O que há de errado com os pregões eletrônicos para registro de preço de medicamentos do Ministério da Saúde?

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15/11/2021 às 13:46
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A crise sanitária causada pela pandemia de COVID-19 pôs em destaque a importância do Sistema Único de Saúde (SUS) e do orçamento da saúde tanto para as finanças do Estado como para a economia nacional como um todo. Um dos aspectos centrais dessa dinâmica está no abastecimento do SUS com os insumos necessários para o combate aos diferentes desafios que se apresentam à saúde pública. O componente principal desses insumos são os medicamentos.

A aquisição de medicamentos pela Administração Pública ocorre, via de regra, mediante licitação na modalidade pregão, em sua forma eletrônica, do tipo menor preço por item[1]. Em sua grande maioria, essas licitações são anuais para cada medicamento e recorrentes, já que a lista de produtos utilizados pelo Sistema Único de Saúde atende aos Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas (PCDT) aprovados pelo Ministério da Saúde. Os PCDT são documentos que, com base em evidência científica, estabelecem critérios para o diagnóstico das diferentes doenças conhecidas, o respectivo tratamento preconizado, com os medicamentos apropriados e correspondentes posologias, a serem seguidos pelos médicos e gestores SUS[2].

O principal adquirente de produtos para o abastecimento do SUS é, naturalmente, o Ministério da Saúde. Os editais de licitação utilizados pelo Órgão costumam manter um padrão geral, eventualmente atualizado em função de mudanças na legislação ou de gestão no Departamento de Logística em Saúde (DLOG), responsável pela condução dos certames. Apesar do respeito in abstrato à legislação em vigor, tais instrumentos costumam apresentar elementos que reduzem a eficiência da contratação do fornecimento de medicamentos e que, por isso, merecem atenção.

O momento é oportuno para dar luz ao tema porque a recente Lei n° 14.133/2021 passa atualmente por regulamentação. Nesse sentido, em outubro de 2021 foi aberta Consulta Pública pelo Ministério da Economia para contribuições para a minuta de portaria que institui o catálogo eletrônico de padronização de compras, serviços e obras no âmbito da Administração Pública federal direta, autárquica e fundacional, com base na Nova Lei de Licitação[3]. É iminente, portanto, o detalhamento do procedimento de compras pelas diferentes Pastas da Administração Federal, de acordo com suas necessidades específicas inclusive pelo Ministério da Saúde. É hora, por isso, de explorar alguns aspectos das licitações da Pasta que merecem ajustes.

Cota reservada para ME/EPP

Com base no inciso III do artigo 48 da Lei Complementar nº 123/2006, é comum que os editais de pregão para registro de preços de medicamentos definam reserva de cota no percentual de aproximadamente 25% do quantitativo previsto, assegurada preferência de contratação para as microempresas (ME), empresas de pequeno porte (EPP). Entretanto, haja vista o volume usual de tais contratações, a reserva de cota para micro empresas e empresas de pequeno porte tende a gerar distorções.

Isso ocorre porque é frequente que os 25% de reserva constituam montante financeiro superior ao limite de receita bruta anual dessas sociedades (R$ 4,8 milhões no caso de EPP, nos termos do inc. II, art. 3°, da Lei Complementar n° 123/2006). Por isso, no caso das licitações realizadas pelo Ministério da Saúde, não é incomum que ME e EPP, beneficiando-se da mencionada reserva, terminem vinculadas a Atas de Registro de Preço para o fornecimento de quantitativos muito superiores à sua capacidade operacional real. Isso, evidentemente, aumenta de forma significativa o risco de inadimplemento e atrasos de entrega o que pode ser grave no caso de fornecimento de medicamentos.

Note-se que apesar de o inciso III do artigo 48 da Lei Complementar nº 123/2006 determinar que a Administração deverá estabelecer, em certames para aquisição de bens de natureza divisível, cota de até 25% do objeto para a contratação de microempresas e empresas de pequeno porte, tal regra comporta exceções. Uma delas, indicada no inciso II do artigo 49 daquele diploma, exclui a exigência de cota nos casos em que o tratamento diferenciado para as ME e EPP representar prejuízo ao conjunto ou complexo do objeto a ser contratado. É exatamente o caso das aquisições de medicamento de grande vulto, como as realizadas pelo Ministério da Saúde.

Tais circunstâncias não passaram despercebidas ao legislador ao editar a Nova Lei de Licitações (Lei n° 14.133/2021) que deu concretude à exceção prevista no inciso II do artigo 49 da Lei Complementar n° 123/2006. Nesse sentido, à luz da nova legislação, as cotas não são aplicáveis se o valor estimado da contratação for superior à receita bruta máxima admitida para fins de enquadramento como empresa de pequeno porte (art. 4°, §1°, inc. I da Lei 14.133/2021). Entretanto, como a Lei n° 8.666/1993 segue vigente (art. 193, inc. II da Lei 14.133/2021) e é o diploma referenciado pelo Ministério da Saúde em seus editais atuais, tal restrição expressa não vem sendo aplicada.

A verdade, entretanto, é que a competência in abstrato definida em favor da Administração para avaliar o estabelecimento (inciso III do artigo 48 da Lei Complementar nº 123/2006) ou exclusão (inciso II do artigo 49 da Lei Complementar n° 123/2006) da cota para ME e EPP indica solução única quando se observa as características das licitações realizadas pelo Ministério da Saúde para a aquisição de medicamentos para o SUS. Dado o vulto de tais contratos, a solução indicada pelo art. 4°, §1°, inc. I da Lei 14.133/2021 é a única correta, mesmo à luz da Lei n° 8.666/1993. Por isso, independentemente da previsão expressa de aplicação da Nova Lei de Licitações nos editais da Pasta, a exclusão da cota de ME e EPP é cabível para as licitações de medicamentos se o valor estimado da contratação for superior à receita bruta máxima admitida para fins de enquadramento como empresa de pequeno porte.

Eventualidade das aquisições

O regime de registro de preços define a aquisição apenas eventual dos quantitativos previstos na respectiva Ata (§4° do art. 15 da Lei n° 8.666/1993). Tal flexibilidade decorre do fato de que o registro de preços é aplicável para a aquisição de bens comuns, ou seja, a eventualidade da aquisição está justificada, do ponto de vista teleológico, porque tais produtos são considerados itens de prateleira, no sentido de que são produzidos para o atendimento do mercado e estarão disponíveis para aquisição pela Administração sempre que demandados. Entretanto, a definição normativa de bens comuns indica que estes são os produtos cujos padrões de desempenho e qualidade possam ser objetivamente definidos pelo edital, por meio de especificações reconhecidas e usuais do mercado (art.3°, inc. II do Decreto n° 10.024/2019). Portanto, a característica marcante dos bens comuns é a sua homogeneidade, opondo-se, desta forma, aos bens especiais, definidos por sua alta heterogeneidade ou complexidade técnica (art.3°, inc. III do Decreto n° 10.024/2019).

Os medicamentos certamente são bens com padrão de desempenho e qualidade precisamente definidos, o que ocorre por meio de especificações sanitárias estabelecidas perante a ANVISA e indicadas no respectivo registro sanitário. Entretanto, por mais que preencham a definição normativa de bens comuns, nem sempre os produtos farmacêuticos são itens de prateleira. A disponibilidade desses produtos pode ser constante no caso de medicamentos commodities (como paracetamol ou ácido acetilsalicílico), mas não é o que ocorre para medicamentos de maior complexidade (como no caso de medicamentos utilizados no tratamento de doenças graves), muito menos para grandes volumes.

Tais produtos não se encontram pré-fabricados e disponíveis por três motivos principais. Por um lado, porque sua fabricação depende fundamentalmente da importação de Insumo Farmacêutico Ativo, dada a dependência estrangeira no ramo farmoquímico. Por outro lado, o prazo de validade dos medicamentos é curto (definido pela ANVISA no momento do registro sanitário), costumando ser de 24 meses. Ainda, dada a especificidade do fornecimento ao SUS (que exige identidade visual específica, que não pode ser utilizada no comércio privado) e o volume das aquisições do Ministério da Saúde, caso a Pasta, por qualquer motivo, não adquira o quantitativo previsto a fabricante não poderá ou não conseguirá dar outra destinação econômica ao estoque gerado.

Nesse contexto, o regime de eventualidade das aquisições definido pelo registro de preços faz que os fabricantes não produzam o quantitativo total previsto no edital e iniciem o processo produtivo apenas após a requisição pelo Ministério da Saúde. Tal circunstância agrava significativamente o risco de atraso de entrega, já por si de eliminação inviável por conta da dependência de importações de insumos. Isso pode ser corrigido mediante uma modelagem adequada do respectivo edital.

A verdade é que, por conta do histórico de demanda e epidemiologia do país, o Ministério da Saúde pode prever com razoável segurança o quantitativo anual a ser adquirido para os principais medicamentos de seu portfólio. Tanto é assim que os editais para as grandes aquisições de medicamentos realizadas pelo Ministério da Saúde preveem entregas em parcelas bem definidas e com datas especificadas. Bastaria a confirmação, no próprio edital, formalizando o compromisso de aquisição completa dos quantitativos previstos, para criar a segurança necessária à formação de estoques para o atendimento sempre tempestivo das demandas do Ministério para o produto em questão. Ainda, aumentaria a segurança jurídica dos atores desse mercado a divulgação do planejamento anual das licitações para aquisição de medicamentos para que os fornecedores tenham visibilidade com antecedência quanto a quantitativos e prazos.

Prazos de entrega

Nas licitações para registro de preço de medicamentos, o momento para a entrega de cada parcela é definido no termo de referência que acompanha o edital. É recomendável que essa definição considere prazos contados da assinatura do contrato porque o cumprimento de data-calendário pode ser comprometido caso a assinatura do contrato seja postergada, por exemplo, por conta de atrasos no encerramento do certame, como no caso de apreciação de recursos administrativos complexos. Além disso, é indispensável considerar que, apesar de a aquisição de medicamentos ocorrer por registro de preços, estes, para a maioria das compras realizadas pelo Ministério da Saúde, não são bens de prateleira.

Isso quer dizer que o processo de fabricação terá início apenas após a assinatura do contrato, de onde surge um primeiro gargalo, porque se torna, em geral, inviável o cumprimento do prazo padrão utilizado para a entrega a primeira parcela do objeto contratado, que é de 30 dias após a assinatura do instrumento. Ocorre que, dada a dependência estrangeira para a aquisição do IFA[4] e considerando o início do processo produtivo após a assinatura do contrato, a primeira entrega sofrerá os efeitos do lead time de importação de tal insumo, além da necessidade de inserção da demanda no cronograma produtivo da respectiva planta fabril. Agrava a questão o fato de que, tratando-se de setor altamente regulado, o IFA apenas pode ser adquirido de fornecedor autorizado no registro sanitário do produto (após inspeção da ANVISA). Portanto, qualquer intercorrência com tal fornecedor terá impactos decisivos sobre o prazo para atendimento da demanda do Ministério da Saúde.

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Com isso, é possível afirmar que o prazo de 30 dias para a primeira entrega é temerário e gera insegurança para ambas as partes: ao contratado, por não saber se conseguirá atender o prazo especificado e se sofrerá sanções em função disso; ao Ministério, por planejar seus estoques de medicamentos com base em entregas que dificilmente serão tempestivas. Por isso, é recomendável que o edital de licitação preveja um prazo superior para a entrega da primeira parcela, preferencialmente acima de 60 dias ou mais, conforme características específicas do processo produtivo de cada medicamento e considerando que a maior parte dos insumos farmacêuticos são importados da China e da Índia por via marítima. Como tais produtos devem obedecer, em geral, a um fluxo contínuo de abastecimento, é plenamente factível que o Ministério da Saúde planeje o abastecimento de seus estoques de modo a atender a tais contingências.

Essas mesmas considerações, realizadas a respeito da programação de entregas previstas em edital e no contrato, servem também, evidentemente, para o caso de termos aditivos. Não se quer afastar a prerrogativa da Administração para acréscimo de até 25% do valor inicial atualizado do contrato, a que está obrigado o contratado, nas mesmas condições contratuais (art. 65, §1° da Lei n° 8.666/1993). Mas tal prerrogativa não têm sentido em si mesma, mas apenas para o atingimento de alguma finalidade juridicamente tutelada.

Para manter o SUS abastecido de forma adequada o Ministério da Saúde deve ampliar o planejamento e transparência de suas aquisições, horizontalizando a relação com seus fornecedores. No caso de aditamento com acréscimo de quantitativo cabe, portanto, avisar o fornecedor sobre a intenção de aditar o contrato com antecedência mínima, com relação à entrega, igual à utilizada para a primeira parcela, ou seja, de 60 dias ou mais, conforme o caso. Isso dará oportunidade para a adoção das medidas gerenciais necessárias à importação de novo lote de IFA e inclusão do pedido no cronograma de produção da planta responsável pela fabricação.

Atestado de capacidade técnica

Outro aspecto problemático dos editais do Ministério da Saúde para a aquisição de medicamentos é a exigência de comprovação de aptidão para fornecimento de bens em características e em quantidades e prazos compatíveis com o objeto da licitação. A exigência de apresentação de atestados de capacidade técnica é feita de forma genérica, sem especificação da característica específica a ser avaliada. Isso leva a uma interpretação restritiva, no sentido de que apenas poderiam ser aceitos licitantes com experiência específica no fornecimento do medicamento licitado mas isso muitas vezes não faz sentido no caso de fornecimento de produtos farmacêuticos e impacta, desnecessariamente, a economicidade do certame.

Isso ocorre porque as tecnologias produtivas de medicamentos são as mesmas para vários produtos e a capacidade produtiva do licitante já é testada na elaboração dos lotes piloto exigidos pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) como requisito para o registro sanitário. Portanto, a exigência de apresentação de atestado técnico deve ser específica e justificável, compensando a perda de competitividade que tal restrição naturalmente acarreta. É o caso, por exemplo, de produtos que exigem logística especial de distribuição, com manutenção controlada de temperatura e transporte refrigerado, em que vale arguir a existência de experiência específica neste ponto.

Oportunidade para ajustes

Com o advento da Lei n° 14.133/2021, os órgãos das distintas esferas administrativas deverão atualizar seus regulamentos de licitações e modelos de edital. Surge a oportunidade, para além disso, de ajustes para a adequação das regras gerais às especificidade e vicissitudes para a aquisição dos mais diferentes bens e serviços que dão suporte à estrutura administrativa brasileira. A crise sanitária causada pela pandemia de COVID-19, ao pôr em destaque a importância do orçamento da saúde, confirmou a necessidade de especialização dos instrumentos de abastecimento do SUS, especialmente de medicamentos.

É hora, portanto, de o Ministério da Saúde aproveitar a oportunidade para adaptar a modelagem de seus editais de licitação e de sua praxe em matéria licitatória. A gestão dos fornecedores da saúde, então, tem a ganhar em transparência e eficiência. O SUS agradece!

  1. Tais certames obedecem à Lei nº 10.520/2002 e o Decreto nº 10.024/2019 que disciplinam a licitação na modalidade Pregão na forma eletrônica.

  2. MISISTÉRIO DA SAÚDE. Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas PCDT. Disponível em: <https://www.gov.br/saude/pt-br/assuntos/protocolos-clinicos-e-diretrizes-terapeuticas-pcdt>. Acesso em: 09/11/2021.

  3. MINISTÉRIO DA ECONOMIA. Consulta Pública Portaria que institui o catálogo eletrônico de padronização de compras, serviços e obras. Disponível em: < https://www.gov.br/compras/pt-br/acesso-a-informacao/noticias/consulta-publica-2013-portaria-que-institui-o-catalogo-eletronico-de-padronizacao-de-compras-servicos-e-obras> . Acesso em 10/11/2021.

  4. CANTERAS, Carla. País produz apenas 5% de IFAs, mas pode mudar cenário. R7 Saúde, 02/06/2021. Disponível em: <https://noticias.r7.com/saude/pais-produz-apenas-5-de-ifas-mas-pode-mudar-cenario-02062021>. Acesso em: 09/11/2021.

Sobre o autor
Guillermo Glassman

Doutor e Especialista em Direito Administrativo pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Mestre em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Advogado.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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