Modernamente, muito se discute se o Delegado de Polícia poderia aplicar o postulado da insignificância ou não.
A doutrina se divide quanto a tal possibilidade e, na jurisprudência, há poucos julgados sobre a temática.
Infelizmente, a doutrina conservadora entende que o Delegado de Polícia seria mero homologador de flagrantes lavrados pela Polícia Militar, ficando restrito ao juízo de subsunção formal do fato à norma penal.
Contudo, não nos parece razoável, em pleno século XXI, sustentar o mantra de que o Delegado de Polícia não deve fazer juízo de valor ao analisar um boletim de ocorrência, defendendo a tese de que o inquérito policial possui a característica da unidirecionalidade.
Quando um fato aparentemente criminoso ocorre e um indivíduo é preso (na forma de prisão captura) em estado de flagrante, seja por qualquer do povo (flagrante facultativo) ou por agentes de segurança pública (flagrante obrigatório), ele deve ser imediatamente encaminhado à sede policial, para que o Delegado analise os aspectos do direito material, bem como a atipicidade processual, isto é, se estão presentes as hipóteses que caracterizam o flagrante previstas no art. 302 do Código de Processo Penal.
Diante da situação apresentada, o Delegado de Polícia verifica os elementos e toma sua decisão, devidamente fundamentada no caso concreto.
Já não é de hoje que sua atribuição precípua é salvaguardar direitos e garantias individuais, como, por exemplo, o direito à liberdade, estampado no art. 5º, caput, e no inciso LIV da Constituição Federal.
Pensar que o Delegado deve apenas fazer juízo de tipicidade formal é defender sua desnecessidade nas delegacias do Brasil afora, pois bastaria um agente policial para encarcerar o suspeito e comunicar o boletim de ocorrência ao juízo.
Nas palavras do ex-ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Celso de Mello, “é o primeiro garantidor da legalidade e da justiça”.
A Constituição Federal de 1988 estabeleceu expressamente que às polícias civis, dirigidas por delegados de polícia de carreira, incumbem as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais.
O Delegado é quem fará a primeira avaliação jurídica do fato criminoso e definirá o rumo da ocorrência apresentada, além de coordenar a obtenção e preservação das provas de crimes, buscando atribuir sua autoria.
Como se não bastasse, a Lei nº 12.830/2013 estabelece que a atividade desempenhada é jurídica e exclusiva de Estado, devendo o Delegado fundamentar sua decisão em todos os casos concretos.
Art. 2º As funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais exercidas pelo delegado de polícia são de natureza jurídica, essenciais e exclusivas de Estado.
§ 6º O indiciamento, privativo do delegado de polícia, dar-se-á por ato fundamentado, mediante análise técnico-jurídica do fato, que deverá indicar a autoria, materialidade e suas circunstâncias.
Ao mencionar a expressão “análise técnico-jurídica do fato”, guarda-se o amparo legal para a aplicação da insignificância.
Ora, como agente do Estado que é, o Delegado tem o dever de aplicar a lei, mas suas decisões são devidamente fundamentadas, como dissemos alhures.
Percebam: o que está em jogo é o direito de ir, vir e permanecer, direitos esses que são demasiadamente caros no ordenamento jurídico.
Mas como salvaguardar tais direitos entendendo que o Delegado não deve analisar uma ocorrência à luz da tipicidade material? Ora, o Direito Penal moderno não se satisfaz mais com a mera tipicidade formal.
Não é o foco deste trabalho explanar sobre o princípio da insignificância em seus aspectos materiais, mas teceremos alguns breves comentários para que possamos aprofundar a temática.
Quem primeiro tratou do princípio da insignificância, no Direito Penal, foi Claus Roxin, em 1964.
O instituto busca raízes no brocardo civil de minimis non curat praetor (algo como: o pretor, magistrado à época, não cuida de coisas sem importância).
O Direito Penal moderno vai além da análise da tipicidade formal; exige também a tipicidade material, que é a lesão ou perigo de lesão ao bem jurídico protegido pelo tipo penal.
Para que se adentre na noção de insignificância, deve-se ter em mente sua ligação com a intervenção mínima do Direito Penal, na qual há quatro subprincípios: o da fragmentariedade — segundo o qual o Direito Penal tem caráter fragmentário, pois não cria bens jurídicos, mas seleciona bens jurídicos preexistentes —; o da subsidiariedade; o da insignificância (propriamente dito); e o da adequação social.
Da mesma forma, trabalha-se com as funções do princípio da lesividade, sendo uma delas a de proibir a incriminação de condutas desviadas que não afetem qualquer bem jurídico.
A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, na lavra do Min. Celso de Mello (HC 84.412-0/SP), idealizou quatro requisitos objetivos (vetores mínimos) para a aplicação do princípio da insignificância, sendo eles adotados pela jurisprudência do STF e do STJ.
Segundo o entendimento consolidado, somente se aplica o princípio da insignificância se estiverem presentes, de forma cumulativa, os seguintes requisitos: mínima ofensividade da conduta, nenhuma periculosidade social da ação, reduzido grau de reprovabilidade do comportamento e inexpressividade da lesão jurídica provocada.
Contudo, não devemos nos prender excessivamente aos conceitos desses vetores, pois tais requisitos acabam “andando em círculos”. Em outras palavras, é possível fazer qualquer combinação entre eles sem alterar a essência: se a conduta é inofensiva, não apresenta periculosidade social; por conseguinte, possui reduzido grau de reprovabilidade e, assim, gera inexpressiva lesão jurídica.
Ao analisar uma conduta que não provoca efetiva lesão ao bem jurídico tutelado, não há que se falar em crime, pois, à luz do conceito analítico, crime é fato típico, ilícito e culpável.
Diante disso, como poderia um Delegado de Polícia — que é o primeiro garantidor dos direitos fundamentais — encarcerar uma pessoa conduzida à sede policial por furtar objetos de pequena monta? Não só pode como deve aplicar o postulado da bagatela.
Não se pode esquecer que o inquérito policial possui também a função de filtro, evitando processos abusivos e temerários.
A investigação preliminar serve como filtro processual para afastar acusações infundadas, seja por ausência de lastro probatório suficiente, seja porque a conduta não é, sequer aparentemente, criminosa. O processo penal é, por si só, uma pena, pois não é possível processar sem punir, tampouco punir sem processar. Ele é gerador de estigmatização social e jurídica (labeling) e de sofrimento psíquico. Daí a necessidade de uma investigação preliminar que impeça processos sem suficiente fumus commissi delicti.
A atividade como filtro processual se concretiza plenamente quando levamos em consideração três fatores:
a) o custo do processo;
b) o sofrimento que causa ao sujeito passivo (estado de ânsia prolongada);
c) a estigmatização social e jurídica que o processo penal acarreta.
Ao que nos interessa neste momento, trata-se do primeiro fator, ou seja, o custo do processo. O processo penal possui custo elevado, iniciando-se na fase de investigações, com diligências preliminares, uso de papel e outros recursos; seguindo-se para a ação penal, a fase instrutória e, eventualmente, os recursos para os tribunais superiores.
Imagine acionar toda a máquina estatal para materializar o Direito Penal diante de um furto de um bem no valor de R$ 50,00. Não faria o menor sentido.
Se o fato é insignificante — e assim é reconhecido pelo juiz e pelo promotor —, não pode ser considerado típico apenas pelo Delegado de Polícia.
Nesse sentido, Cleber Masson:
O princípio da insignificância afasta a tipicidade do fato. Logo, se o fato é atípico para a autoridade judiciária, também apresenta igual natureza para a autoridade policial. (MASSON, Cleber, 13ª ed)
Alexandre Morais da Rosa afirma que não só podem, como devem aplicar o princípio da insignificância nos casos em que estejam presentes os seguintes requisitos:
Não só os delegados podem como devem analisar os casos de acordo com o princípio da insignificância. Merecem aplauso e incentivo os delegados que agem dessa forma, pois estão cientes do papel que lhes cabe na investigação preliminar, atuando como filtros de contenção da irracionalidade potencial do sistema penal. (...) Não interessa reafirmar qualquer lugar de autoridade: interessa é obstaculizar a irracionalidade e para isso, os delegados devem ser a primeira barreira. (KHALED JR, Salah H.; ROSA, Alexandre Morais:)
Outro não é o entendimento do professor André Luiz Nicoltt:
Do contrário, não sendo a narrativa real, ou não constituindo fato típico, o Delegado de Polícia não estará obrigado a instaurar o inquérito policial. É o que ocorre, por exemplo, diante da incidência do princípio da insignificância. O Delegado de Polícia é o primeiro a fazer um juízo de tipicidade da conduta. Certo é que o direito penal não se contenta com a mera tipicidade formal, sendo necessária a tipicidade material, ou seja, a efetiva lesão ao bem jurídico tutelado pela norma, o que não ocorre quando a lesão é insignificante ou irrelevante. Neste caso, verificada a improcedência das informações (art. 5.º, § 3.º, do CPP) por força do princípio da insignificância, a autoridade policial não estará obrigada a lavrar o flagrante ou baixar portaria instaurando o inquérito policial. Possui nesse momento autoridade para fazer o primeiro juízo de tipicidade. (NICOLITT, André, 10 ed.)
Guilherme de Souza Nucci:
Ora, se o delegado é o primeiros juiz do fato típico, sendo bacharel em Direito, concursado, tem perfeita autonomia para deixar de lavrar do auto se constatar a insignificância do fato. (NUCCI, Guilherme de Souza)
O que ele defende aqui é a possibilidade de aplicação da bagatela pelo Delegado de Polícia e, malgrado afirme, de plano, que a autoridade policial pode deixar de lavrar o auto, veremos adiante que acrescenta outros aspectos no sentido da proposta deste artigo.
Como se percebe, trata-se de um poder-dever por parte do Delegado de Polícia.
A grande celeuma reside em como materializar tal princípio em sede policial. De um lado, há a atribuição de defesa de um indivíduo conduzido por um furto insignificante; de outro, as atribuições dos demais órgãos atuantes na Justiça.
O sistema processual adotado no ordenamento jurídico brasileiro sempre foi defendido como sendo o sistema acusatório, à luz do art. 129, I, da CF/88, embora não haja dispositivo expresso na Constituição que assim o declare.
Contudo, com o advento da Lei nº 13.964/2019, o art. 3º-A do Código de Processo Penal foi enfático na adoção do sistema acusatório:
Art. 3º-A. O processo penal terá estrutura acusatória, vedadas a iniciativa do juiz na fase de investigação e a substituição da atuação probatória do órgão de acusação. (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)
Tal sistema delimita a atuação de cada ente no cenário jurídico brasileiro.
A Polícia investiga, o Ministério Público é o titular da ação penal e o Judiciário atua como garantidor das regras do jogo, julgando demandas com força de definitividade.
Além disso, a própria Constituição estabelece outras atribuições ao Ministério Público, dentre elas o controle externo da atividade policial:
Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público:
VII - exercer o controle externo da atividade policial, na forma da lei complementar mencionada no artigo anterior;
O controle externo da atividade policial pelo Ministério Público tem como objetivo manter a regularidade e a adequação dos procedimentos empregados na execução da atividade policial, bem como promover a integração das funções do Ministério Público e das Polícias voltadas à persecução penal e ao interesse público. Esse controle externo se assenta em dois pilares: verificar a eficiência da atividade policial e zelar para que sejam fornecidos elementos suficientes ao Ministério Público para o oferecimento da denúncia ou o arquivamento do caso.
O controle difuso é exercido por todos os membros do Ministério Público com atribuição criminal, por meio do acompanhamento e da fiscalização dos inquéritos e demais procedimentos de investigação policiais.
Já o controle concentrado é exercido apenas por alguns membros com atribuições específicas, que devem também realizar inspeções periódicas nas unidades policiais.
Não se trata de hierarquia entre o Delegado de Polícia e o membro do Ministério Público, mas sim de uma divisão de atribuições previstas na Constituição Federal.
Para que se possa aplicar a insignificância em sede policial, o Delegado de Polícia deve valer-se de devida fundamentação e agir de forma responsável.
Cada um possui importância própria no cenário da Justiça. Se a atribuição do Delegado encontra-se no art. 144, § 4º, da CRFB/88, a do Ministério Público está no art. 127 e a do Judiciário, no art. 92. É como se estivessem no mesmo bairro — a Constituição —, mas em “números” distintos, ou seja, em dispositivos diferentes.
Arquivar um boletim de ocorrência que noticia fato aparentemente criminoso, sob o argumento de atipicidade material em sede policial, sem qualquer controle, é, no mínimo, temerário e arbitrário por parte da Autoridade Policial.
Os fatos devem ser pormenorizados e os sujeitos envolvidos na ocorrência devidamente ouvidos. O procedimento não pode, de forma alguma, ser arquivado de plano pelo Delegado de Polícia, sob pena de sanções correicionais.
Arquivá-los dessa forma significaria que a Polícia estaria usurpando a atribuição de fiscalização do Ministério Público.
Já que os Delegados buscam respeito e reconhecimento, devem desempenhar suas atribuições dentro dos limites traçados pela Constituição Federal e pelos atos normativos da Corregedoria.
Não estamos defendendo que o Delegado deva se submeter de forma servil ao membro do Ministério Público ou ao Judiciário; muito pelo contrário, afirmamos que sua atuação deve ser transparente, com a devida fundamentação jurídica e, sobretudo, obediente à Constituição Federal.
Como proceder, então, diante de um indivíduo abordado em estado flagrancial por suposto crime de bagatela?
A pergunta é: como deve proceder o Delegado de Polícia?
Algumas possibilidades são ventiladas, senão vejamos:
Documentar tudo por meio de boletim de ocorrência e, em seguida, comunicar o fato ao Ministério Público e ao Judiciário por ofício.
Instaurar uma VPI (Verificação de Procedência da Informação), com fundamento no art. 5º, § 3º, do Código de Processo Penal, documentando a narrativa fática e, depois, encaminhando o procedimento ao Poder Judiciário e ao Ministério Público.
Converter o boletim de ocorrência em inquérito policial, para que tudo fique devidamente documentado, com oitivas das partes e, ao final, relatar pelo não indiciamento, considerando tratar-se de fato atípico. Caso o promotor entenda não ser hipótese de aplicação do princípio da insignificância, poderá oferecer diretamente a denúncia ou requisitar diligências, nos moldes do art. 16 do Código de Processo Penal.
Converter o boletim em procedimento, colocando-o em análise e, em seguida, proferir despacho justificando a aplicação do postulado da insignificância e, na sequência, determinar, ex officio, o arquivamento.
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Lavrar o Auto de Prisão em Flagrante, com todas as oitivas necessárias e, posteriormente, comunicar todas as peças produzidas no procedimento, determinando a soltura imediata do conduzido.
Feitas essas considerações, passemos aos argumentos de cada uma das hipóteses elencadas.
Quanto à primeira opção, entendemos que enviar um mero ofício ao Ministério Público, informando que o fato é atípico, não seria a melhor solução, considerando que tal medida não constitui o meio processualmente adequado para tanto.
O ofício é uma correspondência utilizada para manter o intercâmbio de informações sobre assuntos técnicos ou administrativos entre órgãos e entidades da Administração Pública direta e indireta.
Além disso, em vários estados da federação, procedimentos como o Inquérito Policial e os Autos de Prisão em Flagrante são eletrônicos, o que inviabiliza, na prática, o envio de peças ou arquivos de vídeo por meio de ofícios.
Não seria tecnicamente adequado remeter um procedimento de Polícia Judiciária por ofício aos órgãos responsáveis; tal prática seria extremamente retrógrada.
Passando à segunda possibilidade — converter o boletim de ocorrência em instauração de VPI (Verificação de Procedência da Informação), documentando o procedimento com oitivas, realizando um despacho de arquivamento e encaminhando as peças de informação —, trata-se de uma tese sedutora, mas que não nos parece a mais adequada.
A Verificação de Procedência da Informação é um instrumento pré-investigatório utilizado quando são escassos os elementos referentes à autoria:
Art. 5º. Nos crimes de ação pública o inquérito policial será iniciado:
§ 3º Qualquer pessoa do povo que tiver conhecimento da existência de infração penal em que caiba ação pública poderá, verbalmente ou por escrito, comunicá-la à autoridade policial, e esta, verificada a procedência das informações, mandará instaurar inquérito.
Em regra, a VPI é utilizada em casos de notícia anônima, funcionando como uma espécie de filtro para conter o arbítrio de uma eventual pré-investigação.
Nesse sentido, Leonardo Marcondes Machado afirma:
O juízo de possibilidade delitiva e apuração preliminar, em questão, deve ser aferido em dois planos distintos: punitivo abstrato e investigativo operacional. A possibilidade (ou condição aparente) de incriminação e punição em relação a certa notícia-crime deve ser analisada quanto às estruturas legais necessárias para o exercício do poder punitivo (tipicidade, ilicitude/antijuridicidade, culpabilidade e punibilidade), bem como a viabilidade concreta de apuração naquele caso diante das informações apresentadas e dos instrumentos disponíveis à persecução criminal. (MACHADO, 2020, p. 252)
Na mesma senda, Adriano Souza Costa e Henrique Hoffmann:
Nota-se que que a instauração do inquérito policial exige ao menos a possibilidade da colheita de indícios iniciais de materialidade e autoria. O mecanismo criado pela legislação para averiguar a verossimilhança da notitia criminis e a viabilidade da investigação, e servir como barreira contra inquéritos policiais absurdos, é justamente a verificação da procedência da informação. Tal instrumento nada mais é do que uma investigação preliminar e simples, que a possibilita a colheita de um piso de informação que justifique a deflagração do inquérito policial. (Temas avançados de Polícia Judiciária, 4ª ed, pág.93)
A tese da instauração da VPI é bastante sedutora no caso de materialização da insignificância pelo Delegado de Polícia — inclusive, é a proposta de André Nicolitt —, mas encontramos óbices dogmáticos para defendê-la, como explicaremos a seguir.
A VPI tem aplicação quando há poucos ou nenhum indício sobre a existência da infração penal, como, por exemplo, em uma suposta notícia anônima, situação em que os elementos não são suficientes para a deflagração do inquérito.
Por outro lado, o Estado não pode permanecer inerte quando há informação que possa ser procedente.
Ora, se há a condução de um suspeito por furtar uma laranja de um feirante, já se possui o mínimo de autoria, materialidade e demais circunstâncias necessárias, o que, por si só, afasta a instauração de VPI. Nesse caso, aquilo que se buscaria em uma investigação prévia já é, de plano, suprido pelas circunstâncias do fato concreto.
O segundo argumento contrário é que, embora a VPI seja reconhecida pelos tribunais superiores e prevista em lei, não existe regramento formal quanto à sua documentação. Assim, ela não pode substituir um inquérito policial, tampouco comportar oitivas detalhadas sobre as circunstâncias fáticas, pois, se assim fosse, estaríamos diante de um inquérito policial com outra roupagem.
E, para afastar quaisquer dúvidas, a VPI é orientada por algumas características próprias, como a informalidade, a celeridade e a simplicidade.
Adriano Souza Costa e Henrique Hoffmann argumentam que:
“A simplicidade, celeridade e informalidade dos atos são inerentes à VPI, não devendo ser reproduzidos nela expressões ou conteúdos próprios do inquérito policial.”
Percebe-se, portanto, que a VPI não deve conter expressões e conteúdos característicos do inquérito policial, o que significa dizer que não podem ser realizados atos de interrogatório, depoimentos ou oitivas em geral.
Importante lembrar que o conduzido deve ser ouvido na condição de interrogado, e não como depoente ou declarante, até porque cada modalidade de oitiva possui advertências específicas.
A testemunha tem o dever legal de dizer a verdade; a vítima é ouvida como declarante e, caso sua narrativa esteja desconectada da realidade, pode responder por denunciação caluniosa ou falsa comunicação de crime. Já o interrogado possui o direito de permanecer em silêncio.
Dessa forma, fica evidente que a VPI não é o instrumento mais adequado para materializar o princípio da insignificância.
Em termos práticos, caso o membro do Ministério Público discorde da decisão do Delegado de Polícia quanto à aplicação da insignificância, as peças de informação retornarão à sede policial para a deflagração formal do inquérito, mediante requisição. Pela sua informalidade, a VPI já deveria, nesse caso, ser convertida em inquérito policial.
Quanto à terceira possibilidade — a conversão do boletim de ocorrência em inquérito policial —, entendemos ser inviável.
O inquérito policial, para sua instauração, deve conter o mínimo de autoria e materialidade que justifique a sua deflagração.
Suponha que a autoridade policial receba um boletim noticiando, por exemplo, o furto de uma caneta esferográfica de uma grande loja de departamentos. O fato possui autoria, materialidade e demais circunstâncias, mas, de imediato, percebe-se tratar de hipótese de insignificância: não há fato típico em sua dimensão material (tipicidade material), ou seja, o primeiro substrato do crime.
Se o Delegado está inclinado a aplicar o princípio da insignificância, seria, no mínimo, contraditório instaurar um inquérito policial por um fato que ele mesmo entende não configurar crime, o que resultaria em um procedimento natimorto.
Além disso, o inquérito policial é orientado pela característica da indisponibilidade, nos moldes do art. 17 do Código de Processo Penal.
Converter um boletim de ocorrência em inquérito policial, com todas as oitivas necessárias, para, em seguida, comunicar os demais órgãos de justiça, não é produtivo nem tecnicamente adequado, pois instaurar-se-ia um inquérito quando o próprio Delegado de Polícia já reconhece a inexistência de crime.
A última e mais coerente hipótese para materializar a insignificância sob o aspecto processual seria lavrar o Auto de Prisão em Flagrante, ouvir todos os envolvidos no fato e, em seguida, determinar a soltura imediata do conduzido, comunicando todas as peças confeccionadas ao Poder Judiciário e ao Ministério Público. Explico:
De plano, é preciso tecer comentários sobre o Auto de Prisão em Flagrante, para, depois, justificar as razões.
O Auto de Prisão em Flagrante é um ato administrativo lavrado pelo escrivão de polícia na presença do Delegado de Polícia. Na falta ou impedimento do escrivão, o Delegado poderá nomear qualquer pessoa para exercer essa função, assumindo o compromisso, nos termos do art. 305 do Código de Processo Penal.
Renato Brasileiro de Lima ensina:
“Cuida-se, o Auto de Prisão em Flagrante Delito, de um instrumento em que são documentados os fatos que revelam a legalidade e a regularidade da restrição excepcional do direito de liberdade.” (LIMA, Renato Brasileiro)
Percebe-se que o Auto de Prisão em Flagrante é um ato administrativo no qual se documenta a restrição de liberdade, apontando a legalidade da medida, uma vez que essa espécie de constrição é precária e sujeita à análise, ao menos de forma imediata, pelo Poder Judiciário.
Ocorre que o conduzido por um suposto fato insignificante teve sua liberdade restringida, ainda que por breve espaço de tempo. Não raras vezes, ele pode ter sido alvo de maus-tratos, agressões ou ameaças por parte de seus condutores ou de pessoas que o capturaram. Como poderia o Delegado de Polícia liberá-lo sem ao menos formalizar os atos necessários para salvaguardar tanto os servidores da unidade policial quanto a si próprio?
Nas infrações penais que deixam vestígios, o art. 158 do Código de Processo Penal é imperativo quanto à realização de exame de corpo de delito. Em casos de lesões praticadas por servidores, pode haver crime de abuso de autoridade; se praticadas por particulares, crime de lesão corporal.
O Delegado de Polícia tem o dever de apurar tais fatos e, para isso, deve documentar toda a circunstância fática, ouvindo todos os envolvidos. Sendo procedente, deve extrair cópia do procedimento originário (nesse caso, o Auto de Prisão) e adotar as medidas pertinentes.
O grande problema reside no equívoco de se pensar que, diante da simples lavratura do Auto de Prisão em Flagrante, o sujeito deva necessariamente permanecer preso, o que não corresponde à realidade.
O Código de Processo Penal, em seu art. 304, § 1º, dispõe que, ocorrendo fundadas suspeitas contra o conduzido, a autoridade mandará recolhê-lo à prisão, salvo em algumas hipóteses, como a concessão de liberdade mediante fiança:
Art. 304. Apresentado o preso à autoridade competente, ouvirá esta o condutor e colherá, desde logo, sua assinatura, entregando a este cópia do termo e recibo de entrega do preso. Em seguida, procederá à oitiva das testemunhas que o acompanharem e ao interrogatório do acusado sobre a imputação que lhe é feita, colhendo, após cada oitiva suas respectivas assinaturas, lavrando, a autoridade, afinal, o auto. (Redação dada pela Lei nº 11.113, de 2005)
§1º. Resultando das respostas fundada a suspeita contra o conduzido, a autoridade mandará recolhê-lo à prisão, exceto no caso de livrar-se solto ou de prestar fiança, e prosseguirá nos atos do inquérito ou processo, se para isso for competente; se não o for, enviará os autos à autoridade que o seja.
Como sabemos, o flagrante perpassa por algumas fases — prisão captura, condução coercitiva, audiência preliminar de apresentação e garantias, lavratura do Auto de Prisão em Flagrante, recolhimento ao cárcere e comunicação ao juiz —, sendo o recolhimento ao cárcere apenas uma delas.
Antes de decidir, deve o Delegado de Polícia ouvir todos os envolvidos e, ao final, deliberar sobre a adoção do procedimento no caso concreto. Para isso, a autoridade policial se vale da audiência preliminar de apresentação.
Nesse sentido, Francisco Saninni afirma:
É por meio dessa audiência que o delegado de polícia verifica se a prisão-captura do conduzido foi legal, se estavam presentes as hipóteses flagranciais do artigo 302 do CPP, se houve algum excesso por parte do responsável pela detenção e, sobretudo, se os fatos que lhe são apresentados constituem crime, devendo, para tanto, analisar todos institutos que repercutem na sua caracterização (Francisco Sannini Neto - Delegado de Polícia e o Direito Criminal)
Ruchester Marreiros Barbosa aponta uma mesma fase:
“Trata-se de um ato complexo, por compreender um conjunto de atos, dentre os quais o de oitiva do condutor e de todas as pessoas relacionadas ao fato, como a(s) vítima(s), testemunha(s), diligências ao local do crime e demais locais necessários, podendo ocorrer ou não a arrecadação de objetos necessários, requisições de documentos, imagens, vídeos, perícias, etc., que corroborem para a prova do ilícito penal.” (BARBOSA, Ruchester Marreiros. Temas Avançados de Polícia Judiciária, 4ª ed., p. 122)
A interpretação a ser dada ao art. 304, § 1º, do Código de Processo Penal é que o conduzido deve ser apresentado ao Delegado de Polícia, que deverá ouvir todos os envolvidos no fato e, caso estejam presentes o fumus commissi delicti, ratificar a voz de prisão captura e recolher o preso.
Contudo, caso não haja fundada suspeita — seja porque o conduzido não é o suposto autor, seja porque não existe materialidade suficiente para a ratificação —, o Delegado deve soltá-lo.
Segue Ruchester Marreiros Barbosa:
É imperioso destacar que a lavratura do auto de prisão em flagrante, por si só, não acarreta o encarceramento de forma automática, por força do art. 304, §1°, ao dispor que dependerá do resultado das respostas das oitivas para a comprovação da existência de indícios de autoria (Resultando das respostas fundada a suspeita contra o conduzido) e diligências (art. 6°, CPP), para (...) recolhê-lo à prisão à prisão (...). (Temas avançados de Polícia Judiciária, 4ª ed, pág.123)
Maurício Henrique Guimarães Pereira explica que o Delegado de Polícia pode — e deve — relaxar a prisão em flagrante com fulcro no art. 304, § 1º, do Código de Processo Penal, interpretando-o a contrario sensu. Tal interpretação corresponde ao contraste de legalidade obrigatório, quando não estiverem presentes determinadas condições que somente podem ser verificadas ao final da formalização do auto, como, por exemplo, o convencimento, pela prova testemunhal colhida, de que o preso não é o autor do delito; ou ainda, a conclusão de que o fato é atípico.
Perceba-se que essa é exatamente a proposta que defendemos: ao final da audiência preliminar de apresentação, conclui-se pela atipicidade do fato à luz do princípio da insignificância, o que denominamos de “Auto de Prisão em Flagrante Negativo”.
Gustavo Henrique Badaró esclarece que o dispositivo (art. 304, § 1º) não prevê que não se lavrará o Auto de Prisão em Flagrante, mas que, após sua lavratura, não se determinará o recolhimento do conduzido à prisão.
“Tanto é assim que as respostas a que se refere o § 1º do art. 304 são aquelas dadas durante a oitiva do condutor, das testemunhas e o interrogatório do acusado, tal qual previsto no caput do mesmo artigo, que finda com a seguinte disposição: ‘lavrando, a autoridade, afinal, o auto’. Ou seja, depois das respostas das oitivas, que já integraram o Auto de Prisão em Flagrante, será lavrado, ao final, pela autoridade policial, o próprio auto.” (BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. [Título da obra], 9ª ed., p. 1172)
Roberto Delmanto Júnior, citando Câmara Leal, menciona:
“Se as provas forem falhas, não justificando fundadas suspeitas de culpabilidade, a autoridade, depois da lavratura do Auto de Prisão em Flagrante, fará pôr o preso em liberdade.” (As Modalidades de Prisão Provisória e Seu Prazo de Duração, p. 121)
Badaró, citando Espíndola Filho (Código, v. 3, p. 356), acrescenta que:
“Pode suceder que não haja uma infração punível, ou que, dessa infração, segundo esclarecimentos idôneos e sem discussão de testemunhas, não seja o preso o autor; então, a autoridade policial não deve manter uma prisão que não se justifica e soltará o autuado, remetendo imediatamente o instrumento de autuação em flagrante para o juiz, para apreciação.”
Da mesma forma, Magalhães Noronha (Curso, p. 164) afirma que:
“Nem sempre, porém, haverá lugar à custódia do preso: pode acontecer que, pelos esclarecimentos prestados, a autoridade verifique, v.g., não ter havido crime e sim apenas um ilícito civil.”
Traçados esses sólidos argumentos, a conclusão a que chegamos é que o Delegado deve lavrar o Auto de Prisão em Flagrante, ouvir todos os envolvidos e, na sequência, proferir despacho não ratificador da voz de prisão captura, determinando a soltura imediata do conduzido e restaurando-lhe a liberdade plena, comunicando tudo aos órgãos de controle.
Como sabemos, uma das formas de instauração de inquérito policial é por meio do Auto de Prisão em Flagrante.
Caso o membro do Ministério Público não concorde com a aplicação do princípio da insignificância, já terá elementos aptos ao oferecimento imediato da denúncia, pois o procedimento estará instruído com todas as oitivas necessárias. Dessa forma, o convencimento do Delegado de Polícia será prestigiado, uma vez que sua análise técnico-jurídica foi devidamente exposta, não podendo o membro do Ministério Público vincular a convicção da autoridade policial à sua. Além disso, não restariam diligências a serem cumpridas caso houvesse discordância entre a autoridade policial e o titular da ação penal.
Não procede o argumento de que o suposto autor do fato, em cujo desfavor foi lavrado um auto, seria automaticamente indiciado e lançado no banco de dados da polícia com todas as consequências decorrentes. Trata-se de equívoco.
De fato, em regra, o sujeito contra o qual se lavra Auto de Prisão em Flagrante é automaticamente indiciado — modalidade conhecida como indiciamento coercitivo —, pois os requisitos para o ato de indiciamento são os mesmos exigidos para a lavratura do auto: indícios mínimos de autoria, materialidade e demais circunstâncias fáticas (art. 2º, § 6º, da Lei nº 12.830/2013).
No entanto, quando uma pessoa é conduzida à presença do Delegado de Polícia, existe apenas um standard indiciário mínimo para a lavratura, em tese. Em regra, há a materialidade (representada, por exemplo, na res furtiva), a autoria (hipótese de tipicidade processual) e demais circunstâncias que serão verificadas na análise fática.
Ocorre que o ato de conclusão do indiciamento não é automático: é necessário o encaminhamento de peças formais para a consumação do apontamento delitivo pelo Delegado de Polícia ao Instituto de Identificação.
Como o Auto de Prisão em Flagrante será lavrado apenas para fins de documentação da ocorrência e cumprimento das formalidades, basta que a autoridade policial não conclua com a comunicação ao Instituto de Identificação. Assim, não restará qualquer estigma quanto ao procedimento, caracterizando-se uma exceção ao indiciamento coercitivo.
Um ponto de destaque nessa hipótese é que não se deve expedir a nota de garantias constitucionais ao conduzido.
A nota de garantias constitucionais (nota de culpa), além de servir como documento da prisão, informa ao preso os motivos de sua detenção e os nomes do condutor e das testemunhas, para que possa alegar oportunamente as razões que tiver contra a prisão ou contra seus acusadores e testemunhas. Também constitui elemento de prova da data da prisão, para efeito de computar o tempo desta no cumprimento da pena, no caso de condenação. Pela nota de culpa, o acusado poderá exercer os direitos que lhe assistam em razão da natureza da infração.
Entretanto, como não haverá manutenção do encarceramento e o conduzido será imediatamente colocado em liberdade — uma vez constatada a inexistência de crime —, deve a autoridade policial abster-se de entregar a nota de garantias.
Uma coisa é a possibilidade de aplicação do princípio da insignificância pelo Delegado de Polícia, que já não é novidade; outra, bem diferente, é a sua materialização.
Conclusão
Não se defende aqui uma visão utilitarista; ao contrário, a ideia é compatibilizar a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da CRFB/88) — fundamento da República Federativa do Brasil —, restaurando o status libertatis do conduzido, com as atribuições de cada um dos atores da justiça.
Infelizmente, há ocasiões em que prender (e prender mal) dá mais trabalho do que soltar, mediante a prolação de um mero despacho de arquivamento e a liberação imediata de todos os envolvidos.
A liberdade do conduzido será restaurada de uma forma ou de outra, seja por despacho e posterior arquivamento, seja pela materialização do procedimento flagrancial.
Apenas a forma de materialização dessa restauração deve observar parâmetros mínimos de segurança jurídica às autoridades policiais, devendo também ser compatibilizada com as atribuições do Ministério Público, detentor do controle externo da atividade policial.
Assim, ao receber uma ocorrência que aponte a eventual aplicação do princípio da bagatela, deve o Delegado de Polícia lavrar o Auto de Prisão em Flagrante — denominado “negativo” — e, na sequência, determinar a soltura imediata do conduzido.
O que não se pode defender, em hipótese alguma, é que a lavratura do Auto de Prisão em Flagrante signifique encarceramento automático, o que configuraria erro crasso do dogmatismo processual penal.
Referências
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