Violação de Domicílio

19/11/2021 às 19:53
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A Lei protege a casa do indivíduo e o direito de propriedade (art. 5º, ns. XI e XXII, da Const. Fed.); pune, por isso, a violação injustificada de domicílio e a invasão de propriedade urbana e rural (arts. 150 e 161, nº II, do Cód. Penal).

1. Desde a mais alta antiguidade foi a casa considerada lugar sagrado[1]. Definiu-a com esse caráter a Constituição Federal: “A casa é asilo inviolável do indivíduo”; ninguém pode nela entrar sem consentimento do morador, salvo em caso de crime (art. 5º, nº XI). Aqui, perdida já sua característica principal de santuário doméstico, ter-se-á transformado em antro de delinquência...

A violação de domicílio, enfim, o Código Penal capitula de crime[2].

A proteção jurídica da propriedade e a inviolabilidade do domicílio figuram expressamente, na Carta Magna, como garantia e direito fundamental do indivíduo (art. 5º, caput, e ns. XI e XXII).

Também o Código Penal sob a rubrica esbulho possessório pune a invasão de propriedade, “com violência a pessoa ou grave ameaça, ou mediante o concurso de mais de duas pessoas (art. 161, nº II)”. É a lei a proteger direito inerente à mesma condição humana, porque extensão da personalidade: o direito de propriedade[3].

Eis por que, no limiar de toda propriedade (casa, choupana, sítio ou fazenda), poder-se-á ler, sob forma de advertência legítima, a inscrição imaginária: “Sem autorização do proprietário, aqui só entra o Sol!”.

2. Nos Tribunais de Justiça, o prestígio do direito de propriedade nunca sofreu abalo, como se extrai dos acórdãos a seguir reproduzidos:

 

PODER JUDICIÁRIO

Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo

Quinta Câmara Seção Criminal

 

Recurso em Sentido Estrito nº 926.743-3/3-00

Comarca: Mogi das Cruzes

Recorrente: MSF

Recorrido: Ministério Público

 

Voto nº 9024

Relator

– “A casa é o asilo inviolável do cidadão”, reza a Constituição Federal (art. 5º, nº XI); por isso, nela ninguém pode penetrar, se o não consentir o morador, ou ordenar a autoridade judicial. O preceito legal mesmo, no entanto, excepciona hipótese de flagrante delito.

– “O delito de guarda ou depósito de arma de fogo constitui crime permanente, admitindo a entrada na casa do infrator para efetuar prisão em flagrante” (Damásio E. Jesus, Crimes de Porte de Arma de Fogo e Assemelhados, 2a. ed., p. 48).

– Sucessivas decisões contraditórias em processo criminal têm sempre operado como causa de insegurança nos negócios jurídicos e grande descrédito da Justiça, pelo que se devem evitar quanto possível.

1. Da r. decisão do MM. Juízo de Direito da 1a. Vara Criminal da Comarca de Mogi das Cruzes, deferindo a LSC o relaxamento da prisão em flagrante, interpôs Recurso em Sentido Estrito, levando em vista reformá-la, o digno representante do Ministério Público.

Nas elegantes razões de recurso de fls. 2/19, afirma que, ao revés do que decidiu o nobre Magistrado, o fato imputado ao recorrido constituía, em tese, infração penal; concorriam na espécie, ao demais, os elementos suficientes para justificar sua manutenção em custódia; pelo que, não havia relaxar-lhe a prisão em flagrante.

Assim, firme na lição da Jurisprudência, espera o provimento de seu recurso para que, reformada a r.decisão de Primeiro Grau, seja restabelecida a custódia provisória do réu, expedindo-se-lhe mandado de prisão.

A Defesa apresentou contrarrazões de recurso, nas quais repeliu os argumentos da douta Promotoria de Justiça e propugnou a mantença da r. decisão atacada (fls. 27/33).

O r. despacho de fl. 34 manteve, por seus próprios fundamentos, a r. decisão recorrida.

A ilustrada Procuradoria-Geral de Justiça, em incisivo e abalizado parecer do Dr. Ludgero Francisco Sabella, opina pelo provimento do recurso (fls. 48/50).

É o relatório.

2. Foi preso em flagrante o requerido, por infração do art. 12 da Lei de Tóxicos e art. 14 da Lei nº 10.826/03 (Estatuto do Desarmamento), já que, no dia 6 de dezembro de 2004, pelas 20h30, na Rua Koheiji Adachi, em Mogi das Cruzes, guardava, para fins de tráfico, 255 g de Cannabis sativa L (maconha), substância entorpecente que determina dependência física ou psíquica, sem autorização e em desacordo com determinação legal ou regulamentar; ainda mantinha sob guarda, ilegalmente, duas pistolas semiautomáticas (fl. 40).

O MM. Juízo, imprimindo relevo às circunstâncias do caso e argumentando que, a diligência policial “suprimiu garantia constitucional”, foi servido relaxar a prisão em flagrante do recorrido (fl. 42), com o que, entretanto, não concordou a combativa Promotoria de Justiça; daqui o ter manejado recurso.

3. “A casa é o asilo inviolável do cidadão”, reza o art. 5º, nº XI, da Constituição Federal; por isso, nela ninguém pode penetrar, se o não consentir o morador, ou ordenar a autoridade judicial.

O preceito legal mesmo, no entanto, excepciona a hipótese de flagrante delito.

Ora, dos elementos que instruem o recurso consta que, tendo chegado à notícia de policiais que o recorrido estava a praticar o comércio ilícito de entorpecentes, tomaram para a sua casa e, sendo aí, apreenderam certa quantidade 46 invólucros da erva maconha, além de armas de fogo, em situação irregular.

Era caso, logo se vê, de ocorrência de crimes permanentes.

De feito, o crime do “art. 12 da Lei de Tóxicos é permanente em cinco modalidades (exposição, venda, depósito, transporte, trazer consigo e guarda)” (Celso Delmanto, Tóxicos, 1a. ed., p. 19).

No que respeita ao delito de “guarda ou depósito de arma de fogo constitui crime permanente, admitindo a entrada na casa do infrator para efetuar prisão em flagrante” (Damásio E. Jesus, Crimes de Porte de Arma de Fogo e Assemelhados, 2a. ed., p. 48).

Em tais casos, assim a doutrina como a jurisprudência dos Tribunais sempre houveram por legítima a prisão do infrator.

O ven. aresto do Colendo Supremo Tribunal Federal, abaixo reproduzido por sua ementa, faz bem ao propósito:

Habeas Corpus Invasão de domicílio para realização do flagrante Nulidade Art. 5º, nº XI, da Const. Fed. Legitimidade do flagrante Infração permanente.

Estado de flagrância caracterizado, o que afasta a exigência do mandado judicial, art. 5º, nº XI, da Const. Fed. Pedido conhecido, mas indeferida a ordem de habeas corpus (HC nº 70.909-5; rel. Min. Paulo Brossard; DJU 25.11.94, p. 32.299).

Pela boa doutrina que encerra, não posso menos de copiar aqui este lanço de Vicente de Azevedo:

“Urge que seja abolida a injustificável primazia do interesse do indivíduo sobre a tutela social. Não se pode continuar a contemporizar com pseudodireitos individuais em prejuízo do bem comum” (Curso de Direito Judiciário, 1958, vol. I, p. 44).

4. Na espécie dos autos, por força do alvará de fl. 43, já estará o recorrido em liberdade.

Mas, havendo consideração à data do r. despacho impugnado 7.12.2004 (fl. 42) , não é improvável tenha sido já sentenciado o feito e, pois, decidida a sorte do réu no tocante a seu status libertatis.

Ao demais, sucessivas decisões contraditórias em processo criminal têm sempre operado como causa de insegurança nos negócios jurídicos, além de descrédito da Justiça, pelo que se devem evitar quanto possível.

5. Pelo exposto, nego provimento ao recurso.

 

São Paulo, 3 de agosto de 2007

Des. Carlos Biasotti

Relator

 

PODER JUDICIÁRIO

Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo

Quinta Câmara Seção Criminal

 

Habeas Corpus nº 990.09.141950-8

Comarca: Presidente Bernardes

Impetrantes: Dr. Aton Fon Filho,

Dr. Leandro Lúcio Baptista Linhares,

Dr. Roberto Rainha,

Dra. Paloma Gomes e

Dra. Giane Alvares Ambrósio Alvares

Paciente: JAGM

Voto nº 12.000

Relator

 

– Não entra em dúvida que, a despeito do princípio da presunção de inocência, consagrado na Constituição da República (art. 5º, nº LVII), subsiste a providência da prisão preventiva, quando conspiram os requisitos legais do art. 312 do Código de Processo Penal: garantia da ordem pública, conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal, desde que comprovada a materialidade da infração penal e veementes os indícios de sua autoria.

– Não requer o despacho de prisão preventiva o mesmo rigor que deve encerrar a decisão definitiva de condenação. É o escólio de Damásio E. de Jesus ao art. 312 do Cód. Proc. Penal: “A prisão preventiva exige prova bastante da existência do crime e indícios suficientes de autoria. Não é necessária a mesma certeza que deve ter o juiz para a condenação do réu” (cf. Código de Processo Penal Anotado, 23a. ed., p. 253).

– Matéria de alta indagação, como a que entende com a autoria do crime, é insuscetível de exame em processo de habeas corpus, de rito sumaríssimo; apenas tem lugar na instância ordinária, com observância da regra do contraditório. Trancamento de ação penal por falta de justa causa unicamente se admite quando comprovada, ao primeiro súbito de vista, a atipicidade do fato imputado ao réu, ou a sua inocência (art. 648, nº I, do Cód. Proc. Penal).

– “Exame de provas em habeas corpus é cabível desde que simples, não contraditória e que não deixe alternativa à convicção do julgador” (STF; HC; rel. Min. Clóvis Ramalhete; DJU 18.9.81, p. 9.157).

– “O dia em que se não cumprirem as decisões judiciais transitadas em julgado perecerá o direito, e com ele a liberdade, que faculta a plena realização da pessoa humana na sociedade em que vive” (Carlos Alberto Menezes Direito, Manual do Mandado de Segurança, 4a. ed., p. 200).

– Entre nós, tem o direito de propriedade garantia constitucional (art. 5º, nº XXII, da Const. Fed.). Por isso, no limiar de toda propriedade (choupana, chácara, sítio e fazenda), haveremos de ler, sob a forma de advertência legítima, a imaginária inscrição: “Aqui, sem a minha autorização, só entra o Sol e ninguém mais!”.

 

1. Os ilustres advogados Dr. Aton Fon Filho, Dr. Leandro Lúcio Baptista Linhares, Dr. Roberto Rainha, Dra. Paloma Gomes e Dra. Giane Alvares Ambrósio Alvares impetram a este Egrégio Tribunal ordem de habeas corpus, com pedido de liminar, em prol de JAGM, sob o argumento de que padece constrangimento ilegal da parte do MM. Juízo de Direito da Comarca de Presidente Bernardes.

Afirmam, em extensa e esmerada petição (fls. 2/30), que, embora processado por formação de quadrilha (art. 288 do Cód. Penal), era manifesto o constrangimento ilegal que o paciente estava a sofrer, porquanto nenhum crime cometera.

Argumentam que, por isso, não havia subsistir o decreto de prisão preventiva, ou por falta de justa causa, ou por sua ilegalidade, pois que ausentes os pressupostos processuais que a poderiam autorizar.

Notam ainda de mal fundamentado o r. despacho que a decretou.

Rematam que o paciente é primário, tem residência fixa e família constituída.

Pleiteiam, destarte, à colenda Câmara tenha a bem conceder a ordem de habeas corpus para revogar-lhe a custódia cautelar, com expedição de contramandado de prisão.

Instruíram o pedido com cópia dos autos da ação penal e numerosos outros documentos (cf. Apenso).

O despacho de fls. 33/37 indeferiu a medida liminar pleiteada.

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A mui digna autoridade judiciária indicada como coatora prestou as informações de praxe, nas quais esclareceu ter sido o paciente denunciado por infração do art. 288 do Código Penal.

Informou também que não foi ainda cumprido o mandado de prisão expedido contra o paciente (fls. 52/54).

A ilustrada Procuradoria-Geral de Justiça, em ponderado e escorreito parecer do Dr. Eder Lago Mendes Ferreira, opina pela denegação da ordem (fls. 45/50).

É o relatório.

2. Da denúncia, juntada a estes autos por cópia (Apenso), extrai-se que, desde 2005 até meados de maio de 2007, em Presidente Bernardes, o paciente, obrando em concurso e unidade de propósitos com três outros indivíduos, associaram-se em bando, para a prática de número indeterminado de crimes de esbulho possessório, furtos, incitação ao crime e danos aos patrimônios particulares.

Instaurada a persecução penal, entrou o processo a correr seus trâmites.

Por decisão de 24.4.2009 fls. 1.357/1.361 dos autos da ação penal (7º vol.) , o MM. Juiz de Direito da Comarca de Presidente Bernardes, Dr. Gabriel Medeiros, decretou a prisão preventiva dos réus VUS e JAGM.

Fê-lo pelas seguintes razões de fato e de direito: constara-lhe, por provas e indícios, que o paciente JAGM conhecido como Cido Maia, que já respondia a processo por “formação de quadrilha para invadir propriedade, tornara a praticar novo crime, associando-se e liderando centenas de pessoas”.

Foi o caso que, no dia 17.4.2009, integrantes do denominado Movimento Sem-Terra (MST) teriam invadido a “Fazenda Santa Terezinha”, situada no município de Nantes, liderados conforme o “Boletim de Ocorrência nº 41” (fl. 1.336) por JAGM (o paciente) e CMS.

Mesmo citados para os termos de ação de reintegração de posse, o paciente, menoscabando a ordem judicial, protestara que, “em nome do movimento”, não deixaria o local.

Mencionou o Magistrado que a imprensa regional divulgara esses fatos, ilustrando-os com “foto dos invasores”, na qual figurava o paciente. Aludiu ainda à matéria do jornal “Oeste Notícias”, desta substância: “Polícia Civil investiga furto de gado em Iepê. Abate de bovinos pode ter ligação com integrantes do MST que ocupam área próxima” (fl. 1.359).

A Promotoria de Justiça de Presidente Bernardes, como se vê das fls. 1.342/1.343 (7º vol.), mandou reduzir a termo, aos 14.4.2009, as declarações de Marcos Antônio Sanches, fotógrafo de profissão, que, a pedido de Carlos Dias, proprietário da Fazenda São Luís, tirara fotos “das pessoas que estavam invadindo a área, que seriam integrantes do MST”. Aí lhe informaram que o líder era o indivíduo Tião, de quem se aproximou e ouviu logo a advertência que não queria ser fotografado. O declarante, porém, logrou tirar-lhe “uma foto de perfil”. Ajuntou que “Tião estava colocando a bandeira no pasto”. Fotografou também os “barracos que estavam sendo armados e as placas dos veículos utilizados pelos invasores”.

Usava “boné vermelho” e trajava “camisa preta” o indivíduo que se identificara por “Tião”.

Exibida, contudo, sua foto ao proprietário da Fazenda São Luís, este foi peremptório: “não era Tião e sim Cido Maia” (fl. 1.343).

Firmes nessas múltiplas e concretas circunstâncias, o mui digno Juiz de Direito da Comarca de Presidente Bernardes, indicado como autoridade coatora, teve a bem decretar a prisão preventiva do paciente JAM, a quem nomeiam também Cido Maia.

Irresignado com a decisão que lhe impôs medida constritiva de liberdade, o paciente vem a este augusto Pretório de Justiça clamar por sua revogação.

Assistido de causídicos notáveis por seus talentos, competência e combatividade que bem atestam a força e o prestígio da Classe dos Advogados, à qual todo o louvor é curto , alega o paciente, em longa e erudita peça forense (fls. 2/30), que não concorriam na espécie sub judice os requisitos autorizadores da decretação da prisão cautelar.

Sustentam os nobres impetrantes que o paciente jamais colocou “em risco a ordem pública da comunidade paulista” (fl. 27).

Requerem, por isso, a revogação da custódia preventiva e a expedição de contramandado de prisão em favor do paciente.

3. Pelo que respeita aos protestos de inocência que seus esforçados patronos firmaram nos autos de que, a admitir-se tenha sido o paciente “visto ou fotografado no latifúndio ocupado, não era bastante a configurar algum ilícito penal a recomendar a sua segregação cautelar” (fls. 9/10) , não é ponto suscetível de resolução na esfera exígua do habeas corpus.

Com efeito, em razão de seu rito sumaríssimo, na via heroica do habeas corpus é defeso proceder a exame de matéria de alta indagação. Isto de haver ou não o paciente concorrido para a prática do crime que lhe imputou a denúncia, como se trata de questão que apenas pode ser dirimida na quadra de dilação probatória, na instância ordinária, não há apreciá-la em processo de habeas corpus.

Assim, apenas na instância regular, sob o contraditório processual, será lícito apurar a alegada inocência do paciente.

Esta, com efeito, é a jurisprudência consagrada por nossos Tribunais, em acórdãos infinitos em número:

“Somente pode ser reconhecida e afirmada, em sede de habeas corpus a falta de justa causa para a ação penal , quando os fatos apontados como delituosos são atípicos ou quando a inocência do acusado se manifesta de forma desembuçada, clara, precisa, límpida e incontestável” (Rev. Tribs., vol. 499, p. 488).

Em tese, o fato atribuído ao réu tipifica ilícito penal; acha-se presente, pois, o fumus boni juris que legitima e autoriza a instauração do processo-crime contra seu provável autor. Se a presença do paciente no lugar que os impetrantes denominam “latifúndio São Luís” era “pacífica” e não causara “dano à propriedade”, como inculcam (fls. 9/10), não cabe examiná-lo aqui: tratar-se-ia de juízo acerca do elemento subjetivo do tipo, incompatível com o rito e finalidade da ação de habeas corpus.

4. De outra parte, o r. despacho impugnado (cf. fls. 1.357/1.361 do 7º vol.), ao fundamentar a decretação da prisão preventiva, argumentou com sua necessidade e conveniência: exarou que o paciente, já demandado na Justiça Criminal por delito que causou profundo desassossego na região (formação de quadrilha), praticou novo crime: “associando-se e liderando centenas de pessoas, voltou a invadir nova propriedade” (fl. 1.358).

Sua custódia, portanto, foi determinada pela exigência indeclinável de garantia social e conveniência da Justiça, que deve atender a que se não frustre a aplicação da lei nem periclite a ordem pública.

Era o quanto bastava para justificar a subsistência da prisão cautelar; pretender fosse além a digna autoridade apontada como coatora, seria o mesmo que antecipar decisão de mérito, o que passava por desmarcada abusão lógica e jurídica.

Ato mais relevante do ofício do Magistrado, a decisão deve ser fundamentada (art. 93, nº IX, da Const. Fed.), isto é, ao proferi-la deve dar as razões de seu convencimento.

Mas fundamentação percuciente, minuciosa e castigada só a requer decisão definitiva de mérito, não a que impõe prisão preventiva ou denega liberdade provisória; esta se satisfaz com a indicação da necessidade da decretação da custódia cautelar, que se infere da prova da materialidade da infração penal grave e de indícios veementes de sua autoria.

Vem aqui de molde o magistério da jurisprudência do Colendo Superior Tribunal de Justiça, abaixo reproduzido por sua ementa:

“Demonstrada a necessidade da medida cautelar constritiva da liberdade humana, concretizada em decisão, ainda que sucinta, onde consignadas as razões pelas quais entendeu necessária, descabe pretender desconstituí-la com a invocação do princípio da presunção de inocência, ou pela circunstância de ser o paciente primário, radicado no foro da culpa e com profissão definida” (Revista do Superior Tribunal de Justiça, vol. 58, p. 119).

O magistério de José Frederico Marques, processualista exímio, faz ao intento:

“Desde que a permanência do réu, livre e solto, possa dar motivo a novos crimes, ou cause repercussão danosa e prejudicial no meio social, cabe ao juiz decretar a prisão preventiva como garantia da ordem pública. Nessa hipótese, a prisão preventiva perde seu caráter de providência cautelar, constituindo antes, como falava Faustin Hélie, verdadeira medida de segurança. A potestas coercendi do Estado atua, então, para tutelar, não mais o processo condenatório a que está instrumentalmente conexa, e sim, como fala o texto do art. 312, a própria ordem pública. No caso, o periculum in mora deriva dos prováveis danos que a liberdade do réu possa causar com a dilação do desfecho do processo dentro da vida social e em relação aos bens jurídicos que o Direito Penal tutela” (Elementos de Direito Processual Penal, 1a. ed., vol. IV, pp. 49-50).

5. Há nos autos um registro que não pode correr em silêncio, neste momento de exame da legalidade dos fundamentos da decretação da prisão preventiva do paciente.

O Magistrado prolator da decisão atacada salientou, com arrimo no Boletim de Ocorrência nº 41/09 (fl. 1.336), que integrantes do Movimento Sem-Terra, “liderados pelos investigados (um dos quais, o paciente), invadiram na sexta-feira passada, dia 17.4.2009”; “já haviam sido citados” para a ação de reintegração de posse. “Os investigados (...), em nome do movimento, mesmo tendo conhecimento da ordem judicial, disseram que não deixariam o local, em total afronta à decisão do Poder Judiciário” (fl. 1.350).

Fato esse de suma gravidade, se verdadeiro!

É que, segundo o alto pensamento do Min. Carlos Alberto Menezes Direito, “o dia em que se não cumprirem as decisões judiciais transitadas em julgado perecerá o direito, e com ele a liberdade, que faculta a plena realização da pessoa humana na sociedade em que vive” (Manual do Mandado de Segurança, 4a. ed., p. 200).

6. Ainda que medida excepcional, a custódia preventiva não repugna ao Estado Democrático de Direito, se imposta com a finalidade de coibir violações da lei e preservar a ordem jurídica.

A jurisprudência dos Tribunais sempre reservou ao juiz do processo autonomia para avaliar, com o arbítrio do bom varão, a necessidade e a conveniência de sua decretação.

Ora, a decisão do Magistrado da Comarca de Presidente Bernardes evidenciou, com rigor de lógica jurídica, que a segregação do paciente era necessária, em bem do interesse público. Afirmou-o Sua Excelência, após detido exame dos autos, com palavras textuais:

“O ato praticado pelo acusado, formação de quadrilha para invadir propriedade, disfarçado atrás do movimento social, provoca imensa repercussão de forma a abalar a ordem pública na pequena cidade de Presidente Bernardes, de apenas 13 mil habitantes, onde fatos como os debatidos nestes autos causam verdadeira sensação de insegurança jurídica” (fl. 1.357).

Cai a talho o ven. aresto do Colendo Superior Tribunal de Justiça:

“Em sede de prisão preventiva, deve-se prestar máxima confiabilidade ao Juízo de primeiro grau, por mais próximo e, pois, sensível às vicissitudes do processo” (HC nº 46.192-0-PE; 6a. T.; rel. Min. Hamilton Carvalhido; j. 7.3.2006; m.v.; apud Mohamed Amaro, Código de Processo Penal na Expressão dos Tribunais, 2007, p. 363).

7. O sonho de todo camponês de ter um dia sua gleba e poder cultivá-la é digno sempre de respeito. Ninguém haverá de embaraçar-lhe o caminho que o levará à Terra da Promissão, como cantou a musa rústica de Patativa do Assaré, inspirado poeta cearense:

“Se a terra foi Deus quem fez,

se é obra da criação,

deve cada camponês

ter uma faixa de chão”

(in Dialógico, Revista do Movimento do Ministério Público Democrático, nº 25, p. 32).

Mas, os conflitos agrários não podem resolver-se com o sacrifício da lei e da ordem.

O Código Penal, por isso, define e pune como crime as invasões a propriedade e o esbulho possessório (art. 161, § 1º, nº II).

Entre nós, tem o direito de propriedade garantia constitucional (art. 5º, nº XXII, da Const. Fed.).

Assim, no limiar de toda propriedade (choupana, chácara, sítio e fazenda), haveremos de ler, sob a forma de advertência legítima, a imaginária inscrição: “Aqui, sem a minha autorização, só entra o Sol e ninguém mais!”.

O despacho criticado atendeu às diretrizes do art. 312 do Código de Processo Penal; merece, pois, prevalecer, sem deslustre dos advogados do paciente, profissionais mui reputados pela ciência do Direito e dedicação ao nobre mister que abraçaram.

Em suma: porque os argumentos deduzidos pelo paciente não me persuadiram estivesse a sofrer constrangimento ilegal, indefiro-lhe o pedido de habeas corpus.

8. Pelo exposto, denego a ordem de habeas corpus.

 

São Paulo, 11 de agosto de 2009

Des. Carlos Biasotti

Relator

Notas

  1. “Quid est sanctius, quid omni religione munitius, quam domus uniuscujusque civium” (Cícero, Pro Domo sua, cap. 41).

  2. “Art. 150 do Cód. Penal: Entrar ou permanecer, clandestina ou astuciosamente, ou contra a vontade expressa ou tácita de quem de direito, em casa alheia ou em suas dependências:

    Pena – detenção, de 1 (um) a 3 (três) meses, ou multa”.

  3. Não só a legislação dos regimes democráticos, também a Declaração Universal dos Direitos do Homem (ONU, 1948) reconhece à propriedade o caráter de direito público subjetivo: “Todo homem tem direito à propriedade, só ou em sociedade com outros. Ninguém será arbitrariamente privado de sua propriedade” (art. 17).

Sobre o autor
Carlos Biasotti

Desembargador aposentado do TJSP e ex-presidente da Acrimesp

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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