Dentro das figuras que envolvem a persecução penal, não há sombra de dúvidas que a vítima/ofendido é o eixo mais fragilizado da relação. Em verdade, não apenas por ser o sujeito imediato de um crime, mas também no tocante a desvalorização do seu papel tanto no âmbito investigativo, quanto processual.
Entretanto, este cenário de descaso não é uma exclusividade do Brasil. No contexto mundial, a vítima, nos dois últimos séculos, foi quase totalmente menosprezada pelo direito penal (SHECAIRA, 2008, p. 55). A vítima passou a ser redescoberta a partir de meados do século XX com os avanços dos estudos da criminologia, sendo dividida historicamente em três momentos: a idade de ouro da vítima; a neutralização do poder da vítima; e a revalorização do papel da vítima. (SHECAIRA, 2008, p. 55).
Sérgio Shecaira (2008) ressalva que esta classificação, ainda que incerta, é a mais acolhida entre os doutrinadores. Para esse autor, o momento reconhecido como idade de ouro ou protagonismo, é, de um período histórico extremamente largo, o que, por si só, faz temerária qualquer classificação e dificulta a exata compreensão da evolução (2008, p. 55). É neste limbo histórico que a vítima atuava com total poder punitivo. A lei de talião, a vingança privada, prevaleciam entre as relações. No segundo momento, no final da alta idade média, o Estado passou a monopolizar as reações punitivas e seu protagonismo foi enfraquecendo, levando-a ao esquecimento. Na terceira e última fase, em especial no pós-segunda guerra mundial com as atrocidades provocadas pela Alemanha nazista no comande de Adolf Hitler, que a vítima volta a ser redescoberta pelos estudiosos. É neste momento que foi aprofundado os estudos da Vitimologia, sendo para muitos considerada uma ciência autônoma. (SHECAIRA, 2008)
No Brasil a preocupação com a vítima ainda ocorre a passos arrastados. Mesmo com o nascimento do poder constituinte originário, a Constituição Federal de 1988 cidadã -, marcada por fortes movimentos sociais, pouco disciplinou a favor da vítima, como assevera García-Pablos de Molina e Gomes:
O exame superficial do art. 5º da Constituição Federal constitui a prova mais exuberante no Brasil de que a vítima foi efetivamente esquecida, neutralizada, marginalizada. Vários direitos e garantias do acusado foram consagrados. Para a vítima muito pouco reservou-se. (2008, p. 523).
Com efeito, até mesmo a participação da vítima na fase inaugural da persecução penal, em especial, em sede investigativa presidida pela autoridade policial é de precária relevância.
A vítima tem uma disciplina bastante tímida na atual legislação processual e, no tocante à fase de investigação criminal, praticamente nula. O seu regramento mais detido, que compreende apenas um artigo de lei, pode ser encontrado no capítulo V do título VII do CPP ao tratar da prova processual penal, aplicado por analogia à fase de inquérito policial. (MACHADO, 2020, p. 110)
A grande maioria dos crimes previsto em nosso ordenamento jurídico são de ações públicas incondicionadas, onde remete ao Estado o monopólio de iniciar a persecução penal sem que a vítima concorde ou não, cabendo ao titular Ministério Público promover a ação penal pública.
Sua posição como sujeito titular de um bem jurídico violado é limitada a oferecer representação aos crimes condicionados, ou nos casos de ação privada prestar queixa à autoridade competente e no decorrer das investigações, sua participação é vista como mera fonte de produção de prova para realização das diligências necessárias. Segundo a lição de MACHADO (2020, p. 110), aquela pessoa física considerada vítima do crime segue importando muito mais ao modelo de persecução penal pelo que pode dizer a respeito do caso sob apuração do que pela violência experimentada contra si em virtude do fato criminoso.
Contudo, algumas legislações esparsas despenderam um pouco mais de atenção à vítima. Foi na Lei do Juizado Especial Criminal (9.099/95) que ela ganhou o primeiro destaque na legislação brasileira. Além de disciplinar a procedibilidade de crimes de menor potencial ofensivo, houve também a criação de institutos despenalizantes (transação penal, suspensão condicional do processo, etc.) que auxiliam na agilidade processual. Segundo a lição dos autores García-Pablos de Molina e Gomes (2008), este novo modelo de Justiça Criminal possui duas reinvindicações propostas pela Vitimologia: a comunicação e resolução. É através dessa abordagem que permite uma maior aproximação da vítima com o autor do fato e a possibilidade de resolução de conflito com a reparação do dano, visto que, a prisão, [...] tem um custo social muito alto. Por tudo isso, deve ser reservada para casos extremos (ultima ratio). (GARCIA-PABLOS DE MOLINA, GOMES, 2008, p. 524).
Como se pode notar, a aproximação da vítima no âmbito do Juizado vale-se na reparação do bem jurídico lesado, sem necessidade de um desgaste processual emocional - que geralmente tornam as relações morosas e exaustivas, e que por muitas vezes, acabavam não satisfazendo o maior prejudicado: o ofendido.
Neste ínterim, merece destaque a reforma realizada no ano de 2008 (Lei 11.719), especialmente no tocante ao art. 387, inciso IV, onde o Juiz ao proferir a sentença condenatória fixa um valor mínimo para reparação dos danos causados pela infração, considerando os prejuízos sofridos pelo ofendido. (BRASIL, 2020b) o que torna a execução do título judicial mais exequível e ágil à vítima.
Quatro anos após a diplomação do Juizado Especial, outra inovação legislativa tentou trazer destaque à proteção à vítima criminal, a Lei de Proteção a Vítima e Testemunha (9.807/1999).
Essa proteção alcança as vítimas (ou testemunhas) que foram expostas por graves ameaças ao colaborarem na persecução penal. A crítica quanto a esta lei é a mesma referente ao papel da vítima na fase investigativa exposto acima. O objetivo central é o mesmo, preservar a figura da vítima/testemunha visto que ela, segundo decorre o art. 2ª, é uma importante fonte de produção de prova. Neste plano, a vítima passa a ser condicionada à prova que irá produzir. Caso não seja interessante para a persecução penal, esta proteção não interessa mais ao Estado. (GOMES, 2012)
Todavia, em que pese a preocupação com a vítima no âmbito do Juizado Especial Criminal e a tentativa de protege-la quando ameaçada através da 9.807/1999 (Lei de Proteção a Vítima e Testemunha) a evolução ao seu tratamento ganhou maior impacto por meio da Lei Maria da Penha (11.340/2006) com a criação das medidas protetivas de urgência. Segundo reza Gabriel Habib, tais medidas não têm natureza de sanção penal têm a finalidade de proteção a vítima. (2008, p. 1149), e desde então sua importância vem ganhando espaço.
A fim de evitar a chamada Vitimização Secundária ou Revitimização, que nada mais é que o sofrimento aturado pela vítima por meio da má prestação estatal, burocratização e atos atentatórios a sua dignidade na persecução penal, podemos destacar três importantes recentes alterações legislativas.
A primeira no ano de 2017 por meio da Lei 13.505, que garante à vítima o direito de ser atendida por uma delegacia especializada em Violência contra a Mulher com o auxílio de profissionais do mesmo sexo, além da preocupação na colheita de seu depoimento evitando demais constrangimentos.
A segunda com as modificações promovidas através do pacote anticrime na fase investigativa, onde ganha um novo protagonismo na justiça criminal brasileira. A novidade permanece com a possibilidade de a vítima/ofendido ou representante legal ter ciência da decisão administrativa e ainda, no prazo de 30 (trinta) dias após a respectiva notificação, recorrer da decisão de arquivamento do órgão ministerial apresentando suas razões e descontentamentos. Podemos ainda mencionar que as pessoas jurídicas de direito público interno também têm a possibilidade de manifestar-se, cabendo à chefia do órgão provocar a instância superior do Ministério Público, resguardando o interesse da sociedade. (NUCCI, 2020, p. 112)
O fato de a vítima ser lembrada destaca sua importância como sujeito de direito, valorizando sua participação na persecução penal que há tempos é relegada, tornando-se não somente uma mera peça informativa do Estado, mas sim um indivíduo capaz de trazer seus argumentos desfavoráveis àquele que o representa (Ministério Público) e de alterar até mesmo os rumos da persecução penal. Esta mudança confere maior respeito aqueles que de fato sentem e passam por um momento traumático em suas vidas.
É imprescindível que a vítima possa dialogar com aqueles que a representam, ajudando na persecução penal e buscando seus interesses quando insatisfeita. O fato de a vítima ser obrigatoriamente notificada para conhecer os motivos do arquivamento e o direito de poder recorrer gera o sentimento de preocupação por parte do Estado, que nas relações entre Estado, vítima e acusado, sempre foi a mais fragilizada e diretamente afetada.
E recentemente, com a Lei 14.245/2021 que visa proteger as vítimas, em especial as de crime contra a dignidade sexual, perante os atos processuais que atentam contra a sua integridade psíquica e moral, além também de majorar a pena para o crime de Coação no Curso do Processo.
No tocante ao desenvolvimento da vitimologia em nosso país, com as recentes alterações nasce uma missão importante de assegurar a proteção à vítima na seara penal, seu papel como sujeito de direito é reconhecido e sua participação na justiça criminal contribui para melhor satisfazer os seus interesses visto ser a pessoa lesada diretamente por uma infração penal.
REFERÊNCIAS
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_______. Lei 9.296, de 24 de julho de 1996. Regulamenta o inciso XII, parte final, do art. 5º da Constituição Federal. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9296.htm>. Acesso em novembro 2021c.
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SHECAIRA, Sérgio Salomão. Criminologia. 5ª ed. Editora Revista dos tribunais. 2008.