Caso Barbosa de Souza e Outros vs. Brasil e a Violência Estrutural e Generalizada Contra Mulheres

27/11/2021 às 20:20
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Tem-se no texto breve análise da mais recente condenação do Brasil perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos, a qual, pela primeira vez, analisou um caso relativo à imunidade parlamentar e violência estrutural e generalizada contra uma mulher.

Eis o retrato que a Corte Interamericana de Direitos Humanos inicialmente dá sobre o caso: A violência contra as mulheres no Brasil era, na data dos fatos do presente caso - e continua sendo na atualidade - um problema estrutural e generalizado.

Um problema estrutural e generalizado: este é o contexto da violência contra a mulher no Brasil. Entre tantas agruras sociais que permanecem firmes na sociedade brasileira, entre as quais há o racismo e a homofobia, há esta que, dia após dia, continua aparentemente petrificada na sociedade: a violência contra a mulher.

Não é aqui o lugar para entrar no mérito das questões intrincadas que, historicamente, levaram a sociedade brasileira a figurar nas primeiras colocações entre aquelas que mais sujeitam mulheres à violência (em suas variadas espécies) e à morte.

Os dados demonstram a aparente existência de um arraigado preconceito contra a mulher no Brasil, já enraizado e de difícil eliminação, o que conduz à prática corriqueira do preconceito, da violência de gênero e violência doméstica contra a mulher em todas as suas formas, ou seja, um problema estrutural e generalizado.

Trata-se de um problema que leva à infeliz conclusão no sentido de que, no alto do século XXI (no qual a tecnologia avança, mas a consciência do ser humano permanece presa à poeira do atraso), muito ainda precisa ser feito para que a consciência do cidadão brasileiro se aproxime de um ideal de concreto respeito à condição de mulher.

Assim, quase que concomitantemente à comemoração do Dia Internacional pela Eliminação da Violência Contra a Mulher (que ocorre anualmente no dia 25 de novembro), instituído pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 1999, a qual faz homenagem às irmãs Pátria Mirabal, Minerva Mirabal e Maria Teresa Mirabal, assassinadas por se oporem à ditadura de Rafael Leónidas Trujillo na República Dominicana, cujo objetivo é alertar e erradicar os casos de violência contra as mulheres no mundo todo, a Corte Interamericana de Direitos Humanos publicou, em 24 de novembro de 2021, a sentença do Caso Barbosa de Souza e Outros vs. Brasil, a décima condenação na Corte de San José da Costa Rica em face do Estado brasileiro, a cuja jurisdição está vinculado desde 1998.

Na sentença do Caso Barbosa de Souza e Outros vs. Brasil, originalmente exarada no dia 07 de setembro de 2021, houve a apreciação de exceções preliminares, mérito, reparações e custas. De logo, a apreciação dos fatos é um dos elementos centrais das sentenças da Corte Interamericana de Direitos Humanos (doravante Corte IDH).

Dito isso, Corte IDH deixou claro que os fatos relacionados ao homicídio de Márcia Barbosa de Souza e alguns dos primeiros atos investigativos se encontram fora da competência jurisdicional da Corte, pois praticados antes do reconhecimento de sua jurisdição pelo Brasil, que ocorreu em 10 de dezembro de 1998.

No entanto, a violência contra a mulher é violência contra os direitos humanos, de forma que não poderia a Corte IDH inadmitir a apreciação do caso, pois tem o Tribunal Interamericano a grave missão de proteger direitos humanos.

A Corte IDH inicialmente atestou que a ausência de estatísticas nacionais, especialmente antes dos anos 2000, dificultou a formulação e a implementação de políticas públicas eficazes para combater tal forma de violência, de modo que, na época dos fatos, não haviam dados sobre o número de mortes violentas de mulheres em razão de gênero, sendo que as primeiras informações começaram a ser compiladas sob a denominação de feminicídio muito recentemente.

É notável que a Corte IDH tenha aduzido que existia e existe no Brasil uma cultura de tolerância à violência contra a mulher, ilustrada, por exemplo, pela forma através da qual os meios de comunicação apresentavam as notícias de violência contra as mulheres, ao romantizá-la ao invés de rejeitá-la, o que, em alguns casos, produz altas de taxas de feminicídio.

Também consta que a primeira pesquisa nacional sobre violência no Brasil, realizada no ano de 1988 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), assinalou que, das vítimas de violência no âmbito doméstico, 63% eram mulheres e, em 70% dos casos, o agressor era o marido ou companheiro.

Neste sentido, um estudo realizado no ano de 2004 considerou que, a cada 15 (quinze) segundos uma mulher era severamente agredida por um homem no Brasil. Outrossim, uma pesquisa do Senado Federal brasileiro, realizada no ano de 2015, confirmou que 01 (uma) entre cada 05 (cinco) mulheres havia sofrido alguma espécie de violência doméstica ou familiar, bem como que as mulheres com o nível de educacional mais baixo são as mais afetadas e que as que têm entre 20 (vinte) e 29 (vinte e nove) anos são as mais propensas a sofrer violência doméstica pela primeira vez.

Entre 2006 e 2010, os dados da Organização Mundial de Saúde sobre os homicídios de mulheres, coletados em 84 países, colocaram o Brasil em 7º (sétimo) lugar.

A Corte IDH ponderou que, mesmo com a promulgação da Lei nº 13.104, de 09 de março de 2015 (denominada Lei do Feminicídio), que incluiu no Código Penal o feminicídio como forma qualificadora do homicídio, a Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais, em 2015, e o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos, em 2016, qualificaram o Brasil como o país com a 5º (quinta) taxa mais alta do mundo de homicídios de mulheres por razões de gênero.

É importante notar que as mortes violentas de mulheres no Brasil não ocorrem de forma igual; há um significativo recorte de raça. De forma geral, a taxa de vitimização das mulheres negras no país é 66 (sessenta e seis) vezes superior à de mulheres brancas. Além disso os dados apresentados pelo Monitor da Violência, coletados em todas as regiões do Brasil, mostram que durante o primeiro semestre de 2020, 75% das mulheres assassinadas eram negras.

De outra parte, verificou-se que, no Estado da Paraíba, as taxas de homicídio de mulheres entre os anos 1990 e 2000 não variaram substancialmente. No entanto, no ano de 2017 o número de mulheres assassinadas por cada 100 (cem) mil habitantes quase duplicou em relação a 1990.

Outrossim, na Paraíba a taxa de homicídios cometidos contra mulheres negras se manteve em alta desde o ano 2000, quando foi iniciada a medição. Ademais, entre os anos 2000 e 2017 o número de mulheres negras assassinadas duplicou. Em 2018 a taxa de mulheres negras assassinadas no Estado da Paraíba foi quatro vezes maior que a taxa de homicídios de outras mulheres.

Quanto à resposta do Poder Judiciário aos casos de violência contra a mulher, a Corte IDH levantou que, em 27 de setembro de 1997, pouco mais de um ano antes do homicídio de Márcia Barbosa de Souza, a Comissão Interamericana publicou seu Relatório sobre a Situação dos Direitos Humanos no Brasil, no qual afirmou que a ineficácia do sistema judicial para responder a casos de violência contra a mulher demonstrava uma discriminação contra as mulheres vítimas de violência.

Um problema estrutural e generalizado, e o caso do homicídio da vítima Márcia Barbosa de Souza é a prova concreta disso. Ela era uma estudante afrodescendente de 20 (vinte) anos de idade, residente na cidade de Cajazeiras, no interior do Estado da Paraíba, no Nordeste do Brasil.

Vivia com seu pai, S.R.S., e sua irmã mais nova, Mt.B.S., e muito próximo da casa de sua mãe, M.B.S. Constituíam uma família de recursos econômicos escassos, ou seja, era uma família tradicionalmente pobre. Márcia Barbosa e sua irmã mais nova, de pouco mais de 17 (dezessete) anos na época, eram estudantes. Márcia Barbosa estava concluindo o último ano do segundo grau e pretendia buscar trabalho para contribuir com a renda familiar. Sua mãe realizava serviços de limpeza em uma escola municipal em Cajazeiras, e seu pai era funcionário do Município e taxista.

Então, em novembro de 1997 e maio de 1998, Márcia Barbosa viajou a João Pessoa, capital da Paraíba, onde se hospedou na casa de sua amiga M.S.C e de seu esposo U.M.S. Posteriormente, viajou a esta cidade em 13 de junho de 1998 com sua irmã Mt.B.S., para participar em uma Convenção do Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB). Constatou-se que, após a Convenção, a senhora Mt.B.S voltou a Cajazeiras e Márcia Barbosa de Souza permaneceu em João Pessoa, possivelmente para buscar trabalho, e se hospedou no hotel-pousada Canta-Maré.

Em 17 de junho de 1998, por volta da 19 horas, a senhora Barbosa de Souza recebeu uma ligação do então deputado estadual da Paraíba Aércio Pereira de Lima e, posteriormente, saiu para encontrar-se com ele. Às 21 horas, no Motel Trevo, foi realizada uma ligação a partir do telefone celular utilizado pelo senhor Pereira de Lima a um número de telefone residencial na cidade de Cajazeiras. Durante a ligação Márcia Barbosa de Souza conversou com várias pessoas e uma delas inclusive falou com o senhor Pereira de Lima.

Na manhã de 18 de junho de 1998 um transeunte observou que alguém estava retirando o corpo de uma pessoa, posteriormente identificada como Márcia Barbosa de Souza, de um veículo em um terreno baldio no bairro Altiplano Cabo Branco, próximo da cidade de João Pessoa, no Estado da Paraíba.

Quando o corpo foi encontrado, Márcia Barbosa de Souza apresentava escoriações na região frontal, nasal e labial. Ademais, seus lábios, nariz e dorso apresentavam hematomas de tom azul-violáceo e seu corpo tinha vestígios de areia. Por outra parte, durante a autópsia, revelou-se que a cavidade cranial, torácica abdominal e o pescoço apresentavam hemorragia interna e, como causa de morte, foi determinada a asfixia por sufocamento, resultante de uma ação mecânica. Outrossim, o perito médico-legal que examinou o cadáver determinou que a senhora Márcia Barbosa de Souza havia sido agredida antes de morrer e havia sofrido uma ação compressiva no pescoço, ainda que esta não tenha sido a causa da morte.

A morte da vítima Márcia Barbosa de Souza foi somente o ponto de partida para inúmeras questões que, não fosse a atuação dos familiares da vítima, da Comissão Interamericana de Direitos Humanos e da Corte IDH, teria conduzido o caso de Márcia Barbosa de Souza ao esquecimento e à impunidade.

Em 19 de junho de 1998, iniciou-se iniciada formalmente a investigação policial nº 18/98 sobre a morte de Márcia Barbosa de Souza. Após a coleta de provas testemunhais e periciais, o Delegado de Polícia a cargo da investigação, emitiu um relatório em 21 de julho de 1998, no qual manifestou que todas as provas indicavam a participação direta do então deputado Aércio Pereira de Lima no delito. No entanto, afirmou que fora difícil tomar a declaração do então deputado em virtude de suas prerrogativas relacionadas com a imunidade parlamentar. O Delegado concluiu também que havia indícios da participação de outras quatro pessoas no delito: D.D.P.M., L.B.S., A.G.A.M. e M.D.M.

Durante o curso das investigações, a autoridade policial inquiriu diversas testemunhas a respeito da personalidade, da conduta social e da sexualidade da senhora Barbosa de Souza. Outrossim, durante a tramitação do processo penal contra Aércio Pereira de Lima, a pedido de seu advogado, foram incorporados aos autos do processo mais de 150 páginas de artigos de jornais que se referiam à suposta prostituição, overdose e suposto suicídio de Márcia Barbosa.

Em 23 de julho de 1998 a Polícia enviou o relatório da investigação ao Ministério Público, o qual solicitou ao juiz competente, alguns dias depois, novas diligências a ser conduzidas pela autoridade policial. Em 28 de julho de 1998, o juiz autorizou as referidas diligências e determinou um prazo de 20 (vinte) dias para que a autoridade policial as concluísse.

Em 19 de agosto de 1998 o Delegado de Polícia e o Promotor solicitaram a presença do então deputado para receber o seu depoimento. Em 24 de agosto de 1998 o então deputado respondeu que o pedido deveria ser feito à Assembleia Legislativa do Estado da Paraíba em razão das prerrogativas parlamentares de que dispunha.

Em 27 de agosto de 1998 o Delegado de Polícia elaborou ​​um novo relatório ratificando os termos do relatório anterior. Em 4 de setembro de 1998 o Promotor requereu o envio dos autos da investigação policial ao Procurador-Geral de Justiça, competente no caso para apresentar a ação penal contra o então deputado Aércio Pereira de Lima, em virtude de que este gozava de foro privilegiado.

Em 15 de setembro de 1998 o processo foi recebido na Procuradoria-Geral de Justiça. Paralelamente, as investigações relacionadas com os demais acusados, que não tinham prerrogativa de foro, continuaram sob responsabilidade das autoridades policiais.

A denúncia do Ministério Público imputou como autor dos delitos de homicídio duplamente qualificado e ocultação de cadáver o então deputado estadual Aércio Pereira de Lima, quem conhecia à suposta vítima desde novembro de 1997. Segundo sua própria declaração e uma prova testemunhal, o senhor Aércio Pereira de Lima tinha em seu poder o veículo utilizado para a ocultação do cadáver da vítima. Outras quatro pessoas (D.D.P.M., L.B.S., A.G.A.M. e M.D.M) também foram incluídas nas investigações como suspeitas de participação no delito.

Não obstante, a partir deste ponto, diversos óbices à persecução penal em face do senhor Aércio Pereira de Lima começaram a despontar no decorrer do processo.

Em 1º de outubro de 1998 o Ministério Público expressou ao Juiz que supervisionava as investigações relacionadas ao envolvimento de D.D.P.M., L.B.S., A.G.A.M. e M.D.M. no homicídio de Márcia Barbosa de Souza, a necessidade de ampliar o prazo das investigações para esclarecer aspectos individualizados da conduta de cada um em relação à morte e ocultação do cadáver, bem como a totalidade dos fatos, e fez uma série de requerimentos específicos. Neste mesmo dia o juiz autorizou as diligências solicitadas pelo Promotor, sob o entendimento de que as provas requeridas eram imprescindíveis, e ordenou o envio dos autos das investigações à autoridade policial para o cumprimento destas diligências.

Em 14 de dezembro de 1998, o Promotor voltou a solicitar a realização de provas, a ser diligenciadas pela autoridade policial, que a seu juízo não as havia realizado, sem especificar quais seriam elas. Durante o ano de 1999, não houve atuações significativas nas investigações, especialmente devido a três substituições de promotores responsáveis pelas mesmas, visto que dois deles alegaram impedimento por motivo de foro íntimo.

Ao mesmo tempo, em virtude da imunidade parlamentar usufruída pelo então deputado estadual, o Procurador-Geral de Justiça apresentou a ação penal perante o Tribunal de Justiça do Estado da Paraíba em 8 de outubro de 1998, com a reserva de que apenas poderia ter seu início se a Assembleia Legislativa o permitisse.

Em 14 de outubro de 1998, foi solicitada a autorização pertinente à Assembleia Legislativa, a qual foi rejeitada em 17 de dezembro de 1998, mediante Resolução nº 614/98 Em 31 de março de 1999, o Poder Judiciário reiterou a solicitação à Assembleia Legislativa, a qual também foi negada em 29 de setembro de 1999.

Em 19 de junho de 2000, foi enviado ao juiz o relatório médico-legal solicitado pelo Promotor em outubro de 1998. Em 8 de agosto de 2000 o Promotor solicitou ao juiz que ordenasse à autoridade policial a conclusão das investigações. A solicitação foi acatada pelo juiz em 14 de agosto desse mesmo ano. Em 26 de dezembro de 2000, o novo Delegado da Delegacia que investigava o caso solicitou a extensão do prazo para o cumprimento das diligências investigativas requeridas e a elaboração do relatório final.

Diante da ausência de notícias, em março de 2001 o Ministério Público voltou a pedir à Polícia a realização de algumas diligências. O Delegado de Polícia, em 2 de abril, entendeu que já havia realizado as gestões suficientes, manifestando expressamente que não levaria a cabo todas as diligências solicitadas pelo Ministério Público. Posteriormente, em abril de 2001 o Ministério Público deixou uma nota nos autos da investigação ao Delegado a cargo do caso, advertindo que poderia incorrer em delito de desobediência se não cumprisse integralmente as diligências previamente requeridas no prazo de 30 dias. Em junho e em agosto de 2001 o Ministério Público solicitou novamente à autoridade policial que desse cabal cumprimento às diligências requeridas anteriormente.

Em setembro de 2001, o Delegado responsável pelas investigações informou que, devido ao acúmulo de trabalho, não havia realizado as diligências requeridas pelo Ministério Público. Assim, em dezembro de 2001 o Ministério Público voltou a solicitar as diligências supra referidas. De igual modo, em março de 2002, o Delegado informou que não havia sido possível proceder com os trâmites requeridos devido ao acúmulo de trabalho causado pela falta de pessoal e a falta de veículos em condições de trabalho. Outrossim, em dezembro de 2002, o Delegado novamente manifestou não ter podido cumprir o que lhe havia sido ordenado.

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Em março de 2003, o Ministério Público recomendou o arquivamento dos autos por insuficiência de prova em relação a D.D.P.M., M.D.M., L.B.S. e A.G.A.M, o que foi determinado pelo Juiz.

No que tange à persecução penal do senhor Aércio Pereira de Lima, em 12 de abril de 2002, a Coordenação Judicial do Tribunal de Justiça do Estado da Paraíba informou à Presidência do Tribunal sobre a Emenda Constitucional 35/2001. Assim, em 16 de abril de 2002, o magistrado do Tribunal de Justiça responsável pelos autos os enviou à Procuradoria-Geral de Justiça para que se pronunciasse.

O Procurador-Geral de Justiça apresentou seu parecer escrito em 21 de outubro de 2002, argumentando que, em razão das modificações introduzidas pela EC 35/2001, competia ao Poder Judiciário dar continuidade ao caso.

Em 3 de fevereiro de 2003, o magistrado relator do caso ordenou a consulta ao Tribunal Regional Eleitoral da Paraíba para determinar se o senhor Aércio Pereira de Lima havia sido eleito para algum cargo nas eleições de outubro de 2002, de modo a poder decidir sobre a competência do Tribunal de Justiça para processá-lo.

Em 11 de fevereiro de 2003, o Tribunal Regional Eleitoral da Paraíba informou ao Magistrado que o senhor Pereira de Lima não havia sido eleito para nenhum cargo. Portanto, o Magistrado enviou o caso à Vara de Primeira Instância de João Pessoa, toda vez que o senhor Pereira de Lima já não mais contava com a prerrogativa de foro.

Logo, o processo penal teve início formalmente em 14 de março de 2003. Em 7 de abril de 2003, foi realizada a primeira audiência de instrução, na qual o senhor Pereira de Lima negou todas as acusações. Entre 7 de abril de 2003 e 27 de julho de 2005, foram realizadas cinco audiências. Na audiência de 27 de julho de 2005, foi proferida a sentença de pronúncia, isto é, decidiu-se que o senhor Pereira de Lima deveria ser submetido ao Tribunal do Júri, em virtude de que existiam indícios suficientes para determinar a autoria do delito de homicídio qualificado por motivo fútil e mediante asfixia, e por ocultação de cadáver.

Em 3 de agosto de 2005, a defesa do senhor Pereira de Lima interpôs um recurso contra a sentença supra referida. No entanto, em 1º de novembro de 2005, a Vara de primeira instância confirmou a sentença, e em 31 de janeiro de 2006, a Câmara Criminal do Tribunal rejeitou o recurso. Contra esta decisão de improcedência de seu recurso, em 15 de fevereiro de 2006, a defesa do senhor Pereira de Lima interpôs um recurso especial, o qual foi enviado ao Superior Tribunal de Justiça em 19 de janeiro de 2007.

Em 25 de junho de 2007, o Tribunal do Júri celebrou sua primeira sessão, mas o julgamento foi adiado devido à ausência do advogado do senhor Pereira de Lima e foi reiniciado em 26 de setembro de 2007. Em 26 de setembro de 2007, o Primeiro Tribunal do Júri de João Pessoa condenou o senhor Pereira de Lima a 16 anos de prisão pelos crimes de homicídio e ocultação do cadáver de Márcia Barbosa de Souza. O senhor Pereira de Lima recorreu da sentença em 27 de setembro de 2007.

Antes de que este recurso fosse examinado, em 12 de fevereiro de 2008, o senhor Pereira de Lima morreu de infarto. Portanto, foi extinta a punibilidade, e o caso foi arquivado.

A sentença da Corte IDH destacou que o corpo do senhor Pereira de Lima foi velado no Salão Nobre da Assembleia Legislativa do Estado. A Assembleia, por determinação de seu Presidente, cancelou a sessão legislativa e enviou uma comunicação oficial a todos os deputados. Foi decretado luto oficial por três dias, e vários políticos, entre eles o então Governador do Estado da Paraíba, compareceram ao velório tudo em detrimento do delito praticado, da vítima e de seus familiares.

Para além disso, prevendo que a justiça efetiva provavelmente não seria aplicada ao caso (conforme assim demonstrado), em 28 de março de 2000, o Centro pela Justiça e o Direito Internacional (CEJIL), o Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH)/Regional Nordeste e o Gabinete de Assessoria Jurídica às Organizações Populares (GAJOP) apresentaram a petição inicial em representação das supostas vítimas perante a Comissão Interamericana de Direitos Humanos.

Como o Estado brasileiro, mesmo apresentando um relatório no qual expressou sua vontade de cumprir as recomendações emitidas pela Comissão Interamericana, mas não realizou nenhuma proposta concreta de cumprimento e não apresentou pedido de extensão do prazo, em 11 de julho de 2019 a Comissão Interamericana de Direitos Humanos submeteu à jurisdição da Corte IDH o caso Márcia Barbosa de Souza e seus familiares a respeito da República Federativa do Brasil, em conformidade com os artigos 51 e 61 da Convenção Americana de Direitos Humanos.

De acordo com a Comissão Interamericana, a controvérsia se relaciona à alegada situação de impunidade em que se encontraria a morte de Márcia Barbosa de Souza, ocorrida em junho de 1998 nas mãos de um então deputado estadual, o senhor Aércio Pereira de Lima.

A Comissão Interamericana determinou que:

i) a imunidade parlamentar, nos termos definidos na norma interna provocou um atraso no processo penal de caráter discriminatório, ii) o prazo de mais de 9 anos que durou a investigação e o processo penal pela morte de Márcia Barbosa de Souza resultou em uma violação à garantia de prazo razoável e uma denegação de justiça, iii) não foram sanadas as deficiências probatórias e nem foram esgotadas todas as linhas de investigação, sendo a situação resultante incompatível com o dever de investigar os fatos com a devida diligência, e iv) o assassinato de Márcia Barbosa de Souza, resultante de um ato de violência, somado às falhas e atrasos nas investigações e no processo penal, violaram a integridade psíquica de seus familiares (grifou-se).

Submetido o caso por parte da Comissão Interamericana à Corte IDH (uma vez que as vítimas não podem acioná-la diretamente, mas apenas por meio da Comissão), a partir de 21 de outubro de 2019, teve-se que a Corte IDH seria competente para conhecer o presente caso, nos termos do artigo 62.3 da Convenção Americana, em virtude de que o Brasil é Estado parte deste instrumento desde 25 de setembro de 1992 e reconheceu a competência contenciosa deste Tribunal em 10 de dezembro de 1998. Outrossim, o Estado do Brasil ratificou a Convenção de Belém do Pará em 27 de novembro de 1995.

No caso sub judice, o Estado brasileiro interpôs como exceções preliminares: a) a alegada incompetência ratione temporis a respeito de fatos anteriores à data do reconhecimento da competência da Corte, e b) a alegada falta de esgotamento dos recursos internos, as quais serão analisadas nessa ordem. O Estado também apresentou como uma exceção preliminar a incompetência ratione personae quanto às vítimas não listadas no Relatório da Comissão.

Posteriormente, em suas alegações finais escritas, assinalou que esta alegação correspondia, na realidade, a uma questão prévia à análise de mérito. A Corte IDH fez notar que, de acordo com sua jurisprudência constante, essa alegação não constitui uma exceção preliminar, toda vez que sua análise não pode resultar na inadmissibilidade do caso ou na incompetência deste Tribunal para conhecê-lo.

Quanto à alegada falta de esgotamento de recursos internos, a Corte IDH desestimou tal exceção. Finalmente, sobre a alegada incompetência ratione personae quanto às vítimas não listadas no Relatório da Comissão, e posteriormente retificada como questão prévia à análise de mérito, a Corte IDH fez notar que esta alegação não constitui uma exceção preliminar, razão pela qual procedeu a examiná-la no capítulo de consideração prévia. A esse respeito, a Corte IDH considerou como supostas vítimas a mãe e ao pai de Márcia Barbosa de Souza, conforme identificados no Relatório de Mérito da Comissão Interamericana.

Por outro lado, e aqui adentrando no mérito do casto, ponto extremamente relevante da sentença é o pertinente à imunidade parlamentar do então deputado estadual Aércio Pereira de Lima, tendo em vista que foi a primeira vez que analisou-se a imunidade parlamentar no âmbito do direito de acesso à justiça e da obrigação reforçada de investigar com devida diligência a morte de uma mulher.

Na Corte IDH, o caso versou sobre a suposta responsabilidade internacional do Brasil por violações ao direito de acesso à justiça da mãe e do pai de Márcia Barbosa de Souza, bem como da obrigação de investigar este crime com a devida diligência estrita requerida e dentro de um prazo razoável.

Em que pese os fatos relacionados com o homicídio não estarem dentro da competência temporal do Tribunal, a Corte IDH considerou verossímil que o homicídio da senhora Márcia Barbosa de Souza tenha sido cometido por razões de gênero, especialmente em razão da situação assimétrica de poder econômico e político com respeito a seu agressor homem, além do estado no qual seu corpo foi encontrado (em um terreno baldio), com vestígios de areia, o que indicava que possivelmente havia sido arrastado, com marcas de agressões, escoriações na região frontal, nasal e labial, hematomas distribuídos no rosto e nas costas, e com marcas de que havia sido submetida a uma ação compressiva no pescoço.

A Corte IDH considerou relevante recordar, tal como já afirmara anteriormente, que possui competência para conhecer de atos independentes que tenham ocorrido dentro das investigações e do processo penal iniciados em razão do homicídio de Márcia Barbosa de Souza, com posterioridade a 10 de dezembro de 1998.

Deste modo, encontravam-se dentro da competência da Corte a decisão adotada pela Assembleia Legislativa do Estado da Paraíba em 17 de dezembro de 1998, a qual rejeitou a autorização para processar criminalmente o senhor Pereira de Lima, e também o pedido de diligências probatórias do Promotor responsável pela investigação contra os demais suspeitos, datada de 14 de dezembro de 1998, bem como os atos realizados com posterioridade, na medida em que tenham relação íntima com estes.

Levando em consideração as alegações apontadas pela Comissão Interamericana, dos representantes e do Estado, a Corte IDH procedeu o exame do mérito do Caso Barbosa de Souza e Outros vs. Brasil na seguinte ordem: a) direitos às garantias judiciais, à proteção judicial e à igualdade perante a lei, em relação às obrigações de respeito e garantia, ao dever de adotar disposições de direito interno e às obrigações previstas no artigo 7 da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, e b) direito à integridade pessoal dos familiares de Márcia Barbosa de Souza.

Somado a isso, a Corte IDH, levando em consideração as alegações apresentadas pelas partes e pela Comissão Interamericana, bem como os fatos do caso e as provas que foram disponíveis nos autos, a Corte IDH fez referência a: 1) a alegada aplicação indevida da imunidade parlamentar; 2) a alegada falta de devida diligência na investigação sobre os demais suspeitos; 3) a alegada violação da garantia do prazo razoável; 4) a alegada utilização de estereótipos de gênero nas investigações, e 5) conclusão.

No que tange à análise dos direitos às garantias judiciais, à igualdade perante a lei e à proteção judicial, com relação às obrigações de respeito e garantia, ao dever de adoptar disposições de direito interno e às obrigações previstas no artigo 7 da Convenção de Belém do Pará, a Corte IDH assinalou que a imunidade parlamentar é um instituto que foi idealizado como uma garantia de independência do órgão legislativo em seu conjunto e de seus membros, e não pode conceber-se como um privilégio pessoal de um parlamentar. Nessa medida, cumpriria o papel de garantia institucional da democracia. Não obstante, sob nenhuma circunstância, a imunidade parlamentar pode transformar-se em um mecanismo de impunidade, questão que, caso ocorresse, acabaria erodindo o Estado de Direito, seria contrária à igualdade perante a lei e tornaria ilusório o acesso à justiça das pessoas prejudicadas.

De acordo com a Corte IDH, o presente caso concerne apenas a imunidade parlamentar formal ou processual, uma vez que o início do processo penal contra o então deputado estadual Aércio Pereira de Lima, indiciado como autor do homicídio de Márcia Barbosa de Souza, foi adiado em virtude da aplicação da imunidade parlamentar por parte da Assembleia Legislativa do Estado da Paraíba, de acordo com o regime constitucional vigente na época. Em função do anterior, a análise da Corte IDH sobre a aplicação da imunidade parlamentar no caso sob estudo se enfocou nesta espécie de imunidade.

Pela sentença da Corte de San José:

O Tribunal considerou que, diante de um caso concreto, a decisão sobre a aplicação ou levantamento da imunidade parlamentar processual pelo órgão parlamentar, deve: i) seguir um procedimento célere, previsto em lei ou no regimento interno do órgão legislativo, que contenha regras claras e respeite as garantias do devido processo; ii) incluir um teste de proporcionalidade estrito, através do qual se deve analisar a acusação formulada contra o parlamentar e levar em consideração o impacto ao direito de acesso à justiça das pessoas que podem ser afetadas e as consequências de se impedir o julgamento de um fato delitivo, e iii) ser motivada e ter sua motivação vinculada à identificação e justificativa da existência ou não de um fumus persecutionis no exercício da ação penal proposta contra o parlamentar.

Quanto à alegada imunidade parlamentar do autor do crime de homicídio que vitimou Márcia Barbosa de Souza, a conclusão da Corte IDH é determinante:

O Tribunal concluiu que o marco jurídico constitucional da Paraíba e regulamentar no Brasil, na data dos acontecimentos, obstaculizou de forma arbitrária o acesso à justiça dos familiares de Márcia Barbosa Souza, ao não prever os critérios que deveriam ser levados em consideração na análise do pedido de licença prévia, a necessidade de motivação da decisão ou o prazo para a decisão final. Ademais, a falta de motivação das duas decisões adotadas pela Assembleia Legislativa da Paraíba indica que esta não procedeu à realização de um teste rigoroso de proporcionalidade, através do qual seria levado em consideração o impacto no direito de acesso à justiça das pessoas que poderiam ser prejudicadas por estas decisões. De igual modo, determinou que a negativa de levantamento da imunidade parlamentar propiciou a impunidade do homicídio da senhora Barbosa de Souza, tornando ilusório o efetivo acesso à justiça de seus familiares no presente caso (grifou-se).

Quanto à investigação sobre os demais suspeitos, a Corte IDH indicou que, apesar dos fortes indícios de que a morte violenta de Márcia Barbosa de Souza foi resultado de violência de gênero, o Estado não realizou qualquer diligência probatória para determiná-lo. Ao examinar o acervo probatório do presente caso, a Corte IDH constatou que, embora existissem indícios que que apontavam na direção da possível participação de outras pessoas no homicídio de Márcia Barbosa de Souza, não foram realizadas uma série de diligências investigativas relevantes por parte da Polícia Civil da Paraíba, e concluiu que o Estado não cumpriu sua obrigação de atuar com a devida diligência para investigar seriamente e de forma completa a possível participação de todos os suspeitos do homicídio de Márcia Barbosa.

Sobre a garantia do prazo razoável, a Corte IDH considerou que, no presente caso, não era necessário analisar os quatro elementos estabelecidos na sua jurisprudência, uma vez que o atraso no andamento do processo deveu-se principalmente aos quase cinco anos durante os quais a ação penal não pôde ser iniciada, dado à negativa arbitrária por parte da Assembleia Legislativa em conceder a licença prévia para o processo penal do então deputado Aércio Pereira de Lima.

De igual modo, considerou que a aplicação arbitrária da imunidade parlamentar, a demora excessiva e a sensação de impunidade gerada pela falta de resposta judicial agravaram a situação dos familiares de Márcia Barbosa, somados aos quase 10 anos transcorridos desde os fatos do presente caso até a sentença penal condenatória em primeira instância. Portanto, o Tribunal Interamericano concluiu que o Brasil violou o prazo razoável na investigação e na tramitação do processo penal relacionados com o homicídio de Márcia Barbosa de Souza.

Com relação à alegada utilização de estereótipos de gênero nas investigações, a Corte IDH recordou sua jurisprudência sobre o alcance e o conteúdo dos artigos 1.1 e 24 da Convenção Americana e verificou que, no caso sub judice, existiu uma intenção de desvalorizar a vítima mediante a neutralização de valores.

Para a Corte IDH:

No que tange ao princípio de igualdade perante a lei e não discriminação, a Corte indicou que a noção de igualdade decorre diretamente da unidade de natureza do gênero humano e é inseparável da dignidade essencial da pessoa, frente à qual é incompatível toda situação que, por considerar superior a um determinado grupo, conduza a tratá-lo com privilégio; ou que, em sentido contrário, por considerá-lo inferior, o trate com hostilidade ou discrimine de qualquer forma no gozo de direitos reconhecidos a quem não são considerados como incluídos naquela situação. Na atual etapa da evolução do Direito Internacional, o princípio fundamental de igualdade e não discriminação ingressou no domínio do jus cogens. Sobre ele descansa o arcabouço jurídico da ordem pública nacional e internacional e permeia todo o ordenamento jurídico. Os Estados devem abster-se de realizar ações que, de qualquer maneira, estejam dirigidas, direta ou indiretamente, a criar situações de discriminação de jure ou de facto. A Corte já indicou que, ao passo que a obrigação geral do artigo 1.1 da Convenção Americana se refere ao dever do Estado de respeitar e garantir sem discriminação os direitos contidos neste tratado, o artigo 24 protege o direito à igual proteção da lei. O artigo 24 da Convenção Americana proíbe a discriminação de direito ou de fato, não apenas quanto aos direitos previstos na mesma, mas no que respeita a todas as leis aprovadas pelo Estado e sua aplicação. Isto é, não se limita a reiterar o disposto no artigo 1.1 da Convenção, a respeito da obrigação dos Estados de respeitar e garantir, sem discriminação, os direitos reconhecidos no tratado, mas estabelece um direito que também acarreta obrigações ao Estado de respeitar e garantir o princípio de igualdade e não discriminação na proteção de outros direitos e em toda a legislação interna que venha a adotar. Em conclusão, a Corte afirmou que, se um Estado discrimina no respeito ou garantia de um direito convencional, violaria o artigo 1.1 e o direito substantivo em questão. Caso, ao contrário, a discriminação se refere a uma proteção desigual da lei interna ou sua aplicação, o fato deve ser analisado à luz do artigo 24 da Convenção Americana.

Além dessas considerações, a Corte IDH delimitou que no caso Velásquez Paiz e outros Vs. Guatemala, a Corte reiterou que o estereótipo de gênero se refere a uma preconcepção de atributos, condutas ou características possuídas ou papeis, que são ou deveriam ser executados por homens e mulheres, respectivamente, e que é possível associar a subordinação da mulher a práticas baseadas em estereótipos de gênero socialmente dominantes e socialmente persistentes. Neste sentido, sua criação e uso se converte em uma das causas e consequências da violência de gênero contra a mulher, condições que se agravam quando se refletem, implícita ou explicitamente, em políticas e práticas, particularmente na fundamentação e na linguagem das autoridades estatais.

Em particular, a Corte IDH reconheceu que os preconceitos pessoais e os estereótipos de gênero afetam a objetividade dos funcionários estatais encarregados de investigar as denúncias que lhes são apresentadas, influindo em sua percepção para determinar se ocorreu ou não um fato de violência, em sua avaliação da credibilidade das testemunhas e da própria vítima. Os estereótipos distorcem as percepções e dão lugar a decisões baseadas em crenças preconcebidas e mitos, em lugar de fatos, o que por sua vez pode dar lugar à denegação de justiça, incluindo a revitimização das denunciantes.

Com efeito, durante toda a investigação e o processo penal, o comportamento e a sexualidade de Márcia Barbosa passaram a ser um tema de especial atenção, provocando a construção de uma imagem de Márcia Barbosa como geradora ou merecedora do ocorrido e desviando o foco das investigações por meio de estereótipos relacionados com aspectos de sua vida pessoal, que, por sua vez, foram utilizados como fatos relevantes para o próprio processo.

O caso retrata que, nas diversas declarações testemunhais tomadas no curso da investigação policial e no processo penal, nota-se a reiteração de perguntas sobre a sexualidade da vítima Márcia Barbosa. De igual modo, foram identificadas perguntas sobre o consumo de drogas e álcool. Por sua vez, o exame químico toxicológico levado a cabo nos primeiros dias das investigações, paralelamente à autopsia, havia registrado uma quantidade insignificante de substâncias em seu sangue, o que permitiria à senhora Barbosa de Souza manter suas faculdades normais de reflexos.

Neste contexto, a perita Soraia Mendes afirmou que, das 12 (doze) testemunhas ouvidas, 07 (sete) conheciam a senhora Barbosa de Souza e a todos lhes foi perguntado sobre o possível uso de drogas por parte de Márcia, e a 02 (duas) sobre sua sexualidade.

De acordo com a perita Soraia Mendes, a repetição de provas testemunhais buscou construir uma imagem de Márcia Babosa para gerar dúvidas a respeito da responsabilidade penal do então deputado por seu homicídio. A perita Mendes enfatizou que as testemunhas não apenas foram inquiridas sobre os fatos, mas também sobre a conduta social, a personalidade e a sexualidade de Márcia Barbosa, o que indicaria uma investigação sobre a vítima, seu comportamento, sua reputação. Algo que toma as páginas dos jornais e se projeta para os autos do processo judicial com ainda mais força.

Durante a tramitação do processo penal contra Aércio Pereira de Lima perante o Tribunal do Júri, o advogado de defesa solicitou a incorporação aos autos do processo de mais de 150 (cento e cinquenta) páginas de artigos de jornais que se referiam à prostituição, overdose e suposto suicídio, para vinculá-los a Márcia Barbosa com a intenção de afetar sua imagem. Adicionalmente, o defensor realizou diversas menções no curso do processo sobre a orientação sexual da vítima, um suposto vício de drogas, comportamentos suicidas e depressão. Igualmente, descreveu a Márcia como uma prostituta e a Aércio como o pai de família que se deixou levar pelos encantos de uma jovem e que, em um momento de raiva, teria cometido um erro.

Assim, o Tribunal concluiu que a investigação e o processo penal relacionados ao homicídio de Márcia Barbosa de Souza tiveram um carácter discriminatório por razão de gênero e não foram conduzidos com uma una perspectiva de gênero de acordo com as obrigações especiais impostas pela Convenção de Belém do Pará.

Diante de todo o exposto, a Corte IDH considerou que o Brasil violou os direitos às garantias judicias, à igualdade perante a lei e à proteção judicial, estabelecidos nos artigos 8.1, 24 e 25 da Convenção Americana, com relação aos artigos 1.1 e 2 do referido tratado, bem como às obrigações contempladas no artigo 7.b da Convenção de Belém do Pará, em prejuízo da senhora M.B.S. e do senhor S.R.S.

Já no contexto do direito à integridade pessoal dos familiares de Márcia Barbosa de Souza, a Corte IDH considerou, em reiteradas oportunidades, que os familiares das vítimas de violações dos direitos humanos podem ser, por sua vez, vítimas.

O Tribunal considerou que é possível declarar violado o direito à integridade psíquica e moral de familiares diretos de vítimas e de outras pessoas com vínculos estreitos com tais vítimas, em razão do sofrimento adicional que estes padeceram como produto das circunstâncias particulares das violações perpetradas contra seus entes queridos, e por causa das posteriores atuações ou omissões das autoridades estatais frente a estes fatos, tomando em consideração, entre outros, as gestões realizadas para obter justiça e a existência de um estreito vínculo familiar.

Em face disso, a Corte IDH apontou que o acervo probatório do caso permitiu constatar que a senhora M.B.S. e o senhor S.R.S. padeceram de um profundo sofrimento e angústia em detrimento de sua integridade psíquica e moral, devido: i) ao homicídio de sua filha; ii) à atuação das autoridades estatais durante a investigação sobre o ocorrido; iii) à cobertura midiática do caso que especulou sobre a vida pessoal e a sexualidade de Márcia e reforçou estereótipos de gênero; e iv) à homenagem realizada ao ex-deputado no Salão Nobre da Assembleia Legislativa da Paraíba e ao luto oficial decretado por três dias, apesar da existência de uma condenação em primeira instancia pelo homicídio de sua filha, Márcia Barbosa.

Com base nas considerações anteriores, o Tribunal conclui que o Estado violou o direito à integridade pessoal reconhecido no artigo 5.1 da Convenção Americana, em relação ao artigo 1.1 do mesmo instrumento, em prejuízo da senhora M.B.S. e do senhor S.R.S.

Sendo assim, considerando que a Corte IDH reconheceu a responsabilidade internacional do Estado brasileiro pela violação dos direitos humanos da senhora Márcia Barbosa de Souza e de seus familiares, subsiste para o Brasil (haja vista que quem responde perante a Corte IDH é o Estado brasileiro, incumbindo a este ente o dever de reparação às vítimas), a Corte IDH indicou que toda violação de uma obrigação internacional que tenha provocado dano compreende o dever de repará-lo adequadamente, e que essa disposição reflete uma norma consuetudinária que constitui um dos princípios fundamentais do Direito Internacional contemporâneo sobre a responsabilidade de um Estado.

No entender da Corte de San José, a reparação do dano causado pela infração de uma obrigação internacional requer, sempre que seja possível, a plena restituição (restitutio in integrum), que consiste no restabelecimento da situação anterior.

Caso isso não seja factível, como ocorre na maioria dos casos de violações de direitos humanos, o Tribunal determinará medidas para garantir os direitos violados e reparar as consequências que as infrações produziram.

Neste sentido, a Corte IDH considerou a necessidade de outorgar diversas medidas de reparação a fim de ressarcir os danos de maneira integral de forma que, além das compensações pecuniárias, as medidas de restituição, reabilitação, satisfação e garantias de não repetição têm especial relevância em função dos danos causados.

O Tribunal estabeleceu que as reparações devem ter um nexo causal com os fatos do caso, as violações declaradas, os danos provados, e com as medidas solicitadas para reparar os danos respectivos. Portanto, a Corte deverá analisar esta simultaneidade de fatores para pronunciar-se devidamente e conforme o direito. Outrossim, a Corte IDH considerou que as reparações deverão incluir uma análise que contemple não apenas o direito das vítimas a obter uma reparação, mas também incorporem uma perspectiva de gênero, tanto em sua formulação como em sua implementação.

Por conta disso, a Corte IDH considerou como parte lesada, nos termos do artigo 63.1 da Convenção Americana, a quem tenha sido declarada vítima da violação de algum direito reconhecido na mesma. Portanto, o Tribunal Interamericano considerou como parte lesada M.B.S. e S.R.S., isto é, a mãe e o pai de Márcia Barbosa de Souza, quem em seu caráter de vítimas das violações declaradas na sentença e quem serão beneficiários das reparações ordenadas pela Corte em desfavor do Estado brasileiro.

Logo, a Corte IDH estabeleceu que sua sentença constitui, por si mesma, uma forma de reparação e ordenou ao Estado do Brasil as seguintes medidas de reparação integral:

A) Medidas de satisfação: 1) a publicação e a difusão da Sentença e de seu resumo oficial, e 2) a realização de um ato de reconhecimento de responsabilidade internacional;

B) Garantias de não repetição: 1) o desenho e a implementação de um sistema nacional e centralizado de recopilação de dados que permitam a análise quantitativa e qualitativa de fatos de violência contra as mulheres e, em particular, de mortes violentas de mulheres, 2) criação e implementação de um plano de formação, capacitação continuada e sensibilização das forças policiais responsáveis pela investigação e de operadores da Justiça do Estado da Paraíba, com perspectiva de gênero e raça, 3) uma jornada de reflexão e sensibilização na Assembleia Legislativa do Estado da Paraíba sobre o impacto do feminicídio, a violência contra a mulher e a utilização da figura da imunidade parlamentar, e 4) a adoção e implementação de um protocolo nacional para a investigação de feminicídios; e

C) Indenizações compensatórias: pagar os valores fixados na Sentença em virtude da impossibilidade de reabrir a investigação policial sobre os outros possíveis partícipes do homicídio de Márcia Barbosa de Souza; a título de indenização por danos materiais e imateriais; pelo reembolso das custas e gastos, e o montante que permita à senhora M.B.S. arcar com os custos dos tratamentos médico, psicológico e/ou psiquiátrico que sejam necessários.

Sobre a medida de reabilitação, a Corte IDH determinou que os fatos do caso geraram graves prejuízos à integridade pessoal de M.B.S. e de S.R.S., na forma de padecimentos físicos, emocionais e psicológicos.

Portanto, a Corte considerou necessário dispor medida de reparação que ofereça atenção adequada aos padecimentos médicos, psicológicos ou psiquiátricos sofridos pela mãe de Márcia Barbosa de Souza, e que atenda suas especificidades e antecedentes. Consequentemente, a Corte IDH ordenou ao Brasil pagar uma soma de dinheiro para que a senhora M.B.S. possa custear os gastos dos tratamentos que sejam necessários.

No ponto referente às garantias de não repetição, o Tribunal avaliou de maneira positiva os avanços normativos realizados pelo Brasil com posterioridade aos fatos do caso em análise. Em particular a Lei Maria da Penha, a qual constitui uma importante referência internacional na prevenção e combate da violência contra a mulher, e a Lei do Feminicídio, projetada para visibilizar os homicídios cometidos contra mulheres e por razão de seu gênero e enviar uma mensagem da especial gravidade deste delito. Ademais, apontou-se as modificações ao Código Penal brasileiro introduzidas pela Lei nº 11.106/2005, que excluiu do citado diploma legal termos e expressões discriminatórios em relação às mulheres, entre outras medidas.   

Igualmente, a Corte IDH pontuou de forma positiva que atualmente se encontram em funcionamento no Brasil vários programas, projetos e iniciativas com o propósito de enfrentar a violência e a discriminação contra a mulher. Nesse sentido, em 2003 foi criada a Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, órgão temático vinculado à Presidência da República, que tinha como atribuições a coordenação, elaboração e implementação de políticas para as mulheres no âmbito federal. Por outra parte, em 2006 foi inaugurada a Política Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres, a qual reunia amplas medidas de prevenção, proteção e responsabilização relacionadas ao combate à violência contra a mulher. Em 2013 foi inaugurado o "Programa Mulher, Viver sem Violência", por parte da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, cuja finalidade era consolidar a rede intersetorial de serviços especializados e a capilaridade da política nacional.

Já no plano das estatísticas sobre violência de gênero, a Corte IDH atestou que no mesmo sentido, em 2012 o Comitê CEDAW expressou sua preocupação pela falta de dados precisos e coerentes sobre a violência contra a mulher no Brasil.

De igual modo, a Comissão Parlamentar de Inquérito do Senado Federal brasileiro, criada em 2012 para facilitar a execução da Lei Maria da Penha, também identificou, no ano de 2016, a dificuldade de coletar dados sobre a situação de violência contra a mulher no país, pois foram encontradas base de dados diferentes: da polícia, de diferentes entidades de saúde, do judiciário e também de níveis diferentes.

Por fim, sobre o dano material e moral decorrente do reconhecimento das violações de direitos humanos das vítimas, a Corte IDH aferiu que desenvolveu em sua jurisprudência o conceito de dano material e estabeleceu que este supõe a perda ou redução da renda das vítimas, os gastos efetuados em razão dos fatos e as consequências de natureza pecuniária que tenham nexo causal com os fatos do caso.

Outrossim, desenvolveu em sua jurisprudência o conceito de dano imaterial, e estabeleceu que este pode compreender tanto os sofrimentos e as aflições causados à vítima direta e a seus familiares, como o menosprezo de valores muito significativos para as pessoas, assim como as alterações, de caráter não pecuniário, nas condições de existência da vítima ou de sua família.

Dado que não é possível atribuir ao dano imaterial um equivalente monetário preciso, apenas pode ser objeto de compensação. Nessa medida, para os fins da reparação integral à vítima, isso será feito mediante o pagamento de uma quantia de dinheiro que a Corte IDH determine, em aplicação razoável do arbítrio judicial e em termos justos.

Neste prisma, a Corte IDH advertiu que os representantes não solicitaram valores específicos nem apresentaram elementos concretos para avaliar os danos sofridos. Não obstante isso, o Tribunal considerou que, dada a natureza dos fatos e das violações explicitadas, as vítimas sofreram danos materiais e imateriais que devem ser compensados.

Em atenção aos critérios estabelecidos em sua jurisprudência constante e às circunstâncias do presente caso, a Corte IDH considerou pertinente fixar em equidade, a título de dano material e imaterial, o pagamento de USD$ 150.000,00 (cento e cinquenta mil dólares dos Estados Unidos da América) a favor de cada uma das vítimas, o que inclui o montante indenizatório em virtude da impossibilidade de reabrir a investigação penal sobre os outros possíveis partícipes no homicídio da senhora Barbosa de Souza, bem como a soma que permita à senhora M.B.S. cobrir os gastos dos tratamentos médico, psicológico e/ou psiquiátrico que sejam necessários.

O Tribunal Interamericano determinou que o Estado brasileiro deverá realizar o pagamento das indenizações a título de dano material e imaterial e o reembolso de custas e gastos estabelecidos na sentença diretamente às pessoas e organizações indicadas na mesma, dentro do prazo de um  01 (um) ano contado a partir da notificação da sentença, sem prejuízo de que possa adiantar o pagamento completo em um prazo menor. No tocante às indenizações fixadas a favor do senhor S.R.S., o Estado deverá pagá-las a seus herdeiros, em conformidade com o direito interno aplicável, dentro do prazo de 01 (um) ano, contado a partir da notificação da decisão emanada da Corte IDH.

Cabe, portanto, à Corte Interamericana de Direitos Humanos supervisionar o cumprimento integral da sentença exarada em desfavor do Brasil, no exercício de suas atribuições e no cumprimento de seus deveres, conforme a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, e dará por concluído o caso uma vez que o Estado tenha dado cabal e inteiro cumprimento ao determinado na sentença.

Desta feita, observa-se que longos anos transcorreram até que os familiares da vítima Márcia Barbosa de Souza pudessem obter uma resposta satisfativa, infelizmente não por parte do sistema judiciário brasileiro, que falhou na investigação e na persecução penal dos autores do fato, mas por aquele órgão que fiscaliza as graves violações de direito humanos ocorridas no território sul-americano, que é a Corte Interamericana de Direitos Humanos.

Que os fatos apreciados e julgados no Caso Barbosa de Souza e Outros vs. Brasil sirvam, de alguma forma, de reflexão por parte das autoridades públicas do sistema de investigação e persecução penal brasileiro, de modo a evitar que tão flagrante omissão e desrespeito para com os direitos de uma mulher e seus familiares torne a ocorrer.

*Detalhes do caso e extratos da sentença conforme: Corte IDH. Caso Barbosa de Souza y otros Vs. Brasil. Excepciones preliminares, Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 7 de septiembre de 2021. Serie C No. 435. Disponível em: <https://www.corteidh.or.cr/casos_sentencias.cfm>. Acesso em 27 nov. 2021.

Sobre o autor
Júnior da Silva Garcez

Máster Universitario em Derecho Penal Internacional y Transnacional pela Universidad Internacional de La Rioja (Espanha) (em andamento). Especialista em Direito Internacional e Direitos Humanos pelo Centro Universitário e Faculdades Uniftec (UNIFTEC). Especialista em Direitos Difusos e Coletivos pela Faculdade Complexo de Ensino Renato Saraiva (CERS). Pesquisador com concentração em Direito e Processo Penal Internacional, Cooperação Jurídica Internacional e Direitos Humanos. Autor de artigos jurídicos. Membro da Association Internationale de Droit Pénal (AIDP). Graduado em Direito pelo Instituto Luterano de Ensino Superior de Porto Velho/RO (ILES/ULBRA). Assessor Jurídico do Ministério Público do Estado de Rondônia. E-mail: [email protected].

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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