DIREITOS FUNDAMENTAIS E SOCIAIS SOSPENSADOS DURANTE A CRISE DO COVID-19

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18/11/2021 às 10:57
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Instituto Brasiliense de Direito Público-IDP

Curso de Direito

DIREITOS FUNDAMENTAIS E SOCIAIS SOSPENSADOS DURANTE A CRISE DO COVID-19

MÁRCIO MESSIAS CUNHA[1]

Instituto Brasiliense de Direito Público- IDP

Goiânia, 15 de novembro 2021[2]

Resumo

O presente artigo visa apresentar as mudanças trazidas pelo Poder Judiciário na sociedade, através do fenômeno denominado judicialização, envolvendo estritamente o contexto atual de uma epidemia global, buscando demostrar se esta situação é um meio de defesa a
à Constituição Federal ou abuso de poder, visto a interferência do judiciário nas demais esferas de poder. O artigo também apresentará a supressão de direitos e garantias individuais em tempos de calamidade pública e a legitimidade da atuação dos governantes locais na elaboração de medidas de contingenciamento do COVID-19.

Palavras-chave: Poder Judiciário. Calamidade Pública. Covid-19. Judicialização.

FUNDAMENTAL AND SOCIAL RIGHTS SOSPENSED DURING THE COVID-19 CRISIS

Abstract


The present article seen as changes brought by the Judiciary in society, through the phenomenon called judicialization, involving strictly the current context of a global epidemic, seeking to demonstrate whether this situation is a means of defense to the Federal Constitution or abuse of power, seen as judicial interference in other spheres of power. The article also presents a suppression of copyrights and individual guarantees in times of public calamity and legitimacy of the role of local governments in the elaboration of contingency measures for COVID-19.

Key-words: Judicial power. Public calamity. Covid-19. Judicialization.

INTRODUÇÃO

É notório a atuação do Supremo Tribunal Federal nas questões de repercussão politica e social no Brasil, este fenômeno recorrente é denominado como Judicialização, ou ativismo do Poder Judiciário. Inibindo a atuação do Congresso Nacional e do Poder Executivo, verdadeiros responsáveis pelo comando decisório das questões debatidas no STF. Assim, há uma transferência de poder para os juízes e tribunais em comandos que modificam, significativamente, o contexto social, tanto de comportamento quanto de valores sociais. Sendo um fenômeno com tendência mundial possuindo múltiplas causas.

Destarte, o artigo analisará o fenômeno da judicialização no contexto atual, de epidemia global, decretado pela Organização Mundial da Saúde (OMS), buscando debater sobre a supressão dos direitos e garantias fundamentais durante o período de calamidade pública e a atuação do Supremo Tribunal Federal, principalmente através da última decisão na ADI n°6.341.

Com isso, debateremos primeiramente sobre a importância dos direitos fundamentais e as previsões constitucionais de supressão de diretos nos estados de sítio e de defesa, bem como apresentaremos o conceito de calamidade pública e a possibilidade de aplicação de restrições neste caso.

Em um segundo momento será debatido a decisão do STF na ADI n° 6.341, que considerou constitucional a Medida Provisória 926/2020, assim como confirmou a atuação comum entre a União, os Estados, os Municípios e o Distrito Federal na instituição de medidas de restrição para o combate do coronavírus, o que ensejou na possibilidade de supressões de direitos fundamentais.

1. A IMPORTÂNCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

Os direitos fundamentais no Brasil foram invocados primeiramente junto à Constituição de 1891, com bastante similaridade em relação ao texto constituinte norte-americano, entretanto, não se observou bastante evolução em relação ao texto da primeira constituição nacional, outorgada em 1824.

A priori, os direitos fundamentais eram invocados no rol do artigo 72 da Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, que asseguravam já no caput os direitos fundamentais de primeira dimensão, herdados pelo caráter liberal que cercava a Revolução Francesa, e seus valores retratados de forma a garantir a liberdade de locomoção, segurança individual e direito a propriedade, bem como a igualdade material entre todos os cidadãos no quanto ao fato de que todos são iguais perante a lei.

A Constituição de 1891 tinha uma pauta de caráter liberal, onde se mostrava uma grande influência da Constituição norte-americana, seja no nome dado ao país (Estados Unidos do Brasil), bem como sua forma de Estado (Federação), a presença do controle difuso de constitucionalidade etc. Os direitos fundamentais individuais ainda eram previstos, contudo, sem a presença dos direitos sociais. (NUNES JÚNIOR. 2018, ONLINE).

Importante destacar a ideia que, durante a vigência da primeira constituição democrática do país, eram somente assegurados os direitos de primeira dimensão.

Os direitos fundamentais demonstram tamanha importância que sempre se mostraram presentes durante a realização das constituintes e de seus textos, outorgados ou promulgados, na história constitucional brasileira. Vale frisar que os direitos sociais, também conhecidos como os Direitos Fundamentais de Segunda dimensão, somente foram invocados a partir da Constituição de 1934, no caput do artigo 115: A ordem econômica deve ser organizada conforme os princípios da Justiça e as necessidades da vida nacional, de modo que possibilite a todos existência digna. Dentro desses limites, é garantida a liberdade econômica.

Deste artigo até o 143, foram discriminados todos os direitos econômicos e sociais, garantindo assim a presença da 2ª dimensão de direitos fundamentais.

Os direitos fundamentais de segunda dimensão são importantíssimos, uma vez que trazem consigo o dever de ação do Estado nas relações de trabalho e garantias de direito sociais, esquecidos com os valores retratados com a 1ª dimensão dos direitos. Ambos estiveram presentes em todas as constituições desde sua primeira aparição, e na atual Carta Constituinte, fazem valer sua presença já nos primeiros artigos.

Atualmente na Constituição da Republica vigente, possui o cunho de garantir políticas públicas de acesso a todas as pessoas, nacionais ou estrangeiros que se encontram no país. Direitos como saúde, educação são universais e irrenunciáveis, e de importante dever do Estado, cujo intuito é garantir a dignidade humana de que viva em seus domínios.

Os direitos fundamentais, em todas as dimensões classificadas doutrinariamente, são de caráter universal, e não podem ser cessados, suspensos ou renunciados, e caso fossem, caracterizariam grande ofensa ao Estado Democrático de Direito. São direitos que se distinguem entre os individuais e coletivos.

Os direitos a liberdade de expressão e locomoção, por exemplo, classificados como Direitos Fundamentais de 1ª Dimensão, são bastante comuns e utilizados no viver do Estado Democrático, as pessoas fazem isso todos os dias e em certos casos nem se dão conta.

Os valores alçados quando da realização da assembleia constituinte em 1987, calcados de valores democráticos e de liberdade, tornaram-se tão importantes que foram colocados já no início da Constituição Brasileira de 1988, visto todo o seu caráter político que dominava suas manifestações contra o então regime militar que predominava no Brasil até então.

Nas palavras de Carlos Blanco de Morais (2014, ONLINE):

Sendo, igualmente, uns e outros, direitos fundamentais, não haveria razões evidentes para conferir a uma dessas categorias, os direitos, liberdades e garantias, uma supremacia material e axiológica sobre os direitos sociais, já que concorreriam, de igual modo, para a valorização e proteção da pessoa humana.

Os direitos fundamentais são de extrema relevância para a proteção dos cidadãos brasileiros. Tais direitos partem de uma sociedade plural, livre e objetiva, bem como assegura tanto a individualidade e a coletividade. Quanto aos direitos de 1 dimensão, estes permeiam as liberdades políticas, são as chamadas liberdades individuais, que têm como foco a liberdade do homem individualmente considerado, sem nenhuma preocupação com as desigualdades sociais. (PAULO, ALEXANDRINO, 2015, p. 103).

Quando falamos de Direitos de 2ª Dimensão, referimo-nos aos chamados direitos sociais. Enquanto tínhamos intervenção mínima do Estado com a primeira dimensão dos direitos, garantindo a igualdade formal entre os cidadãos, com a segunda dimensão, tornou-se necessária uma intervenção moderada do Estado para que pudesse garantir a subsistência mínima e digna para todos os cidadãos, garantindo assim um tipo de igualdade material.

No que tangem aos direitos de primeira dimensão, observam-se os direitos negativos, onde se retratam os direitos de defesa de cada indivíduo frente ao estado. Caminhando em sentido oposto, os direitos de segunda dimensão observar-se-ão os direitos positivos, onde se retratam a igualdade (material) entre os homens, pautando-se em temáticas econômicas, sociais e culturais.

Segundo a Doutrina especializada (PAULO, ALEXANDRINO, 2015, p. 103-104):

Os direitos fundamentais de segunda geração correspondem aos direitos de participação, sendo realizados por intermédio da implementação de políticas e serviços públicos, exigindo do Estado prestações sociais, tais como saúde, educação, trabalho, habitação, previdência social, assistência social, entre outras. São, por isso, denominados direitos positivos, direitos do bem-estar, liberdades positivas ou direitos dos desamparados.

Há que se destacar, porém, que nem todos os direitos fundamentais de segunda geração consubstanciam direitos positivos, vale dizer, prestações positivas a serem adimplidas pelo Estado. Existem, também, direitos sociais negativos, como o de liberdade sindical (CF, art. 8.o) e o de liberdade de greve (CF, art. 9.o).

Em face dessa realidade, o critério para distinguir direitos fundamentais de segunda dimensão de direitos fundamentais de primeira dimensão não pode ser, unicamente, a natureza do dever do Estado, positivo (atuação) ou negativo (abstenção). A identificação da finalidade dos institutos parece constituir o melhor critério para a distinção. Assim, os direitos sociais são aqueles que têm por objeto a necessidade da promoção da igualdade substantiva, por meio do intervencionismo estatal em defesa do mais fraco, enquanto os direitos individuais são os que visam a proteger as liberdades públicas, a impedir a ingerência abusiva do Estado na esfera da autonomia privada.

Portanto, os direitos fundamentais de 2ª dimensão tornam-se importantes para garantir a intervenção do Estado para garantir os interesses tão somente da coletividade em geral, e no caso do Brasil, sendo a saúde pública e de comum acesso, a educação , alimentação, condições justas de trabalhos dentre outros, são chamados assim de direitos sociais.

Nas palavras de Alexandre de Moraes (2014, p. 204):

Direitos sociais são direitos fundamentais do homem, caracterizando-se como verdadeiras liberdades positivas, de observância obrigatória em um Estado Social de Direito, tendo por finalidade a melhoria de condições de vida aos hipossuficientes, visando à concretização da igualdade social, e são consagrados como fundamentos do Estado democrático, pelo art. I a, IV, da Constituição Federal.

(...) A Constituição de 1988, portanto, consagrou diversas regras garantidoras da socialidade e corresponsabilidade, entre as pessoas, os diversos grupos e camadas socioeconômicas.

Importante salutar que os direitos fundamentais são togados de valores constitutivos, além de serem classificados como cláusulas pétreas, ou seja, não podem ser alterados pelo poder constituinte derivado, e são eternos enquanto durara a vigência da atual constituição, e por serem direitos ligados ao conceito de personalidade da pessoa humana, são de suma importância para qualquer estado democrático de direito da atualidade.

Quanto aos direitos de 3ª dimensão, os mesmos são classificados como direitos difusos e coletivos, pertencentes a todos os cidadãos do mundo, ou seja, por se tratar dos direitos pertencentes ao meio ambiente, por exemplo, qualquer pessoa tem o direito de visar protege-lo. Nesta toada, os mesmos além de serem universais, também são irrenunciáveis e inalienáveis, e, assim como os anteriores, são de suma importância para o Estado Democrático de direito.

Essas três dimensões do direito se completam, cada uma demonstrando uma vertente dos três valores que nortearam a revolução francesa, consoante sendo a Liberdade (1ª dimensão, direitos negativos) Igualdade (2ª dimensão, direitos positivos) e por fim, a fraternidade (3ª dimensão, ideia de fraternidade entre os povos).

Em que pese existam circunstâncias específicas em que tais direitos possam ser suspensos, via de regra, os mesmos não podem ser sobrepujados, pois são direitos invioláveis.

2) DA SUSPENSÃO TEMPORÁRIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS: TIPOS DE SUSPENSÃO PREVISTA NA CF88

A carta maior que regem as leis, direitos e deveres que se materializam em nosso Estado Democrático de Direito, dispõe de uma série de valores éticos e morais que norteiam os direitos fundamentais, dando a eles um caráter absoluto em relação aos demais, uma vez que tais direitos devem sempre estar disponíveis para o gozo dos cidadãos.

Em que pese essa seja a regra geral, em alguns aspectos, a própria carta constituinte também inclui formas e maneiras que podem vir a suspender esses direitos fundamentais, tornando-os indisponíveis para gozo. O exemplo mais clássico que se pode auferir a isso, é o da prisão, que retira, em caráter temporário, o direito de liberdade de ir e vir do cidadão que vier a cometer qualquer delito penal. Importante frisar que essa suspensão é temporária visto a não existência de prisão perpétua no Brasil.

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O Artigo 15, III da Constituição Federal salvaguarda as hipóteses de suspensão dos direitos fundamentais, além, é claro, de endossar o fato de que os mesmos jamais poderão serem cessados, senão mediante o rol taxativo ali existente, senão vejamos:

Art. 15. É vedada a cassação de direitos políticos, cuja perda ou suspensão só se dará nos casos de:

I - cancelamento da naturalização por sentença transitada em julgado;

II - incapacidade civil absoluta;

III - condenação criminal transitada em julgado, enquanto durarem seus efeitos;

IV - recusa de cumprir obrigação a todos imposta ou prestação alternativa, nos termos do art. 5º, VIII;

V - improbidade administrativa, nos termos do art. 37, § 4º.

Principalmente no que concerne ao inciso III, o STF é enfático ao entendimento de que a suspensão dos direitos políticos se dá de forma automática ao transito em julgado de sentença penal condenatória irrecorrível. Segundo acórdão, de autoria do Min. Alexandre de Morais (redator) e Min, Marco Aurélio (relator):

EMENTA: PENAL E PROCESSO PENAL. SUSPENSÃO DOS DIREITOS POLÍTICOS. AUTOAPLICAÇÃO. CONSEQUÊNCIA IMEDIATA DA SENTENÇA PENAL CONDENATÓRIA TRANSITADA EM JULGADO. NATUREZA DA PENA IMPOSTA QUE NÃO INTERFERE NA APLICAÇÃO DA SUSPENSÃO. OPÇÃO DO LEGISLADOR CONSTITUINTE. RECURSO CONHECIDO E PROVIDO.1. A regra de suspensão dos direitos políticos prevista no art. 15, III, é autoaplicável, pois trata-se de consequência imediata da sentença penal condenatória transitada em julgado.2. A autoaplicação independe da natureza da pena imposta.3. A opção do legislador constituinte foi no sentido de que os condenados criminalmente, com trânsito em julgado, enquanto durar os efeitos da sentença condenatória, não exerçam os seus direitos políticos. 4. No caso concreto, recurso extraordinário conhecido e provido.

Ou seja, os direitos políticos, classificados pelos doutrinadores como direito fundamental de primeira dimensão, podem ser cessados em caso de atender o dispositivo do artigo supramencionado. A ideia de punição delitiva tem o intuito de cessar imediatamente o exercício dos direitos fundamentais, não só dos direitos políticos, mas também, do direito de liberdade de ir e vir, contudo, importante frisar que somente poucos direitos fundamentais são cessados, permanecendo assim uma gama ainda maior dos quais o indivíduo ainda pode usufruir.

Seguindo como exemplo, com relação aos Direitos Sociais, classificados pelos doutrinadores como Direitos Fundamentais de 2ª dimensão, os mesmos não cessam (ou pelo menos a maioria), ou seja, em que pessoas, mesmo após cometido um delito, e privados de sua liberdade, ainda possuem direito a educação, saúde e qualidade de vida digna.

O Estado não pode se abster de prover tais condições a uma pessoa em caráter punitivo, vez que isso caracterizaria afronta à carta maior.

Além do exemplo citado alhures, também existem outros meios de suspenderem ou cessarem os direitos constitucionais dos cidadãos, previstos por lei complementar ou até mesmo por caráter constitucional, como os casos de Calamidade Pública, Estado de Sítio e Estado de Defesa, tais hipóteses serão tratadas a seguir;

2.1.) Do Estado de Calamidade Pública

O estado de calamidade pública representa o reconhecimento de um fato ou ocorrência que esteja além das condições normais previstas para os gastos que o governo possui anualmente. De certo modo, a decretação do Estado de Calamidade Pública significa que o governo poderá suprimir as leis orçamentárias para combater o mal que assola o país, em poucas palavras, o governo poderá gastar mais do que deve.

Em teoria, isso não afetaria diretamente os direitos fundamentais em todas as suas dimensões, uma vez que se trata de uma previsão legal que é posta em atividade somente para que o governo possa gastar mais do que pode para que possa combater uma anomalia que se instala no Brasil, em caráter emergencial. Trata-se de uma superação do limite de gastos, aumentando assim a dívida pública e o déficit orçamentário.

A legalidade do Estado de Calamidade está pautada no artigo 65 da Lei Complementar nº 101/2000, disposta no artigo 65, senão vejamos:

Art. 65. Na ocorrência de calamidade pública reconhecida pelo Congresso Nacional, no caso da União, ou pelas Assembleias Legislativas, na hipótese dos Estados e Municípios, enquanto perdurar a situação:

I - serão suspensas a contagem dos prazos e as disposições estabelecidas nos arts. 23 , 31 e 70;

II - serão dispensados o atingimento dos resultados fiscais e a limitação de empenho prevista no art. 9o.

Parágrafo único. Aplica-se o disposto no caput no caso de estado de defesa ou de sítio, decretado na forma da Constituição.

Noutro ponto, somente em 2010 surgiu uma regulamentação que viesse a predispor como seriam feitos os gastos neste estado, bem como a dizer a respeito de como eles seriam determinados. O Decreto 7.257/2010 dispõe sobre o artigo 65 da LC 101, apresentando em seu artigo 7° forma de reconhecimento do estado de calamidade pública, in verbis:

Art. 7º O reconhecimento da situação de emergência ou do estado de calamidade pública pelo Poder Executivo federal se dará mediante requerimento do Poder Executivo do Estado, do Distrito Federal ou do Município afetado pelo desastre.

Via de regra, a situação de calamidade não impede que os brasileiros sejam restritos de seus direitos fundamentais, garantidos nos artigos 5 e 7 da CF/88, na realidade, somente legaliza os gastos extraordinários não previstos pelo Poder executivo, que desde o ano 2000, segue a risca a Lei de Responsabilidade Fiscal.

Ainda assim, para suprir os gastos extraordinários não previstos com a decretação do Estado de Calamidade Pública, existe a possibilidade de a União encontrar meios para angariar fundos para o combate à calamidade, como por exemplo, o uso de Empréstimo Compulsório, instituto previsto na Constituição de 1988, no artigo 148, senão vejamos:

Art. 148. A União, mediante lei complementar, poderá instituir empréstimos compulsórios: I - para atender a despesas extraordinárias, decorrentes de calamidade pública, de guerra externa ou sua iminência;

O decreto em nenhum momento retratou a suspensão temporária dos direitos fundamentais, contudo, atualmente, vemos que com a Calamidade Pública decretada, os chefes do poder executivo de todas as esferas tem se mostrado a favor do isolamento social, mantendo os cidadão em quarentena domiciliar, afim de que se possa evitar a disseminação do COVID-19, atual responsável pela pandemia generalizada que assola o mundo.

Em que pese não haja previsão legal para a restrição do direito constitucional de ir e vir, que representa a liberdade do povo brasileiro garantido no artigo 5º da CF88, o mesmo tem sido utilizado pelos chefes do executivo para garantir a mínima taxa de transmissão possível do vírus. Importante salutar que esta tem sido a recomendação da OMS, contudo, o Estado de Calamidade Pública, por si só, não garante a restrição de direitos constitucionais.

Tal situação é divergente de outros dois tipos de Estados de Exceção previstos pela legislação brasileira constitucional, que são o Estado de Defesa e o Estado de Sítio, ambos explanados a seguir:

2.2) Do Estado de Defesa e Do Estado de Sítio

As formas legais de suspensão do direito fundamental, principalmente o direito de ir e vir, previstas na constituição, encontra-se pautadas nos artigos 136 a 139 da nossa Carta Maior. A previsão originalmente prevista pelo constituinte, previa somente a possibilidade de uma ocasião de guerra internacional (estado de sítio) ou casos de grave comoção nacional, para que se restaure a ordem social (estado de defesa).

A implementação de ambos estados de exceção permite ao governo solicitar ao congresso a instauração dos mesmos, e em caso de aprovação, o chefe do poder executivo poderá suspender alguns direitos fundamentais.

O estado de defesa é uma modalidade mais branda do que o estado de sitio, sendo conceituado como o instituto necessário, e possível, para preservar ou prontamente restabelecer a ordem pública ou a paz social. Portanto, a decretação do estado de defesa pode ser efetuado quando houver grave e iminente instabilidade institucional ou calamidade de grande proporções na natureza, um bom exemplo é o caso de Brumadinho, o qual poderia ter sido decretado estado de defesa, visto os danos exorbitantes causados pelo rompimento da barragem, mas não o foi.

Com a decretação destes nos institutos é possível à supressão de direitos e garantias fundamentais, deis de que devidamente fundamentado, garantindo a paz e a ordem social. A supressão

No caso do estado de defesa as supressões estão dispostas no artigo 136, § 1º, I senão vejamos:

Art. 136. (...) § 1º O decreto que instituir o estado de defesa determinará o tempo de sua duração, especificará as áreas a serem abrangidas e indicará, nos termos e limites da lei, as medidas coercitivas a vigorarem, dentre as seguintes:

I - restrições aos direitos de:

a) reunião, ainda que exercida no seio das associações;

b) sigilo de correspondência;

c) sigilo de comunicação telegráfica e telefônica;

Como pode ser observado o decreto presidencial deverá indicar o prazo de sua duração, especificar as áreas abrangidas e as medidas coercitivas que serão aplicadas. Essas medidas devem fornecer os meios necessários para a solução da situação para o qual foi decretado, não podendo o Presidente ultrapassar os limites impostos pela própria Constituição. O estado de defesa possui o prazo máximo de 30 (trinta) dias, prorrogável, uma única vez, pelo mesmo período.

O estado de sitio, por sua vez, apresenta a supressão temporária de direitos e garantias quando Estado se encontra em uma situação mais grave, onde o Presidente da República obrigatoriamente deverá solicitar autorização da maioria absoluta do Congresso Nacional para a sua decretação.

De acordo com o artigo 137 da Constituição Federal há três hipóteses para a decretação do estado de sitio, todas com aplicações diferentes, sendo elas:

  • Comoção grave de repercussão nacional (inciso I, primeira parte);

  • Fatos que comprovem a ineficácia de media tomada durante o Estado de Defesa (Inciso I, parte final);

  • Declaração de estado de guerra ou resposta a agressão estrangeira (Inciso II).

No decreto deverá constar o tempo de duração, as normas necessárias para a execução e as garantias constitucionais que ficaram suspensas, devendo o Presidente designar um executor para aplicar e gerir tais mudanças.

No Brasil foi decretado estado de sítio em 1925, no governo de Arthur Bernardes, durante o movimento coluna prestes (Movimento contrário ao governo denominado República Velha do Café-com-Leite). Em 1935 Getúlio Vargas, diante da divisão das forças revolucionárias, também decretou estado de sítio.

3. DA LEGALIDADE DOS ESTADOS E DOS MUNICÍPIOS PARA A SUSPENSÃO DOS DIREITOS: UMA ANÁLISE SOBRE A DECISÃO DO STF

A Constituição Federal de 1988 trouxe, em seu artigo 23, inciso II, a competência comum entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios para cuidar da saúde e assistência pública, da proteção e garantia das pessoas portadoras de deficiência. E a normatização da cooperação entre os entes federados seria regulamentada por meio de lei complementar, conforme o parágrafo único do referido artigo.

Como é notório o mundo está passando por uma pandemia do novo Coronavírus, ou também intitulado de Sars-Cov-2, conforme decreto da Organização Mundial de Saúde, o que vez com que o Brasil tomasse medidas para o enfrentamento do vírus, uma vez que é visível o caráter urgente, já que o número de contaminados ultrapassam 2 milhões de pessoas e o número de mortes confirmadas chegam a 207.431 no mundo[3]. As medidas adotadas pelo Brasil, além da decretação de calamidade pública, foram a publicação da Lei n° 13.979, de 6 de fevereiro de 2020, estabelecendo medidas para o enfrentamento da emergência de saúde pública, e a Medida Provisória n° 926, de 20 de março de 2020, que altera a Lei 13.99/2020, dispondo sobre os procedimentos para aquisição de bens, serviços e insumos destinados ao enfrentamento da pandemia.

Com a publicação da Medida Provisória mencionada acima o Partido Democrático Trabalhista- PDT ajuizou Ação Direta de Inconstitucionalidade, alegando a incompatibilidade parcial ente a Constituição Federal e a MP, já que esta alterou o artigo 3°, caput, os incisos I, II e IV, e parágrafos 8°, 9°, 10 e 11, da referida lei federal. Vejamos:

Art. 3º Para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus, as autoridades poderão adotar, no âmbito de suas competências, dentre outras, as seguintes medidas:

I isolamento;

II quarentena []

VI - restrição excepcional e temporária, conforme recomendação técnica e fundamentada da Agência Nacional de Vigilância Sanitária, por rodovias, portos ou aeroportos de:

a) entrada e saída do País;

b) locomoção interestadual e intermunicipal;

[] § 8º As medidas previstas neste artigo, quando adotadas, deverão resguardar o exercício e o funcionamento de serviços públicos e atividades essenciais.

§ 9º O Presidente da República disporá, mediante decreto, sobre os serviços públicos e atividades essenciais a que se referem o § 8º.

§ 10. As medidas a que se referem os incisos I, II e VI do caput, quando afetarem a execução de serviços públicos e atividades essenciais, inclusive as reguladas, concedidas ou autorizadas, somente poderão ser adotadas em ato específico e desde que em articulação prévia com o órgão regulador ou o Poder concedente ou autorizador.

§ 11. É vedada a restrição à circulação de trabalhadores que possa afetar o funcionamento de serviços públicos e atividades essenciais, definidas nos termos do disposto no § 9º, e cargas de qualquer espécie que possam acarretar desabastecimento de gêneros necessários à população.

As alegações feitas na Ação Direta de Inconstitucionalidade pelo PDT são de inconstitucionalidade formal ante a disciplina, uma vez que a matéria deveria ser regulamentada mediante Lei Complementar, o PDT ressaltou que a matéria trazida pela MP é de temática da vigilância sanitária e epidemiológica, estando no rol de atribuições do Sistema Único de Saúde, portanto, não poderia sofrer normatização por meio de Medida Provisória. Há, também, a arguição de inconstitucionalidade material, ante a competência administrativa comum entre os entes federados para a adoção das medidas de isolamento e quarentena, assim como as restrições de locomoção por rodovias, portos e aeroportos, bem como para a decretação dos serviços considerados essenciais, nos termos dos artigos 23, inciso II, 198, inciso I, e 200, inciso II, todos da CF/88. O que violaria a autonomia dos Estados.

Em sessão realizada por videoconferência o Supremo concedeu liminar na ADI n°6.341, com caráter meramente pedagógico, confirmando que a medida provisória não retira a competência comum, instituída pela Constituição Federal, no que se refere às medidas para contenção do Covid-19. Podendo, portanto, os Estados, os Municípios e o Distrito Federal regulamentar internamente, conforme a necessidade de cada ente, questões referentes ao isolamento e a quarentena, assim como a paralisação de serviços não essenciais.

O Supremo relata que o artigo 3°, da MP 926, em seu caput, sinaliza a atuação conjunta das autoridades, no âmbito de suas competências, afastando o precedente arguido de que apenas a União estaria decidindo sobre as questões referentes ao combate do coronavírus, não existindo qualquer transgressão a preceito da Constituição Federal, uma vez que as providências adotadas não afastariam os atos praticados pelos Estados, Municípios e o Distrito Federal.

Em relação à reserva de lei complementar para regulamentar sobre a questão o STF considerou que descabe a óptica no sentido de o tema somente pode ser objeto de abordagem e disciplina mediante lei de envergadura maior. Uma vez que há os precedentes de urgência, necessidade e disciplina geral de abrangência nacional, requisitos para a elaboração de medidas provisórias, não existindo qualquer forma de inconstitucionalidade formal. Assim, o Presidente da República- Jair Bolsonaro- na edição da Medida Provisória não afastou a competência comum dos entes, em relação à questão de saúde pública.

Por conseguinte, os decretos estaduais, distritais e municipais regulamentando o isolamento, a quarentena e quaisquer outras medidas para o contingenciamento do vírus é inteiramente válido, visto a competência comum entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios para tratar sobre questões de saúde pública.

E devido à situação atual, de forma nacional e internacional, tais decretos têm suspendidos direitos fundamentais abrindo um grande debate sobre essa possibilidade. Já que, diante da pandemia da Covid-19, a limitação de circulação tem sido o meio mais eficaz para a contenção do vírus.

A Constituição Federal traz em seu artigo 5°, XV, a liberdade de locomoção, tratando-se de um direito de primeira dimensão, ou seja, uma obrigação negativa do Estado, de não fazer, de não intervir, protegendo a autonomia individual. Entretanto, nenhum direito fundamental é absoluto, podendo ser objeto de limitação devido ao cenário interno e externo do país, como é o caso do controle de locomoção nos casos de guerra. Devendo ser analisado, para que ocorra essa restrição, a proporcionalidade, a necessidade e o custo-benefício dessa retenção. Com isso, a restrição do direito de ir e vir neste momento é a maneira mais segura e eficaz de garantir o direito à vida e à saúde pública.

Tal precedente não autoriza a elaboração de medidas extremas, como a decretação do toque de recolher efetuada pelo município de Umurama, Paraná. O município alegou que a decisão recente do STF que concede autonomia para os entes federados para disporem de medidas de combate ao coronavírus abre um precedente autorizando a elaboração de um toque de recolher, além de possuir decretos com textos similares pelo Brasil. O que foi descartado pelo Supremo, uma vez que não há nenhuma norma que impõe restrição de ir e vir de quem quer que seja, mas sim uma recomendação.

A Lei 13.979/2020, em seu artigo 3°, inciso VI, alínea b autoriza apenas a restrição de locomoção interestadual e intermunicipal, exercida em caráter excepcional e após recomendação técnica e fundamentada da Agência Nacional de Vigilância Sanitária, o que não foi o caso de Umurama.

Portanto, apesar de ser necessário medidas que suspendam diretos fundamentais para o combate ao Covid-19, estas não podem extrapolar os preceitos constitucionais, uma vez que as decisões efetuadas pelos chefes do executivo devem ser organizadas e baseadas em dados científicos comprovados.

Toda essa interferia no Poder Executivo, tanto da União, Estados e Municípios demonstra a forte judicialização que o país vem sofrendo, fazendo com que o Poder Judiciário torne-se um respaldo para os anseios da sociedade que busca uma satisfação social não preenchida pelos demais poderes. Logo, caso não seja atendido por eles, imediatamente, é protocolado uma ação para resguardar os direitos que consideram legítimos, o que muitas vezes é inverídico ou carece de provas.

CONCLUSÃO

Em conclusão, é possível perceber que a judicialização decorre, especialmente, da ineficiência do Poder Legislativo, principalmente pela sua morosidade, assim, a sociedade em geral, não aguarda o seu posicionamento buscando resguardo no Poder Judiciário.

A atuação do Supremo Tribunal Federal nas questões político-administrativas tem ganhado proporções gigantescas nos últimos anos, o que acaba por influenciar diretamente na sociedade em si. Onde essa corriqueira incidência provoca a ideia de satisfação social nos problemas apresentados aos tribunais o que corrobora para um enorme número de demandas judiciais.

A Ação Direta de Inconstitucionalide proposta pelo PDT, discutida no presente artigo, demonstra essa busca da sociedade por satisfação social imediata, fazendo com que o STF atue diretamente em decisões dos outros poderes.

Logo, a liminar do Supremo acaba por ter um impacto maior do que imaginável. E a reafirmação de atuação comum da União, Estados, Municípios e Distrito Federal para a promoção de medidas de restrição no combate ao COVID-19 permite uma tomada de decisão mais rigorosa, e individualizada, por parte dos governantes, ocorrendo uma forte supressão de direitos e garantias descritas na Constituição Federal.

Referências

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  1. Advogado;

    Mestre em Direito pelo IDP - Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa;

    Doutorando em Direito Constitucional pelo IDP - Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa;

    Contato: [email protected];

  2. Artigo feito pelo autor na qualidade de Doutorando em conjunto com o IDP - Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa;

  3. Dados da University e Medicine Johns Hopkins. Disponível em: coronavirus.jhu.edu/map.html. Acesso em 27/04/2020.

Sobre o autor
Marcio Messias Cunha

Advogado; Mestre em Direito pelo IDP - Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa; Doutorando em Direito Constitucional pelo IDP - Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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