII, o primeiro sentido atribuído à dignidade estava associada a um status superior, uma posição ou classificação social mais alta.
“A dignidade humana, como atualmente compreendida, se assenta sobre o pressuposto de que cada ser humano possui um valor intrínseco e desfruta de uma posição especial no universo.” (BARROSO, 2016, p.14). Diversas religiões, teorias e concepções filosóficas buscam justificar essa visão metafísica. Todavia, foi no pensamento de Kant que a doutrina jurídica mais expressiva identifica as bases de uma fundamentação e, de certa forma, de uma conceituação da dignidade humana. Construindo sua concepção a partir da natureza racional do ser humano, Kant sinala que a autonomia da vontade, entendida como a faculdade de determinar a si mesmo e agir em conformidade com a representação de certas leis, é um atributo apenas encontrado nos seres racionais, constituindo-se no fundamento da dignidade da natureza humana.
Todavia, a dignidade da pessoa humana há de ser compreendida como um conceito inclusivo, no sentido de que a sua aceitação não significa privilegiar a espécie humana acima de outras espécies, mas sim, aceitar que do reconhecimento da dignidade da pessoa humana resultam obrigações para com outros seres e correspondentes deveres mínimos e análogos de proteção.
Ingo Wolfgang Sarlet (2015, p. 70-71), deve haver uma conceituação jurídica para a dignidade da pessoa humana:
Temos por dignidade da pessoa humana a qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e corresponsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos, mediante o devido respeito aos demais seres que integram a rede da vida.
 
Esta temática mostra-se relevante, uma vez que a dignidade da pessoa humana apenas foi objeto de expressa previsão em textos constitucionais a partir da primeira metade do século XX e, ainda assim, em caráter isolado e tímido, geralmente cuidando-se de preceito de cunho eminentemente programático, o que apenas veio a ser alterado no período que sucedeu o Segundo Pós-Guerra.
No Brasil, o Constituinte de 1988 foi o primeiro na história do constitucionalismo pátrio a prever um título próprio destinado aos princípios fundamentais. Ele deixou transparecer de, forma clara e inequívoca, a sua intenção de outorgar aos princípios fundamentais a qualidade de normas embasadoras e informativas de toda a ordem constitucional, inclusive das normas definidoras de direitos e garantias fundamentais, integram o núcleo essencial da Constituição.
 
 

3   A GARANTIA DO MÍNIMO EXISTENCIAL

 

Não é de todo nova a compreensão de que o Estado e a sociedade devem prover as condições materiais básicas para os necessitados que não tenham condições de se sustentar. Pisarello (2007, p.20) aludiu à existência, já na Antiguidade e na Idade Média, de “diferentes mecanismos institucionais, embora não necessariamente estatais, voltados a aliviar situações prolongadas de pobreza e a assistir aos grupos mais necessitados”. Há também quem localize a origem dessa noção nas Poor Laws inglesas, existentes desde o século XVI, especialmente a partir da Speedhamland Law, de 1795, que suprimiu o condicionamento ao trabalho obrigatório para a assistência social aos desamparados (PEREIRA, 2014, p. 103-106). A constituição francesa de 1793 já proclamava, em seu artigo 21, o direito aos socorros públicos, e preceito similar foi reproduzido pela Carta brasileira de 1824 (art. 179, XXXI), o que levou Paulo Bonavides e Paes de Andrade (1991, p. 100) a apontarem a “sensibilidade precursora para o social” da nossa Constituição imperial. Foi, porém, a partir do constitucionalismo social, inaugurado pela Constituição mexicana de 1917 e pela Constituição de Weimar de 1919, que a concepção de que cabe ao Estado garantir os direitos sociais ganhou contornos mais claros.

É provável que a primeira formulação jurídica do direito ao mínimo existencial se deva a um jurista brasileiro – e não a um alemão, como geralmente se afirma. Já em 1933, Pontes de Miranda se referiu à existência de um direito público subjetivo à subsistência dentre o elenco dos “novos direitos do homem” (MIRANDA, 1933), que compreenderia o que chamou de “mínimo vital”. Nas suas palavras,

 

Como direito público subjetivo, a subsistência realiza, no terreno da alimentação, das vestes e da habitação, o standard of living segundo três números, variáveis para maior indefinidamente e para menor até o limite, limite que é dado, respectivamente, pelo indispensável à vida quanto à nutrição, ao resguardo do corpo e à instalação.

É o mínimo vital absoluto. Sempre, porém, que nos referirmos ao mínimo vital, deve-se entender o mínimo vital relativo, aquele que, atentando-se às circunstâncias de lugar e de tempo, se fixou para cada zona em determinado período (...). O mínimo vital relativo tem de ser igual ou maior que o absoluto.

O direito à subsistência torna sem razão de ser a caridade, a esmola, a humilhação do homem ante o homem. (...) Não se peça a outrem, porque falte; exija-se do Estado, porque êste deve. Em vez da súplica, o direito. (MIRANDA, 1933, p. 28-30).

 

 

Nada obstante, ainda não foi completamente extirpada a percepção, entranhada em nossa cultura, de que tal atuação estatal não corresponde propriamente à concretização de um direito fundamental, mas sim a um suposto benefício concedido de modo paternalista por algum governante ou autoridade, cuja efetiva fruição dependa de relações pouco republicanas de clientela e patronagem.

Esta última visão foi claramente enjeitada pela Constituição de 1988, da qual se extrai a garantia do mínimo existencial como direito fundamental. Tal ideia provém não apenas da positivação dos direitos sociais no texto constitucional, como também da consagração do princípio da dignidade da pessoa humana como fundamento do Estado e da ordem jurídica brasileira. A literatura jurídica nacional é praticamente unânime ao apontar o acolhimento do direito ao mínimo existencial, o mesmo ocorrendo com a nossa jurisprudência. Esta, porém, é relativamente recente, e vem se difundindo a partir da célebre decisão proferida pelo STF em 2004.[2]

Apesar do seu reconhecimento normativo, o mínimo existencial não é de fato assegurado a parcelas expressivas da população brasileira, que não desfrutam de acesso efetivo a bens e direitos essenciais para uma vida digna. Legiões de pessoas ainda vivem na mais absoluta miséria, expostas à insegurança alimentar, sem acesso à moradia adequada, ao saneamento básico, à saúde e à educação de mínima qualidade. À margem das conquistas civilizatórias do Estado Democrático de Direito, ainda existe um “Brasil de baixo” em que a regra é a privação, e onde os direitos não são “para valer”. Além de acarretar injusto sofrimento às suas vítimas, esse quadro acaba também comprometendo a capacidade de tais pessoas de exercerem, de forma plena e consciente, os seus direitos civis e políticos.

Portanto, embora existam poucas dúvidas sobre a existência de uma garantia constitucional do mínimo existencial, a efetividade da Constituição, também neste particular, deixa a desejar. Há ainda um abismo entre as suas promessas generosas e a realidade da vida de vastos segmentos da população brasileira, que sobrevivem em condições francamente indignas.

Ao longo da história, a garantia de condições básicas de vida para os setores mais vulneráveis da população decorreu, muitas vezes, não de preocupações morais com os seus direitos ou bem-estar, mas do medo de convulsões sociais que pudessem abalar o status quo. Foi assim, por exemplo, com a rede de proteção social construída pelo chanceler conservador Otto von Bismarck, na Alemanha do final do século XIX.

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Na contemporaneidade, existe razoável convergência entre as mais variadas teorias políticas no sentido da necessidade de garantia das condições materiais básicas de vida para todos. Há, contudo, significativas diferenças a propósito não só da justificativa para essa garantia, como também da sua extensão e forma de proteção.

Os fundamentos para reconhecimento do direito ao mínimo existencial podem ser instrumentais ou independentes. Os fundamentos instrumentais apontam que o mínimo existencial deve ser assegurado para que algum outro princípio ou objetivo seja promovido. Os princípios mais frequentemente invocados são a liberdade e a democracia. Já os fundamentos independentes postulam que o mínimo existencial deve ser garantido porque a sua denegação representa, em si mesma, uma grave injustiça, independentemente dos efeitos que possa ter sobre outros valores.

 

Os assim denominados direitos fundamentais sociais, econômicos, culturais e ambientais, seja na condição de direitos de defesa (negativos), seja na sua dimensão prestacional (atuando como direitos positivos), constituem exigência e concretização da dignidade da pessoa humana. Do ponto de vista da trajetória evolutiva, o reconhecimento jurídico-constitucional da liberdade de greve e de associação e organização sindical, jornada de trabalho razoável, direito ao repouso, bem como as proibições de discriminação nas relações trabalhistas foi o resultado das reivindicações das classes trabalhadoras, em virtude do alto grau de opressão e degradação que caracterizava, de modo geral, as relações entre capital e trabalho, não raras vezes resultando em condições de vida e trabalho indignas, situação que, de resto, ainda hoje não foi integralmente superada em expressiva parte dos Estados que integram a comunidade internacional.

Em verdade, cuida-se de direitos fundamentais de liberdade e igualdade outorgados aos trabalhadores com o intuito de assegurar-lhes um espaço de autonomia pessoal não mais apenas em face do Estado, mas especialmente dos assim denominados poderes sociais, destacando-se, ainda, a circunstância de que o direito ao trabalho constitui um dos principais direitos (humanos e fundamentais) da pessoa.

Já os direitos sociais de cunho prestacional encontram-se, por sua vez, a serviço da igualdade e da liberdade material, objetivando a proteção da pessoa contra as necessidades de ordem material, mas especialmente buscando assegurar uma existência com dignidade, constatação esta que tem servido para justificar um direito fundamental a um mínimo existencial, compreendido não como um conjunto de prestações suficientes apenas para assegurar a existência (a garantia da vida) humana, mas sim, bem mais do que isso: uma vida com dignidade, no sentido de uma vida saudável como deflui do conceito de dignidade que conhecem, ou mesmo daquilo que outros têm designado de uma vida boa.

 
CONSIDERAÇÕES FINAIS
 
A dignidade da pessoa humana é um princípio constitucional fundamental, que tem enorme potencial para a proteção da personalidade humana em todas as suas dimensões, inclusive no que diz respeito à garantia do mínimo existencial. Entretanto, o princípio não pode continuar sendo usado como fórmula retórica flácida, maleável de acordo com as preferências do intérprete, nem tampouco como artifício para a imposição de modelos de “vida boa” às pessoas, ou para a preservação de privilégios e hierarquias entrincheiradas.
Tal princípio, corretamente compreendido e aplicado, converte-se em um poderoso instrumento em favor da inclusão e do respeito a todas as pessoas nas estruturas sociais e nas relações intersubjetivas. Todavia, seria inocente supor que a correta interpretação do princípio constitucional seja, por si só, capaz de equacionar todos os gravíssimos problemas que afetam a dignidade humana no Brasil. Afinal, tais problemas não são apenas jurídicos, pois estão profundamente enraizados em nossa cultura e nas estruturas sociais, econômicas e políticas do país.
Contudo, se o Direito Constitucional não é onipotente, ele tampouco é desprovido de força, inclusive para interferir na cultura e nas estruturas. O seu poder maior não vem da coerção jurídica, mas da capacidade de inspirar os sonhos individuais e coletivos. A dignidade humana é uma ideia poderosa, que fala aos corações e à imaginação moral. Ela pode fazer as pessoas sonharem e eventualmente até marcharem juntas. Isso pode mover montanhas.
Em algum lugar do futuro, com a dose adequada de idealismo e de determinação política, a dignidade humana se tornará a fonte do tratamento especial e elevado destinado a todos os indivíduos: cada um desfrutando o nível máximo atingível de direitos, respeito e realização pessoal. Todas as pessoas serão nobres. Aqui e agora, todavia, temos um desafio aparentemente mais singelo: construir uma sociedade em que todos sejam tratados como gente. Pode parecer pouco, mas, pelo menos no Brasil, é uma enormidade.

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

BARROSO, Luís Roberto. A Dignidade da Pessoa Humana no Direito Constitucional Contemporâneo. 4.ed. Belo Horizonte: Fórum, 2016.

MIRANDA, Pontes de. Direitos à Subsistência e Direito ao Trabalho. Rio de Janeiro: Alba Limitada, 1933.

PEREIRA, Potyara A. P. Necessidades Humanas: subsídios à crítica dos mínimos sociais. 6.ed. São Paulo: Cortez, 2014.

PISARELLO, Gerardo. Los Derechos Sociales y sus Garantias: elementos para una reconstrucción. Madrid: Editorial Trotta, 2007.

SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade (da Pessoa) Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988. 10.ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2015.

 

 


[1] Graduado em Direito pela Faculdade Unipê. Especialização em Direito Constitucional e Administrativo pela Uniamérica.

[2] Trata-se da ADPF 45 – MC, Rel. Min. Celso de Mello, julg. 29.04.2004. Cuidava-se de arguição de descumprimento de preceito fundamental ajuizada contra o veto presidencial a dispositivo da Lei de Diretrizes Orçamentárias que garantira recursos financeiros mínimos para a área da saúde.

Sobre o autor
André D'Albuquerque Torreão

Advogado, Especialista em Direito Público, Direito Administrativo e Constitucional. Graduando em Análise e Desenvolvimento de Sistemas. Graduado em Direito pela Faculdade Unipê. Especialização em Direito Constitucional e Administrativo pela Uniamérica.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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