Sabemos que o patrimônio da pessoa jurídica, retratado nas demonstrações contábeis ou financeiras, é formado por diversos tipos de relações jurídicas, as quais, foram estabelecidas para o desenvolvimento de uma determinada atividade econômica. Sabemos também que, na verdade, tais relações, são contratos celebrados com os sócios (contrato social), com os colaboradores (contrato de trabalho), com os financiadores (contrato de financiamento), com os fornecedores (contratos de compra e venda), etc. É comum, contudo, nestas relações jurídicas, surgirem vários conflitos, por exemplo, conflito de agência (proprietário x administrador), conflito entre acionistas majoritários e acionistas minoritários e, também, conflitos com empregados, fornecedores, clientes, financiadores, governos e até mesmo a comunidade. São questões civis, tributárias, societárias, comerciais e etc, tendo como pano de fundo a ciência contábil.
Tais conflitos, chegando no judiciário, o Direito tende a ser aplicado com a utilização de conceitos e princípios das ciências jurídicas e não com os conceitos e princípios próprios das ciências contábeis, uma ciência, pré-jurídica. Quero dizer, entender o alcance dos postulados e conceitos contábeis no seio da juridicidade, irá certamente evitar que as questões meramente linguísticas e também filosóficas e dogmáticas das ciências contábeis, acabem por produzir, pelos juristas, interpretações tão diversas quanto equivocadas.
Claro deve estar que, quando o Direito utiliza conceito ou princípio das ciências pré-jurídicas, como é o caso das ciências contábeis, econômicas, administrativas, é fundamental observar se houve uma deformação ou uma transfiguração daqueles conceitos ou princípios, isto porque, não é incomum, juristas cometerem o erro de aceitar e utilizar empiricamente os conceitos daquelas ciências pré-jurídicas sem o cuidado de identificar o novo e diferente significado de que elas passam a se revestir, no momento em que entram no mundo jurídico.[1] Resumindo: a linguagem contábil precisa ser entendida à luz dos dogmas e doutrina da ciência contábil mesmo em leis tão diferentes, como por exemplo, as civis, tributárias e societárias.
Os processos de escrituração e classificação, são resultantes e próprios dos atos e transações econômicas ocorridas e produzem os relatórios da Contabilidade (demonstrações contábeis ou financeiras), os quais, por sua vez, permitem identificar, medir e comunicar as informações de natureza financeira e econômica.
Sabemos que fundamento econômico é todo evento capaz de mudar o Patrimônio Líquido, ou em quantidade, ou em qualidade (liquidez) e assim, se um item, candidato a ser contabilizado, não tem o poder de mudar o tamanho ou a natureza do patrimônio líquido, não merece ser contabilizado. O atual ordenamento contábil extirpou, no Brasil, uma expressão muito usada no mundo das finanças, economia, direito e contabilidade: meramente para fins contábeis.
O conjunto de postulados, princípios e convenções relacionados ao registro, controle, mensuração e informação sobre o patrimônio dos entes formam o que podemos chamar de doutrina contábil e são os pilares da teoria contábil. Todavia, há claramente duas correntes na ciência contábil: A corrente patrimonialista justificada no direito patrimonial code law ou civil law direito romano e a corrente voltada para a gestão empresarial preocupa-se mais com a tomada de decisão common law direito consuetudinário.
O Brasil aderiu às normas internacionais e uma parte dessas normas foi reconhecida basicamente por leis societárias, mas há fenômenos contábeis, em várias outras áreas do direito.
Como fazer um juiz interpretar que um contrato de aluguel (a forma jurídica), pode ser, um financiamento (a essência econômica)? A prática da melhor gestão empresarial obriga o contador a admitir a absoluta prevalência da essência econômica do ato contabilizável sobre a sua mera forma jurídica. Na área fiscal, o problema é maior ainda, posto que, as regras no direito tributário diferem das regras do direito societário. Daí, muitos administradores, quando precisam decidir entre adotar conceitos societários ou tributários, optam maciçamente por privilegiar as questões fiscais apenas por temer possíveis autuações. Entre outras questões, podemos citar as depreciações, as provisões, os estoques de produtos acabados valorizados por estimativas, perdas na realização de ativos, o reconhecimento de valor justo para ativos e passivos, o reconhecimento da receita e tantas outras.
Não há sentido em termos vários direitos agindo e interpretando uma única ciência contábil. É preciso, e é urgente, haver um Direito Contábil.
[1] Limites dos Conceitos Contábeis no Fato Gerador do Imposto de Renda, Julho de 2015 Em livro: Controvérsias Jurídico-Contábeis (Aproximações e Distanciamentos) 6o. Volume (pp.71-90) Edição: 1. Ed. Editora: Dialética Editores: Roberto Quiroga Mosquera / Alexsandro Broedel. Autor: Antonio Lopo Martinez