“Dados técnicos indispensáveis”, elementar do crime do art. 10 da Lei da Ação Civil Pública.

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Cautela se deve tomar nas requisições do MP.

O Ministério Público detém os poderes de instaurar procedimentos internos investigatórios destinados à arrecadação de dados de convicção sobre a ocorrência de danos a direitos difusos, coletivos ou individuais homogêneo para o fim de promover a ação civil pública, e de requisitar, a qualquer organismo público ou particular, certidões, informações, exames ou perícias, expressamente conferidos pela Lei nº 7.347/85.[1]

Na rotina das atividades funcionais que incluam o dever jurídico de informar, especialmente agentes públicos recebem inúmeras requisições do Ministério Público da União e dos Estados para fornecimento de dados técnicos indispensáveis ao ajuizamento de ações civis públicas. Quem já passou pela administração pública em qualquer dos seus três níveis bem conhece o elevado número destas requisições. Nas comarcas em que há dois ou mais membros do Ministério Público, muitas vezes partem de mais de um. De tão frequentes e numerosas, torna-se necessário instituir setor específico para cumprimento das requisições.

Como nem sempre são respondidas, ao menos dentro do prazo determinado, inclusive pela falta de efetivo administrativo suficiente para o atendimento das exigências burocráticas, o que é corriqueiro nas pequenas cidades do interior, as pessoas responsáveis pelo fornecimento dos dados técnicos veem-se envolvidas em processos criminais instaurados com base no art. 10 da Lei da Ação Civil Pública, que prevê, como crime de desobediência, a recusa, o retardamento ou a omissão de dados técnicos indispensáveis à propositura da ação civil, quando requisitados pelo Ministério Público.

Ocorre, porém, que a tipificação penal do descumprimento e correspondente configuração do crime de desobediência à requisição ministerial, exige, além do dolo,[2] com o seu significado de intencional inobservância da ordem ministerial, o somatório das seguintes circunstâncias:

a) Que os dados sejam técnicos.

Dado técnico, aos fins de enquadramento típico da conduta do recusante, omitente ou retardatário, é o documento ou a informação dependente de um conhecimento ou trabalho específico, peculiar de determinado ofício ou profissão, que só pode ser prestado por quem detenha conhecimento artístico ou científico em determinada área, tais como laudos de vistorias, perícias, exames laboratoriais, inspeções e outros documentos igualmente dotados de singular particularidade: a precisão.[3] Incluem-se no conceito também os documentos sob detenção do recusante, omitente ou retardatário, como procedimentos licitatórios, notas fiscais, empenhos, procedimentos de licença ambiental, estudos ambientais, procedimentos de registro de loteamentos, de concessão de alvarás e licenças, relatórios estatísticos, escrituras públicas, inteiro teor dos trâmites de projeto de lei, registros imobiliários, etc., ilustra DALMASO.[4]

b) Que sejam indispensáveis ao ajuizamento de ação civil pública.

Indispensáveis, são os dados técnicos que o Ministério Público não pode dispensar sem prejuízo da propositura da ação civil pública. Constituem a base probatória para promover a demanda. Não são dados indispensáveis para outro tipo de ação legitimada pelo Órgão, nem tampouco para a instrução das investigações civis que promove. Exato por isso, se o procedimento investigatório é arquivado, exemplificativamente devido à inocorrência da própria lesão investigada, inexiste, por consequência, fato típico de recusa, retardamento ou a omissão de dados técnicos indispensáveis à propositura da ação civil, pois sequer ajuizada.[5]

Aliás, esta mesma atipicidade da conduta recusante, omissiva ou retardatária configura-se enquanto a ação civil pública não for intentada. Se o inquérito civil ou o procedimento investigatório ainda tramita no âmbito do Ministério Público, é porque o suposto dano aos direitos tuteláveis pela via da ação civil não está suficientemente apurado: Se há dúvida quanto a efetiva ocorrência de danos morais ou patrimoniais aos direitos tutelados (art. 1º, caput, Lei 7.347/85), tanto que ainda pendente as investigações, evidente que há dúvida sobre a existência do elemento normativo do tipo, que não se completa na fase inquisitiva [] Portanto, não há possibilidade do exercício de ação penal antes do término das investigações e da propositura da ação civil, por carecer de justa causa por prematura instauração, sendo o caso de rejeição da denúncia por falta de justa causa (art. 395, III, CPP) ou de absolvição sumária por não constituir crime (art. 397, III, CPP), permitido, ainda, o uso do habeas corpos para trancar a ação penal (art. 648, I, CPP), reconhece o promotor de Justiça paranaense ERINTON DALMASO, em seu artigo Comentários ao crime do artigo 10 da Lei 7.347/85 (Lei da Ação Civil Pública).

c) Que a indispensabilidade conste do texto da requisição.

Esta indispensabilidade do dado técnico requisitado, como qualidade do que é indispensável, obrigatoriamente deve ser constar do texto da requisição ministerial.

A mera referência ao objetivo de instruir inquérito civil ou procedimento investigatório em curso, ou mesmo a admoestação de que o desatendimento a requisições do Ministério Público configure fato delituoso, são insuficientes para os fins da tipicidade do delito.

Bem observa o ilustre Procurador da República ROCHA JUNIOR, em conhecida monografia sobre o tema:

É mister que o sujeito ativo tenha ciência de que tais dados técnicos são indispensáveis à propositura da ação civil pública, devendo o representante do Ministério Público, ao requisitá-los, fazer expressa menção a essa circunstância. Sem o comprovado conhecimento de tal fato pelo destinatário, não se pode entender presente o crime do art. 10, embora a obrigatoriedade do atendimento permaneça. Na requisição, para que o destinatário saiba que espécie de dados lhe são requeridos, o representante do Ministério Público deve referir-se à sua indispensabilidade.[6]

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No mesmo sentido, julgado do TJMG, assenta:

A lei, como sabido, não contém palavras inúteis. Da exegese do art. 10 da Lei nº 7.347/1985, extrai-se que os dados requisitados devem ser indispensáveis e o agente, para que viole o tipo penal, deve estar ciente de tal fato, e deve, intencionalmente, recusar, omitir ou retardar a resposta à requisição, com o complemento conclusivo de que, não constando das requisições a ressalva de que os dados eram indispensáveis à propositura de ação civil pública, a conduta perpetrada é atípica, podendo configurar, se muito, ato de improbidade ou falta funcional, mas não crime.[7]

Ainda, e do STJ:

Não basta o Ministério Público estadual tão somente aduzir a falta de precisão ou de maior detalhamento sobre a escala de trabalho do médico nas respostas do Gestor/Recorrente, mas esclarecer especificamente qual informação alegadamente lacunosa seria indispensável para virtual ação civil, por se tratar a imprescindibilidade dos dados técnicos de finalidade específica referida no art. 10 da Lei n. 7.347/85.[8]

De convir, se o crime do art. 10 consiste na recusa, omissão ou retardamento no oferecimento de dados técnicos indispensáveis à propositura da ação civil requisitados pelo Ministério Público, para que se possa imputar a prática do delito a alguém, condição antes lógica do que jurídica, é a de que a requisição, como instrumento que impõe e cientifica o destinatário quando ao seu dever legal de agir, deixe expresso serem indispensáveis à instauração da ação civil pública.

Competindo ao Ministério Público valorar a indispensabilidade dos dados técnicos, uma vez que tal valoração não é feita pela lei, deve afirmá-la e demonstrá-la no corpo da requisição. Se o destinatário não é cientificado a respeito, não tem como adivinhá-la.

d) Que a explicitação da indispensabilidade conste da denúncia.

E não somente do texto da requisição, mas também da descrição do fato em todas as suas circunstâncias feita pela denúncia, pois requisito de formalidade essencial (art. 41 do CPP), a indispensabilidade deve ser explicitada: [] deve evidenciar em que consiste a indispensabilidade dos dados e por que sem eles o Ministério Público não pôde decidir, de maneira fundamentada e criteriosa, pelo ajuizamento da ação,[9] sob pena de inépcia.

Por derradeiro, considerando que o delito é previsto apenas na modalidade dolosa, o que exige vontade deliberada de desobediência e pressupõe conhecimento do agente quanto à indispensabilidade dos dados técnicos, pois só se pode querer o que se conhece, se ao requisitado não é dado saber, não tem ele como querer, com sua inação ou ação tardia, prejudicar a atividade ministerial de ajuizamento da ação civil pública, não tem como intencionalmente subtrair do Ministério Público dados indispensáveis à propositura de demanda. Ilógico possa querer recusar, omitir ou retardar o fornecimento de dados técnicos indispensáveis sem que prévia informação desta indispensabilidade por quem de direito, o Ministério Público, e na requisição. O delito pressupõe recusa, omissão ou retardamento intencional apto a impedir a propositura da ação pelo Ministério Público.

  1. Art. 8º. § 1º O Ministério Público poderá instaurar, sob sua presidência, inquérito civil, ou requisitar, de qualquer organismo público ou particular, certidões, informações, exames ou perícias, no prazo que assinalar, o qual não poderá ser inferior a 10 (dez) dias úteis.

  2. É fundamental na espécie, a demonstração apriorística de que o agente tenha agido com dolo, já que não é punível, na espécie, a figura culposa. [] Há de estar presente intenção clara e direta de descumprimento da ordem por parte do apontado autor do ilícito, com demonstração, por ocasião do oferecimento da denúncia, de forma veemente e bastante clara, de que haja chegado a conhecimento do denunciado a determinação constante dos ofícios que lhe foram dirigidos. (STF, AP 679, Plenário. Relator Ministro DIAS TOFFOLI, julgado em 06/02/2014 e Dje-213, de 30/10/2014).

  3. CARVALHO FILHO, José dos Santos. Ação civil pública: comentários por artigo. 8. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p. 311.

  4. DALMASO, Erinton Cristiano. Comentários ao crime do artigo 10 da Lei 7.347/85 (Lei da Ação Civil Pública).

  5. STJ, HC 85.507/SP, Sexta Turma. Relatora Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, julgado em 25/08/2009, DJe 14/09/2009.

  6. ROCHA JÚNIOR, Paulo Sérgio Duarte da. Breves Comentários ao Artigo 10 da Lei nº 7.347/85, Revista CEJ, Brasília, n. 35, p. 28-34, out/dez. 2006.

  7. TJMG, Apelação Criminal nº 1.0000.12.054742- 7/000.

  8. RHC 120491/PE, Sexta Turma. Relatora Ministra LAURITA VAZ, julgado em 04/08/2020, DJe 19/08/2020 - RSTJ vol. 258 p. 835.

  9. ROCHA JUNIOR, Breves Comentários ao Artigo 10 da Lei nº 7.347/85, Revista CEJ, Brasília, n. 35, p. 28-34, out/dez. 2006.

Sobre o autor
Carlos Otaviano Brenner de Moraes

Participa com seus artigos das publicações do site desde 1999. Exerce advocacia consultiva e judicial a pessoas físicas e jurídicas, numa atuação pessoal e personalizada, com ênfase nas áreas ambiental, eleitoral, criminal, improbidade administrativa e ESG. Foi membro do MP/RS durante 32 anos, com experiência em vários ramos do Direito. Exerceu o magistério em universidades e nos principais cursos preparatórios às carreiras jurídicas no RS. Gerações de atuais advogados, promotores, defensores públicos, juízes e delegados de polícia foram seus alunos. Possui livros e artigos jurídicos publicados. À vivência prática, ao estudo e ao ensino científico do Direito, somou experiências administrativas e governamentais pelo exercício de funções públicas. Secretário de Estado do Meio Ambiente, conciliou conflitos entre os deveres de intervenção do Estado Ambiental e os direitos constitucionais da propriedade e da livre iniciativa; Secretário Estadual da Transparência e Probidade Administrativa, velou pelos assuntos éticos da gestão pública; Secretário Adjunto da Justiça e Segurança, aliou os aspectos operacionais dos órgãos policiais, periciais e penitenciários daquela Pasta.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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