Usucapião entre herdeiros sobre bens imóveis do acervo hereditário

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2. DA AQUISIÇÃO DA PROPRIEDADE NO DIREITO POSSESSÓRIO

2.1 Da sucessão como forma derivada de aquisição da propriedade

No que tange a sucessão como forma derivada da aquisição da propriedade, sabemos que trata-se de um instituto que tem seu início a partir da morte de um indivíduo que tenha constituído ordem sucessória, ou seja que tenha deixados bens que podem ser transferidos a outrem herdeiros - em razão do falecimento do autor da ordem sucessória, por isso sucessão causa mortis. (VENOSA, 2017, p.697)

Esta é a forma de aquisição da propriedade quando aberta a sucessão transmitem-se o domínio e a posse dos bens de herança para os herdeiros, tornando-os assim co-proprietários de um mesmo bem até que seja realizada a partilha entre eles. (ITO, 2018, online)

Os herdeiros se dividem entre legítimos e testamentários. Os legítimos são aqueles previstos por lei, seguindo a chamada ordem de vocação hereditária, conforme artigo 1.829, do Código Civil. Entre os herdeiros legítimos, podem existir os herdeiros necessários, que obrigatoriamente herdarão pelo menos a metade do patrimônio do de cujus. A outra metade da herança incumbirá aos herdeiros testamentários se houver conforme artigo 1.857 e seguintes, do Código Civil, os quais são elencados através da vontade do de cujus.

Ressalte-se que o herdeiro fica com a propriedade da herança, independente da transcrição, ou seja, desde o início da sucessão. No entanto, é importante ressaltar que o formal de partilha exige o registro para disponibilizar o imóvel. Portanto, o registro formal de partilha manterá a continuidade do registro do imóvel e tornará regular a cadeia sucessória.

Contudo, pode-se concluir que existem muitas formas de aquisição da propriedade, inclusive por meio sucessório, onde os herdeiros possuem parte da mesma propriedade, sendo assim faz-se necessário que haja a partilha para que estes recebam o quinhão pertencente ao final da sucessão.

2.2 Relação entre usucapião e instituto sucessório

Conforme já abordado anteriormente, usucapião é o modo de aquisição de propriedade de bens móveis ou imóveis, através do exercício da posse pelos requisitos estabelecidos em lei. Sabemos que não há proibição propriamente dita de que o herdeiro pleiteasse a aquisição do acervo hereditário mediante a ação de usucapião. Estando vedado apenas usucapir imóveis públicos, não incluindo imóveis pertinentes a herdeiros, percebendo-se assim uma lacuna acerca da ação de usucapião ser pleiteada por herdeiro.

Dessa forma, o acervo hereditário pode ser objeto de ação de usucapião, uma vez que o direito à herança vem do direito de propriedade, podendo ser usucapido. Embora o direito à herança ser assegurado no inciso XXX do artigo 5º da Constituição da República de 1988, a garantia constitucional não é absoluta, uma vez que a herança não se trata da inércia não decadencial dos herdeiros, sendo possível ser usucapido da mesma forma qualquer outra propriedade particular. Existe uma limitação expressa acerca do direito de herança no próprio Texto Constitucional em seu inciso XLV do artigo 5º que dispõe que a obrigação de reparação dos danos e o decreto da perda de bens podem ser expandida aos herdeiros e oponíveis a eles, limitada ao valor dos bens transferidos, o que reforça a teoria de que o direito à herança não é uma garantia intocável. Portanto o direito do herdeiro sobre seu quinhão hereditário também não é absoluto, podendo ser usucapido por co-herdeiro que exerce a posse sobre a totalidade da herança, posto que não há vedação dos imóveis deixados pelo falecido para serem usucapidos.

O Superior Tribunal de Justiça recentemente, após o tema desse artigo ser discutido, vem admitindo o instituto da usucapião entre os condôminos, concedendo ao condômino a legitimidade para usucapir, em nome próprio, imóvel deixado pelo de cujos. A tese é que ele próprio exerça a posse no imóvel, assim como a posse exclusiva como efetivo animus domini pelo prazo previsto em lei, sem oposição dos demais proprietários/herdeiros.


3. DO ENTENDIMENTO DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

Em recurso especial, o Superior Tribunal de Justiça julgou o caso em que a recorrente teria ajuizado uma ação de usucapião sobre imóvel que fazia parte do acervo hereditário. O principal argumento do recurso especial era que, apesar da propriedade do imóvel ser transmitida aos herdeiros após o falecimento da de cujus, deveria ser reconhecida a propriedade pertencente somente à recorrente, pois essa teria adquirido esse direito através do instituto da usucapião.

O juiz de primeira instância deste caso entendeu que a ação deveria ser extinta sem resolução do mérito, uma vez que o herdeiro não possuía o direito de pleitear usucapião sobre o imóvel do acervo. O argumento utilizado foi que havendo herdeiros a serem contemplados numa mesma herança, não é dado a um deles utilizar-se da usucapião, pois a herança é uma universalidade de coisas, achando-se em comum os bens do acervo hereditário, até a ultimação da partilha, onde teremos o condomínio de direito

A recorrente apelou dessa decisão, mas também não obteve êxito em segunda instância, tendo o colegiado negado provimento à apelação interposta sob a alegação de impossibilidade jurídica do pedido.

Sendo este o caso, a recorrente decidiu apelar ao STJ em face de recurso especial. O Recurso Especial n°1.631.859 - SP foi julgado em 2016 tendo como relatora a ministra Nancy Andrighi e este foi favorável à recorrente. Foi sustentado que haveria ocorrido o dissídio jurisprudencial uma vez que não foi dada à recorrente a oportunidade de provar ter o direito à usucapião e foi evidenciado que a justiça não pode afastar o animus domini exercido unicamente por um dos condôminos, sem antes examinar detidamente os fatos ocorridos, bem como as provas e peculiaridades do caso concreto.

O objetivo do recurso especial era o de determinar a possibilidade de obtenção de bem imóvel objeto de herança através do instituto da usucapião. O relatório diz que cabe a esta Corte, tão somente, determinar se é possível à herdeira recorrente ajuizar a presente ação de usucapião, a fim de ver reconhecida, em seu favor, propriedade de imóvel objeto de herança.

À luz do direito sucessório, a partir da morte do progenitor o imóvel será transmitido aos seus herdeiros. O artigo 1.784 do Código Civil prevê que essa transmissão é imediata:

Art. 1.784. Aberta a sucessão, a herança transmite-se, desde logo, aos herdeiros legítimos e testamentários. (BRASIL, online, 2002)

De acordo com o entendimento do STJ a partir dessa transmissão é automaticamente instaurado um condomínio pro indiviso sobre o acervo hereditário, como previsto no artigo 1791 do Código Civil:

Art. 1.791. A herança defere-se como um todo unitário, ainda que vários sejam os herdeiros.

Parágrafo único. Até a partilha, o direito dos co-herdeiros, quanto à propriedade e posse da herança, será indivisível, e regular-se-á pelas normas relativas ao condomínio. (BRASIL, online, 2002)

Vale ressaltar sobre este caso que o próprio STJ, em outra oportunidade, julgou que o condomínio poderia usucapir em nome próprio, caso preenchidos os requisitos necessários para a usucapião.

AÇÃO DE USUCAPIÃO. HERDEIRA. POSSIBILIDADE. LEGITIMIDADE. AUSÊNCIA DE PRONUNCIAMENTO PELO TRIBUNAL ACERCA DO CARÁTER PÚBLICO DO IMÓVEL OBJETO DE USUCAPIÃO QUE ENCONTRA-SE COM A CAIXA ECONÔMICA FEDERAL. PROVIMENTO DO RECURSO ESPECIAL. 1. O condômino tem legitimidade para usucapir em nome próprio, desde que exerça a posse por si mesmo, ou seja, desde que comprovados os requisitos legais atinentes à usucapião, bem como tenha sido exercida posse exclusiva com efetivo animus domini pelo prazo determinado em lei, sem qualquer oposição dos demais proprietários.

(STJ, REsp: 668.131/PR, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, 4ª Turma, DJe 14/09/2010)

Além do entendimento anterior, o STJ elenca duas decisões anteriores acerca do assunto, em que entendem que é possível a usucapião do condomínio.

Relacionando a jurisprudência anterior com o presente caso, o tribunal entendeu que aquele que é condômino por direito pode sim ter a pretensão de exigir o imóvel do outro, caso atendidos os requisitos da usucapião extraordinária prevista no artigo 1238 do Código Civil. Assim redige a relatora:

Sob essa ótica, tem-se, assim, que é possível à recorrente pleitear a declaração da prescrição aquisitiva em desfavor de seu irmão o outro herdeiro/condômino , desde que, obviamente, observados os requisitos para a configuração da usucapião extraordinária, previstos no art. 1.238 do CC/02, quais sejam, lapso temporal de 15 (quinze) anos cumulado com a posse exclusiva, ininterrupta e sem oposição do bem.

(STJ, REsp 1.631.859/SP, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, 3º turma, DJe 29/05/18)

Por fim, a decisão final do Superior Tribunal de Justiça conclui o caso da seguinte forma:

Conclui-se, portanto, que a presente ação de usucapião ajuizada pela recorrente não deveria ter sido extinta, sem resolução do mérito, devendo os autos retornar à origem a fim de que a esta seja conferida a necessária dilação probatória para a comprovação da exclusividade de sua posse, bem como dos demais requisitos da usucapião extraordinária.

(STJ, REsp 1.631.859/SP, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, 3º turma, DJe 29/5/18)


4. CONCLUSÃO

Ante o exposto, pode-se concluir que a usucapião pleiteada por herdeiro sobre bens do acervo hereditário é plenamente possível, desde que observados os requisitos para a configuração extraordinária, previstos no artigo 1.238 do Código Civil e o requisito estabelecido pelo STJ, isto é, o exercício da posse exclusiva com animus domini pelo prazo de 15 anos, sendo necessária a realização de uma análise do caso concreto antes de chegar à conclusão sobre o início da contagem do prazo. O argumento de que o imóvel adquirido através da herança seja impossível de ser usucapido é questionável, tendo em vista que conforme abordado anteriormente não há proibição propriamente dita da usucapião sobre imóvel adquirido por herança, exceto para imóveis públicos qualquer outro imóvel pode ser usucapido desde preenchido os requisitos legais.

A usucapião serve somente para a pacificação sobre a titularidade da propriedade o imóvel, mas também é usada como instrumento para conceder função social à propriedade. Dessa forma, o herdeiro que confere função social ao acervo hereditário, enquanto os demais herdeiros ficaram inertes. Sendo recompensado com o título de propriedade sobre a totalidade do acervo deixado pelo de cujus.

Contudo, para que seja reconhecida a usucapião pleiteada por herdeiros sobre o imóvel objeto de herança é imprescindível comprovar a posse exclusiva do imóvel, com animus domini; o lapso temporal exigido pela legislação vigente e a função social ao imóvel.


5. BIBLIOGRAFIA

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VENOSA, Silvio de Sálvio. Direito Civil, Direitos Reais. São Paulo: Atlas, 2017.


Abstract: This article deals with the legal possibility of adverse possession claimed by an heir on the property object of inheritance. Although the right to property is ensured by the Federal Constitution in its article 5, item XXII such right is relative since the social function acts as a constitutional limitation and in case of non-compliance with the property, there is no need to speak of full ownership, the property owner may lose property due to expropriation for social interest (art. 182, § 2, of the CF) or through adverse possession. The right to inheritance provided for in item XXX of article 5 of the CF is also not treated as absolute, which is subject to limitations, as will be presented throughout this article. Currently, there is no express provision regarding the possibility of the heir claiming usucapion action on the property that is the object of inheritance, as well as there is no prohibitive rule, causing the issue to be dealt with in divergent ways. In view of the fundamental principles and guarantees guaranteed in the Constitution and the analysis of the understanding signed by the STJ on the subject, this article seeks to analyze and clarify the requirements for recognizing the adverse possession claimed by an heir.

Keywords: Usucapion. Heir. Immobile. Possibility. Higher Justice court

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