O Direito Administrativo Sancionador e a irretroatividade da prescrição intercorrente na Lei de Improbidade Administrativa.

06/12/2021 às 14:32
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Resumo: O Direito Administrativo Sancionador acabou por ser incorporado na Lei de Improbidade Administrativa a partir das alterações promovidas pela Lei n. 14.230/21. Cuida-se de instituto ainda pouco desenvolvido no âmbito nacional o que reclama aprofundamento na sua análise modo a evitar conclusões precipitadas e que não atentem para a cientificidade que o Direito exige. Embora o Direito Penal possa subsidiar o desenvolvimento do Direito Administrativo Sancionador, a incorporação dos princípios daquele ramo reclama o emprego de um juízo de proporcionalidade e finalidade, de maneira que se mantenha a integridade e autonomia deste como disciplina autônoma e atenta às suas peculiaridades.

Palavras-chave: Direito Administrativo Sancionador; Direito Penal; moralidade administrativa; proteção deficiente; direito fundamental; devido processo legal substantivo; controle de inconstitucionalidade; irretroatividade.

Abstract: The Sanctioning Administrative Law was eventually incorporated into the Administrative Impropriety Law after the changes promoted by Law n. 14.230/21. This is an institute that is still underdeveloped at the national level, which is claimed in its analysis in order to avoid being hasty and that do not pay attention to the scientificity that the Law requires. Although Criminal Law can support the development of Sanctioning Administrative Law, an incorporation of the principles of that branch calls for the employment of proportionality and superior judges, so that their integrity and autonomy is maintained as an autonomous discipline that pays attention to its peculiarities.

Keywords: Sanctioning Administrative Law; Criminal Law; administrative morality; poor protection; fundamental right; substantive due process; unconstitutionality control; non-retroactivity.

 

Sumário: Introdução. 1. Um conceito inicial de Direito Administrativo Sancionador. 2. O Direito Administrativo Sancionador e sua autonomia frente ao Direito Penal: da correta alocação do DAS no âmbito do Direito Administrativo. 3. Os princípios do Direito Administrativo Sancionador.   4. O princípio da retroatividade da lei mais benéfica no âmbito do Direito Administrativo Sancionador no tocante à prescrição da pretensão punitiva nas ações de improbidade administrativa. 5. Últimos apontamentos. Conclusão. Referências.

Introdução.

O Direito Administrativo Sancionador (DAS) não encontra no ordenamento jurídico uma regulamentação precisa. No âmbito nacional, há doutrina incipiente sobre o tema, boa parte dela fundada no direito comparado, onde a matéria é tratada há décadas.

Ocorre que, com o advento da Lei n. 14.230/21, que incorporou, sem regulamentar, o DAS às ações de improbidade administrativa, mister que o tema seja analisado de forma científica e com a correta atenção aos preceitos inerentes à tutela da moralidade administrativa[1], enquanto direito fundamental metaindividual.

É impositivo que fique clara a falta de simetria integral entre Direito Penal e o DAS o que impede, em sentido contrário ao que a doutrina nacional tem apregoado, a simples incorporação dos princípios do Direito Penal para o âmbito do Direito Administrativo Sancionador.

Como se tentará evidenciar no presente estudo, atento aos limites próprios dessa espécie de análise, embora o Direito Penal possa subsidiar o desenvolvimento do DAS enquanto disciplina autônoma, a incorporação dos princípios daquele ramo reclama o emprego de um juízo de proporcionalidade e finalidade. Hão de ser adaptados os princípios do Direito Penal, quando pertinentes ao DAS, à própria finalidade e essência dessa disciplina integrante do Direito Administrativo, sob pena de subversão da sua finalidade. 

1. Um conceito inicial de Direito Administrativo Sancionador.

O Direito Administrativo Sancionador pode ser tradicionalmente definido como a expressão do efetivo poder de punir estatal, que se direciona a movimentar a prerrogativa punitiva do Estado, efetivada por meio da Administração Pública e em face do particular ou administrado[2].

Esse conceito se revelava suficiente em certa medida, porque se prestava a diferenciar o DAS do Direito Penal: enquanto aquele se ocupava do direito de punir estatal na órbita administrativa, este materializava o ius puniendi na seara judicial, mais precisamente perante o juízo criminal.

Porém, essa definição não mais compreende a exata extensão do que se entende por Direito Administrativo Sancionador. A administrativização do Direito Penal verificada nos últimos anos reflexo da hipertrofia do Direito Penal tornou necessário que condutas socialmente relevantes, mas que não mereciam a tutela da ultima ratio, passassem a serem tratadas pelo Poder Judiciário em seara distinta da penal. Daí porque o DAS extrapolou os limites internos da Administração Pública passando a irradiar efeitos junto a processos judiciais que tenham por escopo a apuração de infrações cíveis-administrativas que reclamavam uma punição por parte do Estado por meio do Estado-juiz.

É dessa evolução e do entendimento de que, por decorrer do ius puniendi, há de ser garantido ao réu um plexo mínimo de direitos e garantias, que o estudo do DAS passa por uma nova fase. Fase essa acelerada por ter sido a disciplina expressamente incorporada pelo legislador pátrio no âmago das ações que versam sobre improbidade administrativa (§ 4º do art. 1º da Lei n. 8.429/92).

Dessa feita, num primeiro momento, no desiderato de se diferenciar o DAS e o Direito Penal, considerando a inexistência de diferença qualitativa e quantitativa de penas, e levando-se em conta esse novo momento legislativo, podemos, de forma preliminar, conceituar o DAS como a expressão do efetivo poder punitivo do Estado, direcionada à responsabilização do servidor público em sentido amplo e/ou do particular, em órbita não penal.

2. O Direito Administrativo Sancionador e sua autonomia frente ao Direito Penal: da correta alocação do DAS no âmbito do Direito Administrativo.

Fixado um conceito inicial, é de ser reforçada a dissociação do Direito Administrativo Sancionador do Direito Penal modo a evitar equívocos corriqueiros no estudo do tema.

De fato, no seu nascedouro, o DAS sofreu forte influência da evolução do Direito Penal. Isso porque se partiu de uma ideia equivocada de que o DAS seria um fragmento do Direito Penal, uma vez que ambos decorrem do ius puniendi estatal, que é uno. Tanto assim o é que, inicialmente, o DAS era denominado como Direito Penal Administrativo.

Todavia, essa premissa errônea se deveu ao próprio ineditismo da matéria e a falsa apreensão de que, por ambos decorrerem do ius puniendi, não seria outra a natureza se não a penal da disciplina que estava sendo desenvolvida.

Contudo, a evolução do tema relevou a impropriedade da nomenclatura, ensejando a adoção da expressão Direito Administrativo Sancionador. E essa alteração, antes de mera adequação semântica, representou verdadeira ruptura com a doutrina até então vigente, que identificava uma similitude entre o Direito Penal e o DAS. La utilización de esta denominación [DAS] implica, pues, una ruptura deliberada con concepciones del passado: se abandonan los campos de la Policia y del Derecho Penal para asentarse en el Derecho Administrativo. La expresión adquiere así el valor de un emblema y de una confesión doctrinal.[3]    

Veja-se que, ainda que vigore, com predominância, a teoria do ius puniendi unitário, isso não leva à conclusão de uma suposta subordinação ou vinculação do DAS ao Direito Penal e seus predicados.  Isso porque percebeu-se que esses sistemas sancionatórios não guardam similitude de lógica operativa e, embora os ordenamentos sancionatórios possam constituir manifestações de ius puniendi, seus perfis singulares exigem um esforço para caracterizar o campo em que eles podem ser utilizados[4]. Logo, não há falar em simetria integral entre o Direito Penal e o DAS.

O ius puniendi se presta como raiz comum para ambas as disciplinas, mas cada qual se ocupa de uma faceta desse poder diante de suas singularidades, o que, antes de confundi-los, reforça a autonomia entre eles. Como brilhantemente destacam José Roberto Pimenta Oliveira e Dinorá Adelaide Musetti Grotti

A identidade do DAS em face do Direito Penal não depende apenas da concepção que se tenha do primeiro. Ela é reflexo também do que se perfilha cientificamente sobre a identidade do Direito Penal. Não há como fugir desta constatação. Para quem admite e aceita que o Direito Penal possa expandir seu terreno normativo para proteção de bens jurídicos metaindividuais e mesmo acolhe a responsabilidade criminal da pessoa jurídica, a conclusão poderia se voltar para uma diferenciação fraca entre

DP e DAS, totalmente dependente da liberdade de confirmação do Poder Legislativo. Esta conclusão deve ser afastada, porque os dois ramos DP e DAS não se confundem, sendo que cada um ostenta uma teleologia própria no direito positivo. É complexo estabelecê-las, mas no Estado de Direito Constitucional a necessidade de contenção de arbitrariedades é sempre o ponto de partida, inclusive na configuração do Direito Penal e do Direito Administrativo Sancionador.[5]

O DAS é Direito Público Administrativo. Tem por escopo primordial a tutela do coletivo, a qual se sobrepõe ao interesse singular ou, ao menos, deve com ele ser cotejado e ponderado no exame da aplicação da legislação e dos princípios inerentes a esse sistema. Como leciona Alejandro Nieto:

Em suma, contra todas as probabilidades, deve-se afirmar que o Direito Penal Administrativo é, como o próprio nome indica, um Direito Administrativo embutido diretamente no direito público estatal e não um Direito Penal vergonhoso; da mesma forma que o poder sancionatório administrativo é o poder anexado a qualquer poder atribuído à Administração para a gestão do interesse público. Não é por acaso, claro, que até o nome do antigo Direito Penal Administrativo foi substituído há muitos anos pelo mais próprio Direito Administrativo Sancionador (tradução livre).[6]

Alice Voronoff, que também aponta a natureza administrativa do DAS, além de tecer fortes críticas ao aspecto unitário do ius puniendi, deixa clara as peculiaridades que permeiam o DAS e que devem conduzir sua interpretação. Segundo a doutrinadora,

este ramo é dotado de singularidades que buscam um equilíbrio fino (legitimação híbrida), destacando: (1) as particularidades finalísticas e operacionais do DAS, atinentes à realização de objetivos de interesse público, sob enfoque prospectivo e conformativo, dissociado, como regra, de juízo de reprovação ético-social; (2) a instrumentalidade da sanção administrativa, que é compreendida como meio de gestão, e não fim em si mesmo. Instrumento de gestão e ferramenta institucional, governado por lógica de incentivos de conformidade, visando a efetividade dos objetivos de interesse público; (3) o componente funcional, que, segundo Voronoff, se desdobra no elemento funcional estático (órgão ou ente da Administração) e elemento funcional dinâmico (exigências impostas ao modus operandi da Administração)[7].

Além disso, não se pode esquecer que, a partir da Constituição Federal de 1988, o Direito Administrativo ganhou novos contornos. Abandonou-se a ideia de que a disciplina se prestava a regular a relação Administrador-Administração, passando a compreender que ela se destinava a tutelar, acima de tudo, o interesse público enquanto direito fundamental metaindividual. Pimenta Oliveira e Musetti Grotti bem apreenderam essa questão, ao afirmarem que

A Constituição reconhece o valor jurídico diferenciado do interesse público como categoria própria e não assimilável aos meros interesses pronunciados por administradores públicos ou meramente associados aos órgãos e entes públicos e governamentais, por lei ou atos infralegais. Não se trata de mero conceito jurídico indeterminado que a teoria da linguagem possa esgotar como operacionalizá-lo. O interesse público é um conceito recepcionado na Constituição. Isto se faz no capítulo próprio dos Direitos e Garantias Fundamentais (art. 19, inciso I), no capítulo dedicado à Administração Pública, em seu significado funcional (art. 37, inciso IX), na disciplina das leis (art. 66, parágrafo 1º), na atividade de gestão da função pública na Magistratura (art. 93, inciso VIII e art. 95, inciso II) e no Ministério Público (art. 128, parágrafo 5º, inciso I, alínea b), e na distinção do campo da legalidade (tal como cristalizado na própria Constituição) do preceituado como próprio ao interesse público, em seu ADCT (art. 51 ADCT). Esta presença constitucional significa que aos intérpretes não é dado ignorar ou reduzir sua relevância no sistema jurídico, devendo cumprir a função de demonstrar as suas projeções normativas no processo de concretização constitucional.[8]

Logo, não há dúvidas que o DAS se cuida de uma disciplina própria, com predicados particulares e inserido no âmbito do Direito Administrativo. E, ainda que o Direito Penal possa fornecer instrumentos para o desenvolvimento da disciplina, é absolutamente incongruente defender a tese de uma transposição pura e simples do arcabouço principiológico do Direito Penal para o Direito Administrativo Sancionador. Tal agir engendraria uma verdadeira subversão dos valores e dos princípios próprios desse ramo do Direito. Isso porque, na órbita administrativa propriamente dita, o DAS visa a preservação do interesse coletivo e dos princípios da administração pública; já, na órbita judicial, a essas finalidades se agrega principalmente a tutela da moralidade administrativa enquanto direito fundamental, finalidades essas não tuteladas pelo Direito Penal com a mesma profundidade.

Assim sendo, se pode densificar o conceito do DAS proposto inicialmente, agregando-lhe esses elementos que lhe particularizam ainda mais frente ao Direito Penal. Logo, o Direito Administrativo Sancionador pode ser compreendido como a expressão do efetivo poder punitivo do Estado, direcionada à responsabilização do servidor público em sentido amplo e/ou do particular, em órbita não penal, que tenha atentando contra o interesse coletivo, os princípios da administração pública e/ou a moralidade administrativa.

Com o conceito ora proposto, o DAS estará corretamente alocado no ramo do Direito Administrativo, o que destaca as prerrogativas próprias dessa disciplina em detrimento do Direito Penal.

3. Os princípios do Direito Administrativo Sancionador.

Não é objeto do presente artigo elencar e esgotar a análise de todos os princípios aplicáveis ao DAS. Porém, alguns apontamentos se fazem necessários, até mesmo para se superar a doutrina tradicional que, sem cientificidade adequada, conclama pela aplicação dos princípios do Direito Penal ao DAS como se houvesse uma integral simetria entre essas disciplinas, o que inexiste.

Inicialmente, não há dúvidas de que, em um regime democrático, deve ser assegurado ao destinatário do ius puniendi um plexo de direitos e garantias fundamentais garantindo-lhe um devido processo legal substantivo. Logo, princípios elementares do Direito Penal como o da legalidade (tipicidade), da culpabilidade (no sentido de se evitar a responsabilidade objetiva) e da pessoalidade da pena podem e devem ser incorporados como princípios próprios do DAS.

Em sentido semelhante, Gustavo Binenbojm[9] e Denise Luz[10] sustentam que, além das cláusulas do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa, compõem o núcleo comum do direito sancionador: o princípio da legalidade, sob o viés da tipicidade; os princípios da segurança jurídica e da irretroatividade; os princípios da culpabilidade e da pessoalidade da pena; o princípio da individualização da sanção; e os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade.

Porém, enquanto alguns desses princípios podem ser simplesmente transplantados da órbita penal para o DAS, outros haverão de sofrer os respectivos ajustes modo a acomodar a própria teleologia do DAS, sob pena de desvirtuar o instituto. Como já assentado, o interesse público possui envergadura constitucional, de modo que à sociedade aberta dos intérpretes da Constituição na feliz expressão cunhada por Peter Häberle[11] não é dado ignorar ou reduzir sua relevância no sistema jurídico, devendo cumprir a função de demonstrar as suas projeções normativas no processo de concretização constitucional.

Reafirmamos: ainda que o Direito Penal possa contribuir, por meio de seus princípios, na elaboração de instrumentos a fomentar o DAS, é inviável que não seja sopesado que o DAS possui finalidades outras e que está alicerçado em uma gama principiológica própria que, muitas vezes, não converge com aquela que alimenta o Direito Penal. É da natureza do Direito Administrativo Sancionador o predicado de ser uma ordem jurídica parcial da atividade do Estado e, logo, está irremissivelmente engatilhado a instrumentalizar a ótima realização de interesses públicos[12].  A diretriz é contribuir para integrar; e não desnaturar a índole administrativista dos sistemas sancionadores administrativos[13]. O DAS deve avaliar com o devido rigor científico as contribuições desses ramos do Direito Público, sem jamais abandonar a sua índole de regime jurídico-administrativo instrumental de tutela de interesses públicos[14].

Na nossa ótica, mostra-se absolutamente simplista e equivocada a tese apresentada por parte da doutrina[15] que aponta para uma pura transposição dos princípios do Direito Penal para o DAS. Primeiro, porque parte de uma premissa equivocada, no sentido da existência de uma suposta simetria entre o Direito Penal e o DAS o que já foi afastado nos capítulos antecedentes; segundo, essa teoria deixa de lado todas as prerrogativas e peculiaridades que impregnam a tutela do coletivo, objeto último do DAS.

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O DAS e o Direito Penal possuem diferentes caráteres institucionais e constitucionais não se encontrando na mesma posição ante o Direito. Não há como sustentar que, no âmbito do Direito Administrativo Sancionador, haja uma prevalência dos direitos do réu tal qual ocorre no âmbito do Direito Penal. Os valores e interesses em litígio possuem notas distintivas que, inclusive, particularidades essas que ensejaram a ruptura do DAS e do Direito Penal como disciplinas de um mesmo ramo jurídico.

Na seara do Direito Administrativo, a prevalência é do coletivo. E isso, de forma alguma, importa em reconhecer hipótese de juízo de exceção, ditatorial ou, ainda, que ao réu não serão conferidos os direitos e garantias que lhes são próprias. Serão! Todavia, os direitos e as garantias que lhes são devidas dentro de um contexto de devido processo judicial que envolve matéria de Direito Administrativo e cujas penas não envolvem privação da liberdade.

Não há confundir alhos com bugalhos como diz o ditado popular. Hão de ser devidamente ponderados os valores que guiam a razão de ser do DAS e, a partir dele, e não do Direito Penal, avaliar com o devido rigor científico a pertinência ou não da incorporação dos princípios do Direito Penal, sem jamais abandonar a sua índole de regime jurídico-administrativo instrumental de tutela de interesses públicos, os quais possuem status de direito fundamental metaindividual. O Direito Penal não é a matriz do Direito Administrativo Sancionador, mas sim o Direito Público, o que explica a aproximação desse ramo jurídico com o direito criminal, porém sem a completa transposição dos princípios garantistas[16].

Aduza-se que esse debate sobre a incorporação dos princípios do Direito Penal para o DAS é absolutamente atual no plano internacional, havendo intensa divergência sobre a matéria.

No Tribunal Constitucional Espanhol, como aponta Vicenç Aguado Cudolà, há uma tendência jurisprudencial de flexibilizar a aplicação dos princípios do Direito Penal no âmbito do DAS, tornando tais princípios muito mais restritivos e, até mesmo, excluindo alguns desses princípios diante da sua incompatibilidade com a natureza do processo administrativo sancionador. Como anota o doutor Vicenç Aguado Cudolà

Agora, passada essa fase eminentemente garantista, como consequência lógica da lógica da reação à situação jurídica existente no regime anterior, pode-se observar uma tendência jurisprudencial do Tribunal Constitucional [da Espanha] de natureza mais restritiva na medida em que redireciona a plena aplicação das garantias do artigo 24.2 ao seu ambiente natural - o processo -, enquanto exclui a validade de alguns deles no procedimento de sanção administrativa com base em sua incompatibilidade com sua natureza (tradução livre).[17]

 Na França[18] e na Itália[19], o entendimento prevalente é pela independência do DAS frente ao Direito Penal, inclusive sendo admitida a dupla penalização pelos mesmos fatos, uma vez que, para esses ordenamentos, a disparidade da natureza das esferas (Penal e Administrativa) legitima essa penalização dúplice. Ou seja, se nega a aplicação do princípio do ne bis in idem.

No âmbito supranacional europeu, embora haja precedente concluindo pela aplicação dos princípios penais ao âmbito do DAS[20], também é possível encontrar precedente indicando a impertinência dessa providência. É o que se afere, por exemplo, do precedente do Tribunal de Justiça da União Europeia, no caso Aklagaren vs Hans Akerberg Fransson, que versava sobre condenação nas esferas tributária e criminal por declarações falsas em relação a impostos devidos. Na ocasião, manifestou-se o Tribunal pela inocorrência de violação ao princípio do non bis in idem pois as sanções não possuíam a mesma natureza[21].

Ainda, há de ser levado em consideração que, no Brasil, o Direito Administrativo Sancionador possui um campo de incidência absolutamente particular. Trata-se da Improbidade Administrativa. Não há, no direito europeu, o qual é usualmente utilizado como referência para o estudo do DAS pela doutrina nacional, situação equivalente à do Brasil, que trata o combate à corrupção administrativa por meio de um processo judicial autônomo, em seara diversa do Direito Penal, processo esse que tem por escopo, antes de penalizar o réu, promover a tutela da moralidade administrativa enquanto direito fundamental metaindividual. Aliás, o constituinte originário impôs, no âmbito interno, verdadeiro mandado de penalização do agente ímprobo em seara não penal (§ 4º do art. 37 da Constituição Federal - CF).

Nessa perspectiva, considerando as peculiaridades que permeiam o DAS, há de ser realizada uma verificação de pertiência dos princípios do Direito Penal em etapas argumentativas, tendo as duas primeiras etapas como objetos a validade de fins (finalidade constitucional da medida) e a adequação de meios (meios adequados para realizar os fins constitucionais). No tocante à ultima etapa, a atenção volta-se à intensidade e à proporcionalidade em sentido estrito[22].

Assim, se propõe que a aplicação dos princípios do Direito Penal no DAS passe, obrigatoriamente, por um juízo de proporcionalidade para se averiguar se (i) dado princípio penal tem sua incidência adequada ao âmbito do DAS considerando a finalidade constitucional da disciplina e do ramo do Direito a que vinculada; se (ii) a aplicação de dado princípio penal se mostra necessária para a tutela dos direitos e garantias constitucionais do réu que responde por uma infração civil-administrativa; e, vencidos os juízos de adequação e necessidade, se (iii) o princípio penal não demanda remodelação do seu alcance e/ou da sua essência, modo a compatibilizá-lo com os preceitos do DAS enquanto instrumento da defesa do interesse público, mediante juízo de proporcionalidade em sentido estrito.

Evidente que a proposta ora apresentada reclamará um trabalho muito mais aprofundado da sociedade aberta dos intérpretes da Constituição. Porém, parece-nos a forma correta de entender e interpretar o DAS como uma disciplina autônoma vinculada ao Direito Administrativo, com viés constitucional de promoção da tutela do coletivo e que não guarda simetria com o Direito Penal. A própria evolução dos estudos envolvendo o Direito Administrativo Sancionador enquanto disciplina autônoma alocada em ramo diverso do Direito Penal exige um passo adiante em prol da sua maioridade dogmática, devendo ser descartado o Direito Penal como uma muleta a que se recorre diante de uma carência de regulamentação legislativa sobre a matéria. A própria ordem constitucional e o profundo desenvolvimento do Direito Administrativo no âmbito interno se revelam mais do que suficientes a nutrir o desenvolvimento dessa dogmática carente de positivação mais minuciosa.

4. O princípio da retroatividade da lei mais benéfica no âmbito do Direito Administrativo Sancionador no tocante à prescrição da pretensão punitiva nas ações de improbidade administrativa.

Fixados os parâmetros, resta analisar, para a finalidade desse artigo, se se apresenta constitucionalmente legítima a aplicação retroativa das alterações promovidas pela Lei n. 14.230/21 nas ações de improbidade administrativa, em particular, a aplicação da prescrição da pretensão punitiva.  E, parece-nos, que a resposta é negativa. Eis os argumentos:

a) A moralidade administrativa é direito fundamental e, como tal, merece proteção e promoção pelo Estado.

O Direito Administrativo Sancionador tem por desiderato principal, em se tratando de ação de improbidade, a tutela da moralidade administrativa.

Com efeito, a partir da Constituição de 1988, a moralidade administrativa foi incorporada como (i) princípio norteador da atuação da Administração Pública e também como (ii) direito fundamental.

No aspecto principiológico, Mariano Pazzaglini Filho sustenta que moralidade administrativa

...significa a ética da conduta administrativa; a pauta de valores morais a que a Administração Pública, segundo o corpo social, deve submeter-se para a consecução do interesse coletivo. Nesta pauta de valores insere-se o ideário vigente no grupo social sobre honestidade, boa conduta, bons costumes, equidade e justiça. Em outras palavras, a decisão do agente público deve atender àquilo que a sociedade, em determinado momento, considera eticamente adequado, moralmente aceito.[23]

Tal definição é compartilhada pelos doutrinadores Celso Antônio Bandeira de Mello[24] e José Afonso da Silva[25] entre outros tantos[26].

Já, no tocante à natureza de direito fundamental, ainda que haja resistência de parte da doutrina em reconhecer a moralidade como tal, cuida-se de dificuldade aparente e de fácil superação.

Primeiro, porque a moralidade administrativa, já em 1789, foi incorporada como direito natural do homem pela Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. Como assentaram, à época, os representantes do povo Francês

tendo em vista que a ignorância, o esquecimento ou o desprezo dos direitos do homem são as únicas causas dos males públicos e da corrupção dos Governos, resolveram declarar solenemente os direitos naturais, inalienáveis e sagrados do homem, a fim de que esta declaração, sempre presente em todos os membros do corpo social, lhes lembre permanentemente seus direitos e seus deveres; a fim de que os atos do Poder Legislativo e do Poder Executivo, podendo ser a qualquer momento comparados com a finalidade de toda a instituição política, sejam por isso mais respeitados; a fim de que as reivindicações dos cidadãos, doravante fundadas em princípios simples e incontestáveis, se dirijam sempre à conservação da Constituição e à felicidade geral (Preâmbulo).

Nos artigos 12º[27] e 15º[28] da Declaração, restou previsto o direito natural do homem de exigir dos agentes públicos a prestação de contas de suas atividades e que o exercício do munus publico se desse no interesse da coletividade, desprezando a atuação em proveito pessoal. Isto é, o direito à moralidade pública foi alçado a direito ancestral, emanado da própria natureza humana, independentemente da instituição do poder civil.

Segundo, a moralidade pública ascendeu à condição de direito fundamental com o próprio desenvolvimento daquilo que se denominou direitos de terceira dimensão. A partir de 1960, com a superação do olhar individualista do homem, valores humanistas como a fraternidade e solidariedade ganharam protagonismo, fazendo com que se reconhecesse a existência de direitos voltados à proteção ao meio ambiente, à autodeterminação dos povos, bem como ao direito de propriedade sobre o patrimônio comum da humanidade. São direitos transindividuais, em rol exemplificativo, destinados à proteção do gênero humano[29].

Terceiro, o direito fundamental à probidade administrativa decorre, na Constituição Federal de 1988, como bem destaca Roberto Lima Santos[30], (i) do princípio republicano (art. 1º, caput); (ii) do princípio democrático (art. 1º, par. único); (iii) de seus fundamentos (art. 1º, incisos I a V: soberania; a cidadania; a dignidade da pessoa humana; os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e o pluralismo político); (iv) dos objetivos fundamentais da República (art. 3º, incisos I a IV: construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação); (v) da prevalência dos direitos humanos e da defesa da paz nas suas relações internacionais (art. 4º, I e VI); e (vi) dos demais princípios constitucionais administrativos, previstos no caput do art. 37 (legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência).

Ora, a probidade administrativa visa, dentre outras questões, evitar aquilo que se denomina corrupção administrativa: o ato do administrador público praticado em desvio de finalidade ou de poder, em favor próprio ou de terceiro, com prejuízo à coisa pública, seja este material (perda patrimonial) ou imaterial (violação dos princípios e deveres morais). Como oportunamente ponderam Pazzaglini Filho, Rosa e Fazzo Júnior:

A improbidade administrativa, designativo técnico para a denominada corrupção administrativa, promove o desvirtuamento da Administração Pública em vista de promover a afronta aos princípios vetores da ordem jurídica e revelar-se por meio da aquisição de vantagens patrimoniais obtidas com prejuízo do dinheiro público, pelo exercício nocivo das funções e empregos públicos, também pelo tráfico de influência no âmbito da atividade administrativa e pelo favorecimento particular de poucos que agem na contramão dos interesses pretendidos pela sociedade, através de favorecimentos ilícitos[31].

Ao praticar um ato corrupto, o agente público e o particular que com ele eventualmente concorra estão contribuindo sensivelmente com a redução do capital ao alcance do Estado, o qual é necessário para a promoção de direitos essenciais do cidadão como a proteção à saúde, o meio ambiente saudável e todos os demais direitos sociais de terceira dimensão previstos na Constituição Federal de 1988. No mesmo sentido, pondera Rogério Pacheco Alves que a corrupção e a improbidade administrativa são fatores impeditivos à implementação plena dos direitos sociais fundamentais, sobretudo nos países subdesenvolvidos, colocando em risco o próprio Estado Democrático de Direito[32].

Ou seja, uma das principais facetas da moralidade administrativa, como já advertiam os revolucionários franceses em 1789, é garantir que o Estado mantenha em seu poder os meios e os recursos necessários para a satisfação de direitos fundamentais e, sobretudo, dos direitos sociais do cidadão, evitando que agentes em desvio de poder e finalidade se apropriem desses ativos para benefício próprio. Nesse mesmo sentido se manifesta André de Carvalho Ramos, ao referir que

esse agir em prol dos direitos humanos é erodido pelas práticas de corrupção, ou seja, para que o homem possa viver uma vida digna com a satisfação de suas necessidades materiais e espirituais básicas, devem atuar os agentes públicos com probidade, devendo o ordenamento jurídico possuir instrumento para zelar por tal conduta e reprimir, sancionando, os faltosos.[33]

A violação à moralidade por parte dos administradores públicos constitui impeditivo à aquisição dos direitos da cidadania e não deve ser analisada sob uma acepção restrita, mas deve ser compreendida como consectário fundamental de observância obrigatória para à aquisição dos direitos constitucionais previstos, a fim de se verificar a ampliação do conceito de cidadania de modo que esta acepção seja retratada na vida prática de todos como direito a ter direitos, como precisamente lembra Renata Cristina Macedônio de Souza[34].

Não é por menos que há anos a doutrina faz referência à existência de um verdadeiro direito fundamental à boa administração pública. Como assevera Juarez Freitas:

Trata-se do direito fundamental à administração pública eficiente e eficaz, proporcional cumpridora de seus deveres, com transparência, motivação, imparcialidade e respeito à moralidade, à participação social e à plena responsabilidade por suas condutas omissivas e comissivas. A tal direito corresponde o dever de a administração pública observar, nas relações administrativas, a cogência da totalidade dos princípios constitucionais que a regem.[35]

Em sentido semelhante, Figueiredo Moreira Neto aduz que do princípio da boa administração emana um direito implícito de cidadania, irradiando daí sua feição de direito fundamental:

A boa administração, portanto, não é uma finalidade disponível, que possa ser eventualmente atingida pelo Poder Público: é um dever constitucional de quem quer que se proponha a gerir, de livre e espontânea vontade, interesses públicos. Por isso mesmo, em contrapartida, a boa administração corresponde a um direito cívico do administrado implícito na cidadania (grifos no original).[36]

 

Ainda, apresenta-se oportuno trazer à lume as ponderações realizadas por Ingo Wolfgang Sarlet. Segundo o autor, a Constituição Federal de 1988 consagrou um direito fundamental à boa administração, o qual está amparado principalmente, mas não exclusivamente, no art. 1º, inciso III, que consagra a dignidade da pessoa humana como fundamento da República. Para o doutrinador,

uma boa administração só pode ser uma administração que promova a dignidade da pessoa e dos direitos fundamentais que lhe são inerentes, devendo, para tanto, ser uma administração pautada pela probidade e moralidade, impessoalidade, eficiência e proporcionalidade. A nossa Constituição, como se percebe, foi mais adiante. Além de implicitamente consagrar o direito fundamental à boa administração, ela já previu expressamente os critérios, diretrizes, princípios que norteiam e permitem a concretização dessa ideia de boa administração.[37] 

Como bem observado pelo jurista, o só fato de inexistir na legislação uma previsão textual e expressa acerca do direito à boa administração não engendra a conclusão de que ele não possui acento constitucional. São remansosas a doutrina e a jurisprudência no sentido de se admitir a existência de direitos fundamentais implícitos. O fato de se tratar de um direito implícito apenas faz com que se exija do intérprete a exegese de um ou mais dispositivos para que, desse processo cognitivo, se extraia a efetiva essência da norma. E norma não é, nem nunca foi sinônimo de enunciado normativo. Norma decorre dos sentidos construídos a partir da interpretação sistemática de textos normativos. Norma resulta do esforço hermenêutico empregado pelo intérprete.[38] Ainda, como leciona Canotilho:

O programa normativo-constitucional não se pode reduzir, de forma positivística, ao texto da Constituição. Há que densificar, em profundidade, as normas e princípios da constituição, alargando o bloco da constitucionalidade a princípios não escritos desde que reconduzíveis ao programa normativo-constitucional, como formas de densificação ou revelação específicas de princípios ou regras constitucionais positivamente plasmadas.[39]

Por fim, calha o registro que a União Europeia, em dezembro de 2000, quando da publicação da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, acabou por internalizar e positivar o direito fundamental à boa administração, no seu artigo 41º[40].

Nessa ordem de ideias, resulta tranquila a conclusão de que a moralidade administrativa, antes de se tratar de mero princípio orientador-interpretativo, cuida-se de um direito fundamental de todo o cidadão, imanente do direito à dignidade da pessoa humana e, portanto, serve de controle e paradigma para a interpretação constitucional.

E é justamente por servir de norte interpretativo e paralisante que obstaculiza, nas ações de improbidade administrativa, a aplicação retroativa da alteração legislativa que passou a prever prazo prescricional para o exercício da pretensão punitiva.

Sob o viés do direito sancionador, a prescrição está, inicialmente, atrelada à limitação do poder punitivo do Estado. Exige-se que a busca pela responsabilização do culpado se dê dentro de um prazo razoável sob pena de restar impossibilitada a aplicação da sanção. Há, portanto, um compromisso do Estado para a deflagração do processo dentro de um prazo condizente com os enunciados constitucionais. 

No tocante à prescrição intercorrente, o compromisso passa a ser com o tempo de vida do processo. Porque, a partir da EC n. 45/04, o legislador derivado inseriu na Constituição Federal o direito fundamental a duração razoável do processo (art. 5º, LXXVII, da CF). Ou seja, passou a se exigir que a prestação jurisdicional deva ocorrer dentro de um prazo adequado, de forma a se garantir Justiça, no seu sentido substantivo, evitando-se a perpetuação indevida de processos, o que acaba por desestabilizar a segurança jurídica das relações sociais. É o direito fundamental à razoável duração do processo, portanto, que fundamenta, em essência, aquilo que se denomina prescrição intercorrente.  

Ocorre que, ainda que se atribua à prescrição do ius puniendi status de direito fundamental, sua aplicação não autoriza que outros direitos de igual envergadura sejam simplesmente suplantados. É inerente à função do legislador realizar verdadeira ponderação de direitos e valores e buscar uma via que garanta a convivência harmônica entre eles. Entretanto, não foi o que fez o legislador no caso em comento, que previu (ainda que implicitamente) a aplicação retroativa do instituto da prescrição. Admitir tal importará na própria negação à tutela da moralidade administrativa porque, de uma ora para outra, algo que estava regularmente sendo tutelado por um legítimo e constitucional processo judicial restará interrompido pela liberalidade do Poder Legislativo.

Logo, tendo o Legislativo se esquivado do seu mister, cumprirá ao Poder Judiciário o papel de ponderar e solucionar o aparente conflito entre a tutela da moralidade administrativa e o princípio da retroatividade da lei mais benéfica, mediante a aplicação do princípio da proporcionalidade.

Contudo, ao fazê-lo, nos termos propostos no presente artigo, afere-se que a aplicação do princípio da retroatividade da lei mais benigna não pode se dar nos exatos termos em que ocorre no Direito Penal. Isso porque o princípio não se revela adequado à finalidade constitucional do Direito Administrativo Sancionador no tocante à tutela do direito fundamental à moralidade administrativa; a aplicação retroativa aos processos em tramitação não se mostra necessária para a proteção do sistema de direitos e garantias constitucionais conferidas ao réu no bojo da ação de improbidade; logo, negativas a duas primeiras etapas argumentativas, conclui-se para a necessária remodelação do alcance do princípio, modo a compatibilizá-lo com os preceitos do DAS enquanto instrumento da defesa do interesse público, mediante juízo de proporcionalidade em sentido estrito.

Assim, como a aplicação retroativa da prescrição ensejará a própria violação do direito fundamental à moralidade administrativa nas ações de improbidade, impõe-se que essa retroação se dê com temperamentos.

b) O princípio da proibição da proteção deficiente impede que alterações legislativas enfraqueçam a tutela dos direitos fundamentais.

Se nos primórdios do Estado de Direito bastava ao Estado, para a tutela de direitos e liberdades individuais, a adoção de uma postura negativa (garantismo negativo), a complexidade da dinâmica social, agravada pela disparidade socioeconômica e pela existência de poderes sociais que atuam no plano da realidade de forma desequilibrada[41], fez despertar a necessidade de uma mudança de postura. A realidade passou a exigir uma atuação proativa do Estado, seja para garantir o próprio exercício dos direitos e liberdades individuais, seja para albergar os novos direitos reconhecidos (de terceira dimensão). Assim, ao papel clássico do Estado (respeito às garantias individuais por abstenção) agregou-se uma atuação destinada a proteger e concretizar esses direitos, tendo por objetivo a promoção da igualdade social e a dignidade da pessoa humana em sentido amplo (garantismo positivo).

É aqui que reside o núcleo do princípio da proibição da proteção deficiente (üntermassverbot[42]): prevendo a Constituição Federal direitos fundamentais, é atribuição do Estado a adoção de postura tendente a concretizar esses direitos e colocá-los a salvo de investidas ilegítimas, seja de parte dos particulares ou do próprio Estado.

Segundo Virgílio Afonso da Silva, a regra da proporcionalidade, para além de assumir uma dimensão negativa (proibição do excesso), detém um viés positivo, denominado proibição da insuficiência, que tem por finalidade exigir do Estado uma postura dirigida à promoção e proteção dos direitos fundamentais. Nas suas palavras:

 

Conquanto a regra da proporcionalidade ainda seja predominantemente entendida como instrumento de controle contra excesso dos poderes estatais, cada vez mais vem ganhando importância a discussão sobre a sua utilização para finalidade oposta, isto é, como instrumento contra a omissão ou contra a ação insuficiente dos poderes estatais. Antes se falava apenas em Übermaßverbot, ou seja, proibição de excesso. Já há algum tempo fala-se também em Untermaßverbot, que poderia ser traduzido por proibição de insuficiência.[43]

Logo, quando o Estado opta por uma proteção insuficiente de um bem jurídico constitucionalmente tutelado, incorre em inconstitucionalidade por não resguardar, de forma eficaz, os direitos programaticamente previstos. Isso porque os direitos fundamentais, na condição de normas que incorporam determinados valores e decisões essenciais que caracterizam sua fundamentalidade, servem, na sua qualidade de normas de direito objetivo e independentemente de sua perspectiva subjetiva, como parâmetro para controle de constitucionalidade das leis e demais atos normativos estatais[44].

Reforçamos que há direitos que exigem uma postura ativa por parte do Estado no escopo de lhes garantir sua própria sobrevivência. Prestigiar os direitos fundamentais é dar concretude ao princípio da dignidade da pessoa humana. Por isso, é defeso ao Estado omitir-se desse mister. Assim, o princípio da proibição da proteção deficiente também alcança as condutas omissivas ou insuficientes do Estado à tutela desses direitos. Como acentua Ingo Wolfgang Sarlet:

O Estado - também na esfera penal - poderá frustrar o seu dever de proteção atuando de modo insuficiente (isto é, ficando aquém dos níveis mínimos de proteção constitucionalmente exigidos) ou mesmo deixando de atuar, hipótese por sua vez, vinculada (pelo menos em boa parte) à problemática das omissões inconstitucionais. É nesse sentido que como contraponto à assim designada proibição de excesso expressiva doutrina e inclusive jurisprudência têm admitido a existência daquilo que se convencionou batizar de proibição de insuficiência (no sentido de insuficiente implementação dos deveres de proteção do Estado e como tradução livre do alemão Untermassverbot). Neste sentido, o princípio da proibição de insuficiência atua como critério para aferição da violação de deveres estatais de proteção e dos correspondentes direitos à proteção.[45]

Em sentido muito semelhante, Alexandre Moreira Van Der Broocke conclui que

(...) o dever de proteção, já consagrado pela jurisprudência e pela doutrina em relação aos direitos fundamentais, deve ser levado em consideração, também, em relação aos demais direitos constitucionais, posto que não há espaço de discricionariedade para a atuação do legislador em relação à efetivação do direito previsto na Lei Maior. Ou seja, se existe previsão constitucional que respalde um direito qualquer, fundamental ou não, é imperativo que o Estado-Legislador desempenhe seu mister, conferindo-lhe o regramento normativo infraconstitucional que possibilite sua plena efetivação. Agindo de forma diversa, seja pela sua postura omissiva (untermassverbot) ou comissiva (übermassverbot), o legislador incide em antinomia inconstitucional.

Ao que parece, a corrente garantista se mostra mais condizente com os desafios que se colocam diante do Estado Democrático de Direito, uma vez que nela a Constituição da República se reveste de maior coercibilidade em relação não só ao Estado-Legislador, como também em face dos demais poderes. Sendo assim, partindo-se da premissa de que o dever de proteção (schutzpflicht) é condição de possibilidade da incidência da proibição da proteção deficiente (untermassverbot), e que, segundo o viés garantista, pode-se afirmar que o dever de proteção se estende para além dos direitos fundamentais, a proibição da proteção deficiente abrange os direitos constitucionais em geral.[46]

Logo, a proibição de proteção deficiente pode ser definida, segundo Carlos Bernal Pulido, como um critério estrutural para a determinação dos direitos fundamentais, a partir do qual poderá ser constatado se um ato estatal viola ou não um direito fundamental de proteção. Trata-se de compreender, assim, o duplo viés do princípio da proporcionalidade: de proteção positiva ou de proteção de omissões estatais. Em outras palavras, tem-se que a inconstitucionalidade pode advir de um ato excessivo do Estado, ou pode advir de uma proteção insuficiente de um direito fundamental por parte deste (e. g., quando o Estado abre mão de determinadas sanções cujo objetivo é a proteção de direitos fundamentais). Esta dupla face do princípio da proporcionalidade decorre da necessária vinculação de todos os atos do poder público à Constituição, e tem como consequência a redução do espaço de conformação do legislador[47].

Dos conceitos e definições fixadas, pode-se concluir pela existência de uma relação simbiótica entre o princípio da proibição da proteção deficiente e o ato de legislar. Ainda que caiba ao legislador, por excelência, o dever constitucional de estabelecer a forma como a proteção e promoção dos direitos fundamentais irá ocorrer (o que se dá, via de regra, por meio de leis), esse exercício terá que ser realizado dentro das balizas constitucionais, funcionando o princípio da proibição de proteção deficiente como um limite mínimo a ser atentado por aquele. Juarez Freitas equaciona bem a questão: Guardando parcial simetria com o princípio da proibição de excesso (Übermassverbotes), a medida implementada pelo Poder Público precisa se evidenciar não apenas conforme os fins almejados (Ziekonformität), mas, também, apta a realizá-los (Zwecktauglichkeit). Igualmente se mostra inadequada a insuficiência ou a omissão antijurídica causadora de danos.[48]

Aduza-se que sequer há cogitar de interferência indevida na atividade legislativa. O legislador, embora investido pelo povo, não goza de liberdade absoluta para o exercício do seu mister. Deve irrestrita atenção aos preceitos constitucionais no desenvolvimento de sua atividade, a qual, como já exaustivamente exarado, consiste na busca pela promoção e proteção dos direitos fundamentais.

Outrossim, é assente que a democracia não se expressa somente por meio do princípio majoritário, esse considerado a maioria necessária no Congresso Nacional para a aprovação de atos legislativos. A mesma Constituição Federal que garante o direito das maiorias põe a salvo, e em igualdade de relevância e importância, os direitos das minorais. E, havendo sobreposição indevida e/ou ilegítima de um sobre outro, é inerente à função do Poder Judiciário reequilibrar a balança, dando voz àqueles que a tiveram subtraída de forma irregular. Nesse sentido, é a ponderação realizada pelo Ministro Luís Roberto Barroso ao assentar que é da competência do Poder Judiciário promover os valores constitucionais, superando o déficit de legitimidade dos demais Poderes, quando seja o caso. Nas suas palavras:

O déficit democrático do Judiciário, decorrente da dificuldade contramajoritária, não é necessariamente maior que o do Legislativo, cuja composição pode estar afetada por disfunções diversas, dentre as quais o uso da máquina administrativa nas campanhas, o abuso do poder econômico, a manipulação dos meios de comunicação.

O papel do Judiciário, e, especialmente, das cortes constitucionais e supremos tribunais deve ser resguardar o processo democrático e promover os valores constitucionais, superando o déficit de legitimidade dos demais Poderes, quando seja o caso; sem, contudo, desqualificar sua própria atuação, exercendo preferências políticas de modo voluntarista em lugar de realizar os princípios constitucionais. Além disso, em países de tradição democrática menos enraizada, cabe ao tribunal constitucional funcionar como garantidor da estabilidade institucional, arbitrando conflitos entre Poderes ou entre estes e a sociedade civil. Estes os seus grandes papéis: resguardar os valores fundamentais e os procedimentos democráticos, assim como assegurar a estabilidade institucional.[49]

Por fim, calha o registro que a utilização do princípio da proibição da proteção deficiente não se trata de novidade no âmbito nacional. O Supremo Tribunal Federal, em diversas oportunidades, já fez uso expresso dessa ferramenta de controle de constitucionalidade para afastar/invalidar normas em descompasso com os preceitos da Carta Maior. Exemplificativamente, citamos o RE 418.376, as ADIs 3.510, 6.031 e 5.874, e o HC 104.410.

Nessa vereda, impõe-se a realização de um verdadeiro juízo de proporcionalidade para se averiguar se a produção de efeitos retroativos em dada relação jurídico-processual não importará na própria negação do DAS enquanto instrumento de tutela do direito fundamental à moralidade administrativa. E é justamente isso que ocorre quando se admite a aplicação retroativa da regra de prescrição, que culminará na absolvição sumária de acusados que, até então, tinham, contra si, um devido processo legal instaurado de forma legítima e em conformidade com os preceitos constitucionais.

Dessarte, considerando que a aplicação retroativa da prescrição encerrará uma proteção ineficiente do direito fundamental à moralidade administrativa, mostra-se necessário a adoção de uma interpretação conforme à Constituição para negar-lhe esse efeito.

c) O devido processo legal substantivo é uma via de mão dupla, não sendo direito apenas do réu, mas de ambas as partes do processo sua observância irrestrita.

Até o ingresso da nova lei no sistema jurídico, era induvidoso que a todos os réus que estavam respondendo por atos de improbidade era garantido um devido processo judicial substancial mediante a atenção das normas previstas na Lei n. 8.429/91, e, supletivamente, as disposições contidas no Código de Processo Civil, as quais previam, em resumo, uma fase preliminar antecedente ao recebimento da inicial e, após o recebimento, um procedimento comum ordinário, no qual era conferido ao réu amplo direito à defesa e ao contraditório.

Destacamos que, até a promulgação da Lei n. 14.230/21, não havia qualquer norma no ordenamento jurídico prevendo determinado prazo para o processamento da ação judicial que versava sobre improbidade administrativa. Ao contrário: a jurisprudência uniforme do Superior Tribunal de Justiça (STJ) era no sentido de inadmitir a aplicação do instituto da prescrição intercorrente nessas ações[50]. Portanto, sequer há cogitar de paralisações ou mora processual indevida até o advento da Lei n. 14.230/21.

Por conta disso, não há como se admitir que, por meio de uma simples alteração legislativa, sem status constitucional, seja conferido aos réus que respondem por atos de improbidade um indulto legislativo amplo e geral, do qual resultará na imediata e abrupta absolvição deles, em absoluto desrespeito ao devido processo legal substantivo.

Aduza-se que a irrestrita observância do processo substancial é direito de todos os atores do processo e não apenas daquele que se encontra no polo passivo. A ambos, autor e réu, há de ser conferido o devido processo legal substantivo, viabilizando que atuem de forma ampla na defesa de suas pretensões e no exercício do contraditório, o que oportunizará a contribuição concreta na formação do convencimento motivado do juiz. É nisso que consiste a substantivação do direito fundamental ao devido processo legal.

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