As várias dimensões do processo administrativo brasileiro

Sustainable bidding: Challenges for their respective implementation in public administration

15/12/2021 às 10:44
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1. INTRODUÇÃO

Quando menos desde 1999, com a edição da Lei 9.784 (Regula o processo administrativo no âmbito da Administração Pública Federal), o processo administrativo brasileiro passou a assumir a dignidade que merece. A partir de então, instalou-se a positivação da relação processual administrativa como espécie de relação jurídica de direito público, definidora de certa gama de direitos e deveres públicos entre os cidadãos e a Administração Pública. O que permite a compreensão autônoma do regime jurídico desta espécie de vínculo posto entre o Estado e os cidadãos: não mais se trata de mero adjetivo à relação de direito material, nem tampouco de singelo procedimento (um rito a ser cumprido). Nos dias presentes, o processo administrativo é muito mais do que o representado por tais visões acanhadas do fenômeno: é um direito-garantia fundamental, com foro constitucional.

Mas se trata de um direito-garantia cuja evolução histórica revela a existência de várias ordens de processos administrativos (tal como se dá quanto aos demais direitos fundamentais). Por meio da correlação entre as dimensões, ou gerações, dos direitos fundamentais e os respectivos processos que os garantem, este breve ensaio pretende propor uma tipologia dos processos administrativos no Direito brasileiro, com especial enfoque na visão do processo como relação jurídica diferenciada.

2. A TIPOLOGIA DOS PROCESSOS ADMINISTRATIVOS

O estudo do processo administrativo, e respectiva tipologia, demanda a fixação de um par de premissas cognitivas quanto ao que se pode entender por "espécies de processo administrativo". Isso devido a vários motivos, dentre eles o fato de que, até pouco tempo atrás, nem sequer se cogitava da existência de uma situação jurídica que pudesse ser denominada de "processo administrativo" (falava-se em "mero procedimento", ou expressões equivalentes, a depauperar a realidade jurídica em jogo) (MOREIRA, 2012).

Por outro lado, é nítido que, ao se estudar o processo e as suas espécies, se está a tratar de realidades diferentes entre si, unidas normativamente devido às suas propriedades comuns. Como a lógica nos ensina, o que a evolução das normas fez foi o estabelecimento de uma definição conotativa, por gênero e diferença (per genus et differentia). As espécies (ou subclasses) de processos fazem parte de um gênero (ou classe) de relação jurídico-administrativa, a processual. O processo é, portanto, uma das espécies de relação jurídica posta entre a Administração e as pessoas privadas, que, ao seu tempo, admite as respectivas subespécies (MOREIRA, 2012).

São feixes normativos diversos (material e processual), a instruir a compreensão de cada uma dessas realidades jurídicas. Ou seja, da mesma forma que os sujeitos de direito mantêm relações jurídico-materiais entre si, sejam pessoas públicas ou privadas (por exemplo, contratos privados e/ou administrativos; relações de trabalho regidas pela CLT e pelos regimes estatutários), vínculos estes que podem ser espontâneos ou injuntivos (por exemplo, doações vs. tributos), eles igualmente desenvolvem relações jurídico-processuais, as quais, no caso do processo administrativo, se caracterizam pela presença do Estado em um de seus polos. Isto é, o Estado-Administração a integrar a relação jurídica processual, também na condição de parte.

Com efeito, muito embora a relação administrativa processual seja uma espécie em comparação ao gênero "relação jurídica", ela configura um gênero em consideração às diversas subespécies de processo administrativo. Logo, tão equivocado quanto à compreensão de que haveria um só processo é a ideia de que as "espécies" de processo administrativo nada teriam em comum (ou que porventura seria antagônicas) (TESSEROLLI, 2018).

Ora, todas estas classes e subclasses de relações jurídicas envolvem direitos e deveres (materiais e/ou processuais), os quais precisam ser compreendidos segundo o respectivo tipo, ou dimensão ou geração, a instalar as correspondentes relações jurídico-materiais e relações jurídico-processuais postas entre as autoridades administrativas e as pessoas privadas (MOREIRA, 2012).

Isto é, não foi apenas o direito material que evolui e passou a abranger novas dimensões de direitos fundamentais. O direito processual não ficou parado no tempo, mas também se adaptou aos desafios e instalou as correspondentes dimensões ampliativas de direitos fundamentais processuais. Os órgãos e entidades da Administração Pública brasileira (art. 11, Lei 9.784/1999) detêm competência para instalar relações jurídicas com as pessoas privadas e nestas mesmas relações praticar atos administrativos materiais e processuais (os quais podem, inclusive, resultar na aplicação de sanções administrativas).

A depender do caso concreto, a Administração Pública praticará atos ampliativos de direitos ou aqueles pertinentes ao Direito Administrativo Sancionador (as sanções oriundas dos respectivos ilícitos administrativos praticados por sujeitos privados) ou mesmo vinculados ao Direito Administrativo da Ordenação Social (as limitações e/ou homologações de atos privados lícitos). Mas serão sempre atos administrativos, com efeitos imediatos nas pessoas privadas, a impactar nas respectivas liberdades constitucionais. A atividade administrativa do Estado, portanto, instala relações jurídico-administrativas formais (materiais e processuais) com outros sujeitos de direito, regidas pela Constituição brasileira e respectiva legislação infraconstitucional, sobremodo a Lei 9.784/1999.

3. A RELAÇÃO ADMINISTRATIVA E OS DIREITOS FUNDAMENTAIS (MATERIAIS E PROCESSUAIS)

A Administração Pública e as pessoas privadas vinculam-se por meio de relações jurídicas (materiais e processuais). Contudo, nem todas as relações postas entre a Administração e as pessoas privadas possuem a mesma racionalidade, pois desenvolvidas em contextos diversos e sob premissas absolutamente distintas. Tal como as gerações, ou dimensões, dos direitos fundamentais materiais, também os direitos fundamentais processuais (devido processo legal, ampla defesa e contraditório) e a relação jurídica por eles disciplinada experimentaram evolução ao longo do tempo (NOVAIS, 2003).

Ou seja, é evidente que aos direitos materiais de primeira dimensão (direitos negativos, positivos e ativos) correspondia uma espécie de processo administrativo (e respectivos direitos processuais), enquanto que, v.g., aos direitos materiais de terceira dimensão (direito à participação) corresponde outra tipologia processual, com a respectiva ampliação e acumulação de direitos fundamentais. Isso implica dizer que os direitos fundamentais materiais e processuais devem sempre ser compreendidos numa perspectiva ampliativa, integradora e contextualizada. Por isso também se torna interessante falar em gerações de direitos fundamentais quando menos para deixar marcado o historicismo de tal classificação (e sem que isso pretenda defender a simplista e equivocada "sucessão/substituição" de uma geração pela seguinte: todas convivem, potencializando-se reciprocamente) (NOVAIS, 2003).

Desta forma, seria por demais ingênuo, senão equivocado, pretender compreender o(s) processo(s) administrativo(s) dos dias de hoje valendo-se apenas da perspectiva do Direito Administrativo do final do século XVIII até o início do século XX, o que implicaria visão anacrônica do que se passa nos nossos dias: o Direito do passado a insistir em se fazer presente. Basta que sejam brevemente rememorados alguns momentos da História do Direito Administrativo para que se possa confirmar a tese (MOREIRA, 2014).

O Direito Administrativo surgiu depois das Revoluções burguesas do século XVIII (máxime em França), como aquela classe de normas jurídicas destinada a reger a atividade administrativa do Estado, a qual se daria precipuamente mediante atos, concebidos como provimentos unilaterais praticados pela Administração para dar execução às leis ("manifestações de vontade administrativa", para os mais afeitos às premissas de Direito Privado) (MOREIRA, 2014).

Igualmente a respeito da origem do Direito Administrativo, merece ser destacada outra de suas peculiaridades: até pouco tempo atrás, ele era sobremaneira um direito não codificado. Por mais incrível que isso possa parecer frente ao sistema jurídico romano-germânico da Europa continental (que tanto influenciou o sistema brasileiro), o qual se caracterizou pelas grandes codificações e respectiva veneração ao direito escrito, o Direito Administrativo foi criado e construído pelos tribunais administrativos. Havia a Constituição e algumas poucas leis gerais, não sistematizadas nem codificadas, além de esparsos atos concretos. Não se cogitava de um "Código Administrativo" nem mesmo em França e muito menos no Brasil (como se deu no Direito Privado, com o Código Comercial, de 1850, e o Código Civil, de 1916) (MOREIRA, 2010).

Assim, os principais institutos de Direito Administrativo e os seus mais relevantes conceitos não foram criados pelo legislador, mas sim pelo administrador, mais especificamente pelo Conselho de Estado francês (um órgão da Administração Pública), que julgava os recursos administrativos. O significado do princípio da legalidade era construído caso a caso pelos administradores públicos com assento no Conselho de Estado e, posteriormente, sistematizado: remedies precede rights, como se o modelo normativo inglês houvesse atravessado o Canal da Mancha.

Mas talvez o mais importante para a compreensão da evolução histórica do processo administrativo resida na seguinte constatação: no alvorecer do Direito Administrativo, se o ato pudesse causar gravame à pessoa privada, ela possuía legitimidade para, na singela condição de interessado (mero colaborador da legalidade e não como sujeito de direito), interpor recurso para ser submetido ao Conselho de Estado, o qual procedia ao controle objetivo do ato posto a exame, sem qualquer participação do indivíduo recorrente (e muito menos a cogitação a propósito de seus direitos, que simplesmente não existiam frente à Administração Pública).

Não foi por obra do acaso que se tornou célebre o substantivo "administrado" para designar o indivíduo que se relacionava com a Administração Pública: esta, o sujeito soberano da relação; aquele o seu objeto (que se submetia a ser passivamente administrado pelo Estado).

Por isso que, nos séculos XVIII, XIX e parte do XX, toda a jurisdição administrativa europeia e parte da jurisdição brasileira dizia respeito ao controle objetivo dos atos administrativos. Afinal, quando do nascimento, desenvolvimento e consolidação do Direito Administrativo, o indivíduo não era tido como sujeito de direito frente à Administração Pública. Como não era sujeito, não poderia ter direitos subjetivos muito menos aqueles de ordem processual, em especial se o assunto versasse sobre o exercício do antigamente assim denominado poder de polícia do Estado (GORDILLO, 2003).

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A pessoa privada, portanto, não detinha legitimidade subjetiva, processual ou material, frente à Administração, mas apenas se lhe reconhecia a legitimidade objetiva para auxiliar as autoridades administrativas em sua atividade superior, de interesse público. Algumas expressões, típica dessa época, revelam o tom conferido ao Direito Administrativo: "razões de Estado"; ius imprerium; "ordem pública" etc.

Assim se pode compreender porque há quem apelide o Estado Liberal oitocentista, nascido do Direito Administrativo, como Estado de Polícia ou Estado Gendarme. Constatação que traz consigo o dever de seccionar os respectivos Direitos Administrativos: não se afigura consistente o estudo do Direito Administrativo brasileiro contemporâneo com lastro na doutrina francesa do alvorecer do século XX, por mais célebre e valiosa que ela possa ser, está deslocada no tempo e no espaço. Seria como se pretender manusear a Física quântica com lastro nas Leis de Newton: não dá certo.

Estas características inaugurais do Direito Administrativo permitem, desde logo, alinhar duas conclusões, as quais representam o Direito Administrativo diante do espelho do tempo. Ambas são significativamente importantes para a construção, que se pretende democrática e humanista, do processo administrativo brasileiro, que não pode e não deve ser um Direito Processual despido de direitos subjetivos.

Em primeiro lugar, fácil é constatar quão excludente e restritiva era no passado a visão da relação jurídica posta entre Administração Pública e pessoas privadas (tanto no que respeita a direitos materiais como a direitos processuais). Em termos relativos ao que hoje se dá, esperava-se pouco do Estado-Administração, pois os seus deveres eram de pequena dimensão, modulados por só vetor: o da aplicação formal e unilateral da lei, sem qualquer participação das pessoas a ser afetadas pelo ato. Tudo girava em torno do controle objetivo do ato administrativo.

Pode-se afirmar, portanto, que o princípio da legalidade do assim denominado Estado Liberal era de muito mais simples cognição, pois portador de desafios de menor intensidade. A complexidade se inicia ao final do "longo século XIX", justo ao alvorecer do "breve século XX", e se intensifica ao início deste século XXI. Hoje, os desafios são bem mais intensos e plurifacetados, retrato da civilização pluralista e democrática em que vivemos. A Administração do ato persiste a ocupar largo espaço na experiência administrativa, mas com outras tonalidades: a participação popular na sua elaboração (e não só no controle); a dignidade da pessoa e seus direitos subjetivos; a transparência e publicidade como regra; os direitos difusos e coletivos; os direitos fundamentais como trunfos das minorias etc (TESSEROLLI, 2018).

Por outro lado, a segunda conclusão que desde logo se põe é a de que o Direito Administrativo contemporâneo é significativamente diverso daquele do Estado Liberal, e mesmo daquele do início do Estado Social. Não se pode examinar a relação posta entre pessoas privadas e a Administração Pública tal como se o Direito Administrativo oitocentista estivesse a reger o mundo (dos fatos e do Direito). Tampouco se pode compreender o processo administrativo como se direitos de segunda, terceira e quarta dimensões não existissem e como se a pessoa privada fosse somente mero auxiliar da Administração, um paradoxal "sujeito sem direitos subjetivos". Não se pode interpretar a Lei 9.784/1999 como se inserida num Estado de Polícia, a excluir, ou desprezar, tanto faz, a dignidade das pessoas privadas e, assim, descartar a efetiva participação delas na formação dos atos administrativos (TESSEROLLI, 2018).

A realidade é outra, iluminada por um Estado que se pretende democrático de Direito e que, além de celebrar as liberdades como direitos declarados constitucionalmente, reconhece e garante a dignidade, tanto material quanto processual, das pessoas privadas. Isto significa sustentar que, na mesma medida em que se reconhece às pessoas privadas direitos materiais de várias dimensões e características, o mesmo se dá quanto aos direitos subjetivos processuais.

4. AS VÁRIAS DIMENSÕES DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS E PROCESSOS ADMINISTRATIVOS

Daí a constatação de que o Direito Administrativo dos dias de hoje não se confunde, e nem pode ser confundido, com o modelo clássico do século XIX e meados do século XX. Em verdade, ele tem origem em mutações, humanistas e democráticas, que incidiram sobre o modelo original e nele instalaram novas constatações e concepções. Alguns dos institutos tradicionais de Direito Administrativo foram objeto de transformação ao longo do tempo, não mais refletindo a sua natureza originária.

A seguir, examinar-se-á, de forma breve, mas cuidadosa, a mutação que acompanha o processo administrativo e o que isso pode implicar para a compreensão da Lei 9.784/1999. O ponto de partida está em que o processo administrativo surgiu como algo secundário, num tempo e lugar em que o sujeito privado era um objeto (o "administrado" como sucessor do "súdito"), singelo auxiliar ou colaborador da Administração Pública. Afinal de contas, reitere-se quando e onde nasceu o Direito Administrativo: no Estado burguês dos séculos XVIII e XIX, pós-Revolução Francesa. Prevalecia a concepção liberal e policialesca de Estado, em que as esferas pública e privada eram segmentadas, autoexcludentes e não participativas. De um lado estava a sociedade civil e o domínio econômico (liberdade de contratar, autonomia decisória, responsabilização); do outro, o Estado e o interesse público (princípio da legalidade e poder de polícia) (MOREIRA, 2014).

O Estado de então era o monopolista do interesse público, um public interest maker, não um public interest taker. Nesse contexto, ele se manifestava precipuamente nos atos administrativos (imperativos, com presunção de legitimidade e que não precisavam contar com qualquer participação daqueles que seriam por eles futuramente afetados). As leis que havia representavam os interesses dos empresários, comerciantes e proprietários, a configurar o Estado monoclasse, no qual apenas os burgueses votavam e poderia ser votado. Um só interesse representado, um só direito legislado, ambos a se exteriorizar administrativamente por meio de um só fenômeno: o ato administrativo (TESSEROLLI, 2018).

Com o passar do tempo, o ato se consolidou como a figura central do Direito Administrativo. Este girava em torno do ato concreto (a execução pontual da lei) e do ato regulamentar (a execução geral da lei). Nas duas hipóteses, prevalecia a Administração unilateral. Caso dessa intervenção resultasse danos ou agressões, aos indivíduos dava-se a oportunidade de defesa a posteriori do ato praticado, não como sujeito de direito, mas sim na condição de colaborador do sistema de controle objetivo. Poderia ele, a depender do caso, interpor recurso administrativo e instalar o controle do ato: meramente analítico, seco, sem gosto e sem cores. O que havia era um Direito Administrativo sem direitos subjetivos.

Demais disso, não era dada aos indivíduos a possibilidade de participar da formação do ato, que era interna corporis. Não havia publicidade do que se fazia dentro da Administração (decisões, provas etc.). Os particulares só tomavam conhecimento do ato depois de ele já ter sido editado, no exato momento de sua incidência. Prevalecia, portanto, a concepção unilateral e impositiva da atuação administrativa do Estado.

Nesse cenário, fácil é a constatação de que o processo a relação jurídica dinâmica, de Direito Público, que se põe entre o Estado e as pessoas privadas era algo secundário (ou mesmo inexistente: afinal, se não havia direitos subjetivos materiais, o que dizer dos direitos processuais?). Não é à toa, aliás, que se o denominava de "procedimento" ou de "direito adjetivo". O processo administrativo seguia como acessório ao ato, limitando-se a tentar garantir a restauração da legalidade (tal como compreendida unilateralmente pela Administração).

Pois o mesmo se deu no Brasil: aqui, até pouco tempo atrás, o processo administrativo era "procedimento" acompanhado pelo adjetivo que qualificava a conduta do órgão público que praticou o ato agressivo questionado: fiscal, disciplinar, interventivo, expropriatório... e assim por diante. A Administração agia e o particular defendia-se através do processo, de modo extremamente limitado e não participativo. Compreensão típica daquele Estado que se pretende liberal (omisso, mas limitado objetivamente pelas pessoas privadas) e, por conseguinte, submetido apenas ao controle negativo de seus atos (PINHEIRO, 2018).

Porém, isso persiste? O atual Direito Administrativo brasileiro pode albergar apenas tais características? O processo administrativo permanece a ter só e somente essa configuração? Podem ser desenvolvidos processos administrativos válidos segundo essa racionalidade oitocentista? Evidentemente que não! Na atualidade isso não mais pode ocorrer. Nem o ato administrativo goza da mesma centralidade de outrora, nem o processo administrativo continua no papel de coadjuvante da atuação administrativa e, muito menos, a pessoa privada com o status de mero colaborador.

O Direito Administrativo mudou, sobremodo a partir de 1988, com a promulgação da Constituição brasileira. A questão que se coloca, portanto, é a de se saber como houve essa alteração de papéis e em que medida ela se deu. Tal mutação é mais fácil de ser observada por meio do exame da natureza e regime jurídicos dos processos administrativos contemporâneos, todos eles respeitosos dos direitos subjetivos públicos titularizados pelas pessoas privadas em suas relações com os órgãos e entidades da Administração Pública (MOREIRA, 2010). Direitos esses existentes em relações materiais e processuais instaladas entre a Administração Pública e os sujeitos de direito.

Ou melhor e grosso modo, a transformação democrática se torna nítida quando se leva em conta que, de fato, há três espécies de processos administrativos na atualidade, bem como a natureza de direitos fundamentais a que se referem e o que possuem em comum. Isto é, a classe "relação jurídico-processual" atualmente possui três subclasses, unidas por características comuns que serão mais abaixo descritas.

A primeira espécie envolve aqueles processos nos quais o particular defende os seus direitos subjetivos, com a pretensão de limitar a atividade administrativa do Estado. Vendo-se diante de uma agressão unilateral aos seus direitos, a pessoa recorre ao processo como medida de salvaguarda. É o tipo tradicional, em que a Administração o instala, a pedido da parte interessada ou ex officio (e notifica a pessoa que será afetada, para que apresente defesa ou arque com as consequências do ato).

O ato administrativo, presente ou futuro, real ou potencial, sofre controle negativo (em seu processo de produção e quanto ao seu conteúdo), pois o indivíduo pretende garantir o exercício de suas liberdades constitucionais. Estão em jogo os direitos de primeira geração, os quais dizem respeito a direitos e liberdades fundamentais, declarados expressa e implicitamente na Constituição do Brasil (arts. 5.º, 7.º, 150, 170, 225 etc.). Logo, o sujeito opõe o seu direito subjetivo público ao agir do Estado, impedindo que a sua liberdade seja indevidamente restringida. Por isso, a legitimidade para atuar no processo é somente da pessoa que, mesmo em tese, poderá sofrer o prejuízo decorrente da ação estatal (TESSEROLLI, 2018).

Nesta primeira dimensão o direito ao processo visa a evitar um dano subjetivo, suprimindo a privação ou a agressão a direito fundamental de primeira dimensão (propriedade e liberdades). A segunda espécie de processo administrativo é relativa às situações em que o indivíduo pretende obter o reconhecimento de seus direitos ou interesses pela Administração Pública, numa perspectiva ampliativa. O particular pleiteia a instalação do processo e pede que a Administração profira decisão que o beneficie individualmente (ou a toda a coletividade).

Não há litígio nem acusação, nem tampouco preexistem investidas públicas contra a liberdade e/ou propriedade. A perspectiva da pessoa privada é ampliativa em relação ao Estado-Administração. O processo visa sim a criar determinada vantagem pública ou privada, de modo que não se cogita de conflitos propriamente ditos. O mesmo pode ser dar naqueles casos da existência de determinadas condições ao exercício de direitos subjetivos (o Ordenamento Jurídico reconhece o direito subjetivo, mas condiciona a eficácia de seu exercício, podendo, se for o caso, limitá-lo). A legitimidade é daquele que detém ou um direito subjetivo ou um interesse legítimo. Exemplos desses processos são os que visam à tutela de benefícios previdenciários ou de temas urbanísticos e ambientais (MELLO, 2007).

Por meio do direito ao processo administrativo o particular busca o cumprimento de direitos fundamentais de segunda e terceira dimensões (o exercício de liberdades ou o cumprimento a direito prestacional que prestigie os valores constitucionais, seja individual, seja coletivo). Quando muito, o ato final não implicará a aplicação de quaisquer sanções (afinal, não se está diante de ilicitudes), mas sim o exercício das limitações administrativas às liberdades privadas: o Direito Administrativo Ordenador, na dicção de Carlos Ari Sundfeld (TESSEROLLI, 2018).

Já a terceira espécie de processo administrativo relaciona-se àqueles nos quais a Administração e o particular colaboram na elaboração normativa. A Administração é responsável pela instalação do processo, de ofício ou a pedido dos interessados, como requisito de validade ao futuro ato regulamentar a ser editado. Mas, quando o faz, pede a colaboração das pessoas privadas (pois muitas vezes deve instalar essa participação cooperativa). Os indivíduos interagem não só na busca de benefícios privados, mas também com vistas a vantagens coletivas e/ou difusas (como se administradores públicos fossem).

Nesta terceira dimensão de direitos processuais, por meio do processo administrativo o particular busca o cumprimento de direito fundamental de terceira e/ou quarta dimensão (informação, democracia e pluralismo democrático na formação das decisões públicas). Diante disso, a legitimidade é plural, de todos os cidadãos, de todas as pessoas pouco importa se futuramente afetados ou não pela norma regulamentar a ser editada. Há várias ordens de direitos em jogo: individuais, coletivos e difusos (MOREIRA, 2009).

O exemplo típico é o processo normativo no âmbito das agências reguladoras as consultas públicas como requisito para a emanação de resoluções, bem como os processos de audiência pública para licitações (Lei 8.666/1993, art. 39) e as consultas públicas nos processos administrativos de interesse geral (Lei 9.784/1999, art. 31). A Administração Pública emana normas administrativas gerais e abstratas para regular alguns setores essenciais da economia, bem como celebra contratos de elevado valor e cuida de processos que podem despertar o interesse coletivo. Nestes casos, a atividade por si desenvolvida deve contar com a participação (e também com o controle) social.

Desta forma e na mesma medida em que há várias espécies de direitos subjetivos públicos materiais de configuração/estrutura diferenciadas, igualmente isso se dá quanto aos direitos subjetivos públicos processuais. Em decorrência, há relações jurídicas materiais que concretizam/efetivam direitos fundamentais de primeira, segunda, terceira e quarta dimensões; da mesma forma que as várias ordens de relações jurídicas processuais o fazem com direitos fundamentais do processo.

5. CONCLUSÃO

O processo administrativo como direitogarantia à participação: Esta sucinta descrição da tipologia dos processos administrativos brasileiros presta-se a alinhavar a conclusão deste breve ensaio. Isso porque a atual natureza jurídica do processo administrativo e o regime dessa relação jurídica posta entre sujeitos de direito não está em ser compreendido como meio de impedir ataques a direitos individuais, nem como forma de obter benefícios e, muito menos, como instrumento de produção normativa. Não é só isso. Estes aspectos são sim muito importantes e merecem prestígio, mas revelam somente a superfície da relação jurídico-processual.

O que há de essencial no processo administrativo contemporâneo, comum às três espécies antes expostas, é a necessidade da efetiva participação dos sujeitos de direito na formação dos atos estatais. Pouco importa quem eles sejam ou quais direitos ou interesses articulem, pois o que a legislação põe em relevo é o dever público de bem informar e respeitar a dignidade da participação privada diretamente na formação da vontade estatal. Outrora caracterizados como unilaterais e impositivos, os atos administrativos, hoje, precisam ser consensuais, obtidos mediante cooperação público-privada. A antiga regra da produção interna corporis tornou-se exceção. Já não mais existe aquela clivagem do liberalismo oitocentista, que separava brutalmente o interesse público dos interesses privados.

Quando menos, desde outubro de 1988, o sistema jurídico-administrativo brasileiro estrutura-se a partir dos direitos fundamentais e da democracia (não mais, como foi outrora, a partir do poder do Estado-Administração). Direitos estes que incluem a efetiva participação na formação dos atos administrativos, máxime daqueles que porventura possam cercear liberdades declaradas na Constituição. Por esse motivo existem processos administrativos, como instrumento de garantia dos direitos fundamentais dos sujeitos frente à Administração Pública, e como instaladores de direitos subjetivos públicos processuais de diversas configurações.

Assim, o processo não é mais o mesmo, que se conhecia nos idos do século retrasado, nem mesmo aquele que se estudava há 50 ou 30 anos. Não é apenas uma garantia, um meio de assegurar os direitos fundamentais declarados, mas é também um direito ou, mais propriamente, um direito-garantia à efetiva participação das pessoas privadas na formação dos atos administrativos.

6. REFERÊNCIAS

ALLAND, Denis (org.); RIALS, Stéphane (org.); BENEDETTI, Ivone Castilho (trad.). Dicionário da Cultura Jurídica. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2012.

ALEJANDRO NIETO. Derecho administrativo sancionador. 3. ed., Madri, Tecnos, 2002, p. 165-177.

GORDILLO, Augustín. Tratado de derecho administrativo. 7. ed., Buenos Aires/Belo Horizonte, Del Rey/Fundación de Derecho Administrativo, 2003, t. 1, p. II-1.

BRASIL. Lei nº 9.784, de 29 de janeiro de 1999. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9784.htm. Acesso em: 03 nov. 2021.

_______. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 03 nov. 2021.

LOBO, José María Quirós. Principios de derecho sancionador. Granada, Comares, 1996, p. 25-28.

MELLO, Rafael Munhoz de. Princípios constitucionais de processo administrativo sancionador. São Paulo, Malheiros, 2007, p. 104-108 e 218-254.

 

MOREIRA, Egon Bockmann. Processo administrativo: princípios constitucionais e a Lei 9.784/1999. 4. ed., São Paulo, Malheiros, p. 70-75; Agências administrativas, contratos de serviço público e mutabilidade regulatória, RDPE 25/101-117, Belo Horizonte, Fórum, jan.-mar. 2008; O princípio da legalidade, a lei e o direito, in T. Marrara (org.), Princípios de direito administrativo, São Paulo, Atlas, 2012, p. 45-61.

_______. Direito das concessões de serviço público: inteligência da Lei 8.987/1995 (parte geral), São Paulo, Malheiros, 2010, em especial nas p. 285-298.

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NOVAIS, Jorge Reis. As restrições aos direitos fundamentais não expressamente autorizadas pela Constituição. Coimbra, Coimbra Ed., 2003, p. 126-133.

PINHEIRO, Rodrigo Silva. Controle judicial no direito regulatório estatal: uma análise do caso da fosfoetanolamina sintética e a observação dos critérios de deferência. UFRJ. Rio de Janeiro. 2018. Disponível em: https://pantheon.ufrj.br/bitstream/11422/6136/1/RSPinheiro.pdf. Acesso em: 27 nov. 2021.

SUNDFELD, Carlos Ari. Direito administrativo ordenador. 1. ed., 3. tir., São Paulo, Malheiros, 2003.

TESSEROLLI, Eduardo Ramos Caron. O Processo Administrativo como Mecanismo de Consensualidade. UNINTER. 2018. Disponível em: https://www.uninter.com/mestrado/wp-content/uploads/2020/05/EDUARDO-RAMOS-CARON-TESSEROLLI.pdf. Acesso em: 22 nov. 2021.

Sobre o autor
Matheus Henrique Silva

Sou bacharel em Direito com aprovação no exame de Ordem (EOU XXXII), todavia, em razão da minha atual função, ainda não realizei minha inscrição perante os quadros da Ordem dos Advogados do Brasil. Atualmente exerço a função de assistente (assessor) de Juiz de Direito lotado em Vara Cível e Fazendas Públicas, local no qual também fui estagiário por dois anos. No período trabalhado, adquiri grande experiência em Processo Civil, em Direito Público (com ênfase em processos executivos e judicialização da saúde) e em litígios privados.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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