Privatização de presídios: um embate entre a indelegabilidade do poder de polícia e o interesse do administrador estatal

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21/12/2021 às 10:26
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adores, que trarão repercussão direta em sua remuneração?

(...) a receita da concessionária está diretamente atrelada à sua avaliação de desempenho.

Além disso, o sistema é composto de diversos indicadores de desempenho, dentre eles “o indicador de eventos graves, referente a nove sub-indicadores, cada um dos quais associados à ocorrência de diferentes tipos de eventos como: indisciplina, pessoa ferida, pessoa gravemente ferida, fuga, tomada de reféns, subida no telhado, morte causada, presença de objetos/materiais não autorizados e total de Agentes de Monitoramento inferior a 40% do mínimo constante no plano anual de segurança e monitoramento interno apresentado pela concessionária e aprovado pelo poder concedente

Há ainda o termo aditivo 8 que, em seu anexo I, prevê outros sub-indicadores, como a apreensão de drogas na unidade.

Tais indicadores se relacionam com a fiscalização interna na unidade prisional, que, como dito, é realizada por empregados da concessionária. Assim, ao se delegar ao parceiro privado o exercício do poder de polícia, abre-se a possibilidade de que o sistema disciplinar seja influenciado pela necessidade de cumprimento de indicadores que repercutem na remuneração do concessionário (MONTEIRO, MASCARENHAS, 2017). Grifos nossos

Com base nessa reflexão, resta patente a impossibilidade dessa transferência, não há como conformar a atividade exercida pelo agente da gestora privada com o preceito legal, tampouco consegue-se certificar a lisura dos dados apontados em face do interesse direto. Nas mãos do estado, por mais que tais informações sejam negativas a interesses políticos, não há interesse lucrativo, além disso, os servidores são concursados e possuem treinamento específico além da garantia da estabilidade que confere independência na tomada de decisões, ainda que contrárias ao interesse do administrador. Já os empregados da gestora, seguem a lógica do mercado, na qual, não atendidas às expectativas do empregador, pode ele ser desligado compulsoriamente do emprego, mediante ao pagamento de indenização pela rescisão contratual.

Do monitoramento e comunicação de falta disciplinar

Seguindo com raciocínio, iniciado na parte final da subseção anterior, é possível apontar com a análise dos editais, contratos e anexos, outra disparatada delegação, comum a todos os agentes da área de segurança das gestões privadas no país, e apontadas nas subseções 1.2.1 à 1.2.3, qual seja, a que o agente privado proceda ao monitoramento e comunicação de evento faltoso praticado pelo preso.

Em que pese trate-se de um poder de polícia fiscalizatório e, segundo parcela da doutrina, passível de delegação, ele é balizado não por critérios objetivos, mas sim por critérios impregnados de subjetividade (MONTEIRO, MASCARENHAS, 2017), pois seria impossível, objetivamente, v.g. aferir se um preso está ou não, incitando movimento de subversão a ordem e disciplina (art. 50, I, lei 7210/84-LEP), já que a contrario sensu, não é tão comum atos de incitação explícitos, atualmente, esses ocorrem de maneira velada, em razão das sanções que do ato podem advir (art. 52 da lei 7210/84-LEP); ou, ainda, se está ou não, desrespeitando as pessoas com quem se relaciona na unidade (art. 50, VI, lei 7210/84-LEP), pois nem sempre o desrespeito resulta de um xingamento direto, mas sim de colocações pejorativas ou maliciosas realizadas ao longo de um dia ou até mesmo semana, que requer uma análise subjetiva dos atos praticados pelo ofensor.

Dizer que, nesses exemplos apresentados uma pessoa (Diretor Público de Segurança) poderá suprir esse juízo, ou até convalidar o ato, com a devida vênia aos que pensam de forma contrária, é o mesmo que acreditar que contos de fadas foram inspirados em fatos reais, isto é, não passa da mais pura falácia. A análise, muito das vezes, é resultado de dias de observação direta e, em algum dos casos, meses e anos de investigação, como o foi, no caso recente que culminou na transferência da cúpula do Primeiro Comando da Capital (PCC) para presídios Federais.

Mello (2010) assevera que atos meramente materiais e objetivos, podem ser realizados por entidades privadas, mediante assinatura de contrato, mas afasta completamente, qualquer possibilidade de delegações de atos que contenham carga decisória ou subjetiva. Seguindo essa linha Monteiro e Mascarenhas (2017), em análise das atribuições dos Agentes de Monitoramento da PPP em Minas Gerais, afirmam:

A atuação fiscalizatória do empregado da concessionária que administra a penitenciária da PPP, porém, não pode ser classificada como mero ato material. Isso porque consiste em atividade que necessariamente envolve interpretação e a compreensão de uma situação de fato, bem como a avaliação preliminar sobre a ilicitude da conduta, o que impregna a sua atuação de elevado teor de subjetividade e poder de decisão. Com efeito, como consigna o próprio Bandeira de Mello, a impessoalidade do ato meramente material não é obtida com o concurso da intervenção humana (MONTEIRO, MASCARENHAS, 2017).

Por fim, como há de se delegar esse mister ao agente de segurança privado se sua imparcialidade, como já mencionada nesse estudo, ao tomar sua decisão é questionável, principalmente por não gozar de estabilidade funcional e, ao agir relatando apreensões nas celas ou com presos, o faz de forma contrária aos interesses da gestora privada. A estabilidade, apesar de muito criticada hodierno, é de suma importância para garantir que os servidores não se curvarão as vontades e anseios financeiros ou políticos de seus superiores.

Das conduções coercitivas e uso da força

A condução coercitiva tratada nessa subseção diverge daquela disciplinada no art. 260 do CPP. Aqui, objetiva-se a levada de um indivíduo, com o emprego do uso da força, seja ele um preso com comportamento agressivo, de um setor a outro em uma unidade, ou um visitante surpreendido com posse de material ilícito em uma revista, para uma Delegacia de Polícia para lavratura de boletim de ocorrência e auto de prisão em flagrante.

Conforme ANEXO PB VIII – POP/AM da Minuta de Projeto Básico, item 44, da Sequência de Ações, do Processo n.º 2.1.3 – Visitantes de Presos e, Processo n.º 8.1: Uso seletivo da força, do edital de concorrência do Amazonas, o estado outorga aos Agentes de Ressocialização o uso de um determinado grau de força para a consecução de suas atividades. Contudo, tal feito mostra-se, no mínimo controverso, sobre o assunto, Di Pietro (2018) assevera que o uso de meios coercitivos é exclusivo de agentes estatais:

(...) da autoexecutoriedade e coercibilidade (inclusive com emprego de meios diretos de coação) só podem ser atribuídos a quem esteja legalmente investido em cargos públicos, cercados de garantias que protegem o exercício das funções públicas típicas do Estado (DI PIETRO, 2018, p. 199). Grifos nossos

Além disso, medidas coercitivas dessa monta, são cristalinamente revestidas de poder de polícia, de uso exclusivo de agentes do estado ou de integrantes dos órgãos responsáveis pela segurança pública, ressalta-se que não há uma métrica exata, cujo início e fim, possam ser previstos, a linha que separa o aceitável do excesso é extremamente tênue e depende do grau de passividade do agente que sofre a coação, além do que a discricionariedade dos meios a serem utilizados somente é dada a agentes estatais.

Ademais, no caso da condução coercitiva de visitantes, surpreendidas com ilícitos em procedimento de revista, torna forçoso reprisar o decidido no HC 470.937: “é ilícita a revista pessoal realizada por agente de segurança privada e todas as provas decorrentes desta” (STJ, 2019) e que as atividades inerentes ao poder de polícia, no contexto do sistema prisional, não podem ser objeto de delegação (art. 83-B, LEP), havendo, hão de serem consideradas, em sede jurisdicional, ilegais, podendo dar causa a inúmeros processos de responsabilização civil a Administração Pública.

Ainda sobre o tema, por mais que o art. 301 do CPP possibilite que qualquer do povo possa prender quem quer que seja encontrado em flagrante delito, esse flagrante não pode ser derivado de uma ação ilícita ou ilegal, há, portanto, uma barreira intransponível nesse caso. A rimo desse entendimento, o TJ-SP vem decidindo reiteradas vezes da seguinte forma:

Não se discute que, como cidadãos, têm a possibilidade de realizar a prisão em flagrante, pois tal é permitido para “qualquer do povo”, consoante a redação do artigo 301 do código de processo penal. Mas é inadmissível que guardas municipais realizem verdadeira atividade de polícia ostensiva, que é função da Polícia Militar. Também não lhes cabe a atividade de polícia judiciária e de apuração de infrações penais, que a Constituição atribui com exclusividade à Polícia Civil.

OBSERVE-SE QUE A PRISÃO EM FLAGRANTE, DISCIPLINADA PELOS ARTIGOS 301 A 310 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL É ATO ABSOLUTAMENTE DIVERSO DA BUSCA (PESSOAL OU EM VEÍCULO) E APREENSÃO, ESTAS DISCIPLINADAS NOS ARTIGOS 240 A 250 DO MESMO ESTATUTO PROCESSUAL, RAZÃO PELA QUAL NÃO HÁ COMO INVOCAR O FUNDAMENTO DE QUE O TRÁFICO É CRIME PERMANENTE E QUE, PORTANTO, A BUSCA PESSOAL OU DOMICILIAR É ADMITIDA EM RAZÃO DA TRAFICÂNCIA PERDURAR-SE NO TEMPO. No processo penal, tal leitura não é admitida, eis que a produção de provas não pode se submeter à interpretação extensiva, pois implicaria ofensa à legalidade estrita.

SOMENTE O ESTADO, NO EXERCÍCIO DE SUA ATIVIDADE INVESTIGATÓRIA E PARA ATENDER AS NECESSIDADES DA PERSECUÇÃO PENAL, está autorizado a invadir a intimidade do sujeito, uma vez que se trata de direito da personalidade protegido pelo artigo 5º, inciso X, da Constituição Federal. (Ap. Crim. nº 0003259-57.2016.8.26.0320, Rel. Des. Kenarik Boujikian, j. 25/02/2019). Grifos nossos.

Ou seja, mutatis mutandis, ainda que se alegue que a existência do estado flagrancial, em caso de visitante surpreendida com material ilícito, esse estado não pode ser consequência de uma revista realizada por quem a lei não outorgue poder para tanto. Assim sendo, se não há crime, como justificar uma condução coercitiva? Será que veremos ações de responsabilização civil premiando condutas ilícitas?

Com o cenário, perguntas e mais perguntas são criadas, e a única circunstância realmente certa é a insegurança que os agentes privados terão para atuar conforme previsto no POP/AM e, que certamente, continuaremos a presenciar cenas de barbárie como as ocorridas em 2017 e 2019 no estado.

Da delegação de serviços de segurança externa e transporte

A Minuta de Projeto Básico, do Edital de Concorrência 02/2019 do Amazonas, traz no item 7.4.6.16, subitem iv – Dos serviços de controle e segurança externo, letras “a” à “d”, disposições, pra lá de peculiares, delegando a empresa privada, a atividade de segurança armada da muralha e do perímetro externo das unidades.

Logo na letra “a” diz que o controle da segurança externa é de competência do estado, mas que a gestora privada, deverá contratar uma empresa especializada em segurança armada para suplementar os serviços que serão prestados pela polícia militar (como se fosse possível conciliar no mundo real e jurídico tal feito).

A nosso entender, o estado do Amazonas, assim como São Paulo[6], busca dar contornos de legalidade à medida colocando, nesse caso, a polícia militar como responsável pelo múnus e, de forma mais controvertida ainda, dispõe na letra “c” o seguinte: “a CONTRATADA ou subcontratadas, não executarão atividades inerentes e indelegáveis do Estado, em atendimento ao art. 83-B da Lei 7.210/1984” (SEAP-AM, 2019, p. 96). Pergunta-se: como um vigilante armado, incumbido de realizar a segurança do perímetro de uma unidade prisional não executará, ainda que indiretamente, atividades que exijam o poder de polícia?

O item “d”, expressamente diz que os únicos objetivos desses vigilantes serão o de assegurar a proteção do patrimônio e das pessoas nas unidades prisionais. Todavia, como assegurar um e outro, se em tese, conforme a disciplina do uso seletivo da força, item “e” do POP/AM (2019, p. 114), os agentes privados não podem sequer fazer uso de técnicas não letais? Por acaso se um preso empreender tentativa de fuga, v.g. escalada da muralha, e não houver presente os requisitos da legitima defesa (injusta agressão, atual ou iminente, a direito próprio ou de terceiros) esse vigilante deve acionar a polícia militar e aguardar inerte até que essa intervenha contra a empreitada?

É por causa da inexistência de respostas lógicas para essas e outras tantas indagações que o sistema de gestão privado do estado do Amazonas é duramente criticado e taxado como peculiar no Relatório GEMF do CNJ (CNJ, 2017, p. 78). As respostas em situação de crise são lentas e inexpressivas, em face da ausência de legitimidade e segurança para agir. Em 02/05/2016, antes de eclodir a crise de 2017, fugiram 39 (trinta e nove) presos do CDPM e, em 01/01/2017, ápice da crise, fugiram do COMPAJ, 117 (cento e dezessete) presos, todos do regime fechado, de unidades que, ao menos em tese, seriam de segurança máxima (CNJ, 2017, p. 65).

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Além disso, como se não bastasse às incongruências já expostas, a Minuta do Projeto Básico, no capítulo 7.4.6.2, que trata dos serviços de transportes, impõe a gestora a responsabilidade de contratar motoristas para realizar o transporte externo de presos e o no ANEXO PB VIII – POP/AM, Processo 3.1, 3.3 e 3.4, prevê que Agentes de Ressocialização integrem, nunca em quantidade inferior a 02 agentes, as equipes de escolta de presos em audiências judiciais, velórios, consultas e internações médicas-hospitalares que, conforme dicção do inciso IV, do art. 83-B, é de competência exclusiva do estado.

Seguindo esse entendimento, em circunstância similar no estado do Tocantins, em seu voto na Apelação Cível / Remessa Necessária n.º 0001317-79.2018.827.0000, o Desembargador Ronaldo Eurípedes, relator do processo, sustentou haver transferência indevida de atividade exclusiva do estado no contrato de concessão assinado entre o estado e a empresa Umanizzare. Entre outros motivos, o relator colaciona um trecho da Decisão Administrativa n.° 17/2017, da Polícia Federal, in verbis:

(...) Outro ponto observado é o fato de se ter um motorista da empresa Umanizzare responsável por conduzir uma viatura que é utilizada para fins de condução de presos para áreas externas dos presídios, função típica de escolta, ainda que seja como motorista. Dessa forma, o funcionário da Umanizzare está exercendo funções que vão além, INCLUSIVE, DAQUELAS ADMITIDAS PARA UM VIGILANTE, a qual deveria ser exercida por funcionário público com treinamento específico, ou seja, é função que deveria ser exercida tão somente por Agentes Penitenciários (Ap. n.º 0001317-79.2018.827.0000, Rel. Des. Ronaldo Eurípedes, j. 08/02/2019).

Seguindo, o magistrado assevera:

Destarte, resta patente o exercício de atividades-fim do Estado por agentes privados, sem o devido treinamento, o que ofende diversos preceitos da Constituição Federal, inclusive o princípio do concurso público, visto que as funções típicas do Estado somente devem ser exercidas por agentes públicos devidamente admitidos ao serviço público, mediante concurso de provimento de cargos e com treinamento adequado. (Ap. n.º 0001317-79.2018.827.0000, Rel. Des. Ronaldo Eurípedes, j. 08/02/2019).

O principal motivo para que o estado do Amazonas insista nesse modelo de gestão falaciosa, dar-se-á em razão dos parcos agentes penitenciários existentes no estado, que por longos 34 anos não realizou concursos para suprir essa carência e, como dito na subseção 1.2.2, restam somente 66 profissionais concursados no estado, todos a beira da aposentadoria, cujo último certame foi realizado em 1986.

Por fim, incumbir a polícia militar do desempenho de todas as tarefas ligadas a Administração Penitenciária, estranhas as suas funções constitucionais, traz enormes prejuízos à segurança pública, uma vez que o efetivo que seria destinado ao policiamento preventivo fica completamente comprometido. Além do que, com a vigência da EC 104/2019, a segurança de estabelecimentos prisionais cabe tão somente aos agentes penitenciários e policiais penais, tornando as atividades da polícia militar em presídios inconstitucionais, em razão da usurpação de função alheia a prevista na Constituição.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O estudo teve por escopo trazer dados e argumentos capazes de acalorar e qualificar as discussões a respeito da legalidade nas concessões de presídios, sob um olhar mais centrado na delegação do poder polícia ínsito ao serviço de segurança, seja ele interno ou externo, bem como, possibilitar a construção de um modelo de terceirização mais sólido, sem afastar a higidez exigida pelo primado da legalidade.

O sistema prisional brasileiro, ressalvadas algumas raras exceções, é caótico, e a Administração Pública para solucionar essa crise gerada principalmente pelo déficit de vagas, deve objetivar um trabalho de ampliação gradual do número de vagas ofertado, para que não haja um decréscimo de investimentos obrigatórios na manutenção e desenvolvimento de outros serviços públicos, e.g. saúde e educação.

Nessa toada, visando à resolução dessa problemática, alguns estados como Amazonas, Paraná, Minas Gerais, Bahia, Tocantins e agora São Paulo, optaram por implantar o sistema de cogestão penitenciária, espelhado no modelo instituído na França.

Todavia, tendo em vista as peculiaridades unicamente encontradas no setor e, visando à garantia da higidez da concessão e legitimidade de atuação de seus atores, o administrador público ao idealizar essa outorga de serviços, deve fazê-la com o devido respeito aos limites estabelecidos tanto pela Lei de Execuções Penais, como pelos princípios que regem a atividade administrativa estatal, sob pena de comprometer a concessão corrompendo-as com vícios capazes de gerar sua nulidade. Em suma, se deve buscar à exata conformação entre as necessidades estatais e o arcabouço jurídico do país.

Outrossim, é certo afirmar que o estado, com sua habitual burocracia, apresenta inúmeros entraves para a execução das atividades materiais e acessórias em uma penitenciária, nesse contexto, a agilidade da iniciativa privada somada a uma eficiente fiscalização, seria muito bem vinda e poderia trazer resultados salutares.

Entretanto, admitir essas falhas não justifica a adoção de medidas vedadas ou não previstas em lei, ainda que louvável seja sua finalidade, já que, sob a égide do estado democrático e legalidade stricto sensu, os fins jamais justificarão os meios adotados.

Diante disso, ao focar nossa análise nos editais e contratos, notamos que, independente da existência de limites expressos e taxativos, não são raros os casos de transferência de atividades típicas de Estado à iniciativa privada, o que deturpa a máxima da legalidade, fazendo ruir qualquer legitimidade na atuação daqueles que receberam a obrigação de fazê-las. Como consequência, criam-se cenários de insegurança jurídica e, ao invés de solucionar-se um problema, outros tantos são criados em uma área já tão castigada pelo descaso.

Com a instituição de certames nos moldes dos aqui examinados, constata-se que a Administração Pública, com motivação e fundamentação bastante questionável, ignora voluntariamente a existência na lei, de pontos contrários ao interesse de quem a administra, e o faz, certamente, com o fito de se aproveitar ilicitamente da presunção de legalidade de atos por ela emanados, garantido eficácia a esse, enquanto não houver manifestação administrativa ou judicial contrária, ainda que eivados de vícios capazes de gerar a nulidade do contrato.

Por consequência, até que seja ajuizada a devida ação, visando à anulação do feito e, essa percorra todo o seu curso até adquirir o caráter de imutável do trânsito em julgado, continuará produzindo seus efeitos e gerando, não raramente, prejuízos milionários ao erário, v.g. como vinha ocorrendo no estado de Tocantins, cujo contrato foi considerado nulo em sede da Ação Civil Pública n.º 0006286-35.2017.827.2729.

REMESSA NECESSÁRIA. APELAÇÕES CÍVEIS. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. TERCEIRIZAÇÃO DE ADMINISTRAÇÃO DE UNIDADES PRISIONAIS. CONTRATOS NULOS. ATIVIDADE TÍPICA DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. CERCEAMENTO DO DIREITO DE DEFESA INOCORRÊNCIA. JULGAMENTO EXTRA PETITA NÃO CONFIGURADO. MULTA INIBITÓRIA DEVIDA. SENTENÇA MANTIDA.

(...) 6. No que refere aos valores dos contratos, ficou comprovado nos autos que o valor inicial do contrato era de R$ 2.790,00 (dois mil setecentos e noventa reais) por preso, e no ano de 2016 alcançou a cifra de R$ 4.166,49 (quatro mil, cento e sessenta e seis reais e quarenta e nove centavos) por preso, valor que, de fato, mostra-se superior até mesmo ao gasto nas prisões federais de segurança máxima e quase o dobro do valor médio nacional. Segundo dados do CNJ, o gasto médio por preso no País é de R$ 2.400 (dois mil e quatrocentos reais) valor que já era inferior ao contratado inicialmente e se mostra discrepante com o fixado no ano de 2016, o que demostra o custo excessivo dos contratos firmados. (...) (Ap. n.º 0001317-79.2018.827.0000, Rel. Des. Ronaldo Eurípedes, j. 08/02/2019).

Sem embargo, o fato ilustrado não é dotado de singularidade. Como já mencionado no bojo desse estudo, o gasto do estado do Amazonas com a mesma empresa, Umanizzare, atingiu as cifras de R$ 4.900,00/mês por preso, sem que houvesse qualquer contrapartida que justificasse o valor, uma vez que o visto, principalmente no COMPAJ, refuta qualquer retórica de que a iniciativa privada proporcionaria melhores condições para o preso cumprir com sua pena de forma digna (MONTENEGRO, 2017).

Assim, com o estudo, acreditamos ter conseguido exarar com certa clareza, argumentos capazes de sustentar a impossibilidade de se delegar as funções de segurança de uma unidade prisional e, que o desrespeito dessa regra, poderá acarretar a nulidade de inúmeros procedimentos administrativos e processos penais, diante da ilegalidade chapada na atuação de agentes de monitoramento e ressocialização, contratados pela gestora privada.

Além disso, o cenário de impunidade gerado com a atuação desses profissionais fomentará um aumento significativo nos índices de tentativas e apreensões de ilícitos nos presídios, tudo por conta dessa irresponsabilização penal-administrativa, que faz ruir qualquer caráter preventivo intrínseco de uma sanção.

Dessarte, como resposta as perguntas do trabalho, podemos concluir que todas as áreas não relacionadas com a segurança, seja ela interna ou externa, classificação de condenados, aplicação de sanções disciplinares, controles de rebeliões e transportes de presos, podem ser objetos de concessão. Além do mais, apesar de nos posicionarmos de forma contrária a concessão dos serviços supra relacionados, pelas razões expostas, entendemos que concessão de serviços materiais e acessórios, seja plenamente aplicável, desde que acompanhada de uma eficiente fiscalização, para evitarmos situações como as ocorridas no estado do Amazonas e Tocantins.

Como consequência do estudo, nos posicionamos no sentido de que, tanto os editais como os contratos administrativos de concessão, sejam eles anteriores ou posteriores a lei 13.190/2015, devam ser considerados ilegais e, portanto, anulados pela própria administração, inteligência do art. 49, da lei 8.666/93[7] e súmulas 346[8] e 473[9] STF, em razão da existência de vícios de origem e insanáveis. Igualmente, salientamos que a lei em apreço não inovou na ordem jurídica, apenas assentou aquilo que já era entendido majoritariamente pela doutrina e jurisprudência, não comportando, desse modo, qualquer dialética defensora de ajuste contratual visando à continuidade dos contratos.

Por fim, essa anulação, por ideal, deve ser pronunciada de ofício pela administração em razão do exercício do poder de autotutela, para encurtar e minimizar os danos advindos de um longo processo judicial, que indiscutivelmente terá o mesmo desfecho.

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  1. Argumentação utilizada pelo Deputado Federal Marcel Van Hattem, do Partido Novo, durante a votação em segundo turno da então PEC 372/2017, para persuadir os membros casa, para votarem pela não aprovação da proposta, disponível no sitio da Câmara dos Deputados <https://www.camara.leg.br/noticias/610755-camara-aprova-em-2-turno-pec-que-cria-policias-penais/>, acessado em 21 de janeiro de 2020.

  2. Dans les établissements pénitentiaires, les fonctions autres que celles de direction, de greffe et de surveillance peuvent être confiées à des personnes de droit public ou de droit privé habilitées, dans des conditions définies par un décret en Conseil d'Etat. Ces personnes peuvent être choisies dans le cadre d'un marché public prévu au 5° de l'article 35 de l'ordonnance n° 2015-899 du 23 juillet 2015 relative aux marchés publics.” Disponível em < https://www.legifrance.gouv.fr/affichTexte.do?cidTexte=JORFTEXT000000874714>, acessado em 21/01/2020.

  3. Trata-se do famoso “jeitinho brasileiro”, ou seja, in casu, é a alteração da possibilidade jurídica em face de interesses próprios, uma vez que não se pode argumentar que há interesse da Administração Pública quando esse não se coaduna com a ordem jurídica, já que, a estrita observância dos princípios administrativos fazem com que ela torne-se legítima “escrava da lei”.

  4. Em que pese haja previsão expressa na minuta de projeto básico que a escolta externa é de responsabilidade da contratante, no caso o estado, extrai-se da leitura dos Processos 3.1, 3.3 e 3.4 do POP/AM, a necessidade de no mínimo 02 Agentes de Ressocialização compondo a equipe.

  5. Segundo as lições de Miotto (1970, p. 94), “o Direito Penitenciário consiste num conjunto de normas legislativas que regulam as relações entre o Estado e o condenado desde que a sentença condenatória legitima a execução, até que dita execução se finde, no mais amplo sentido da palavra”. Ou seja, é toda legislação em sentido lato, isto é, leis formais e atos administrativos infralegais, que disciplinam a relação Estado/apenado, durante o cumprimento de suas penas.

  6. Que tenta legitimar a função de chefia privadas nas unidades privatizadas com a inserção de cargos equivalentes ocupados por servidores públicos, vide subseção 2.2.1, p. 24.

  7. Art. 49 A autoridade competente para a aprovação do procedimento somente poderá revogar a licitação por razões de interesse público decorrente de fato superveniente devidamente comprovado, pertinente e suficiente para justificar tal conduta, devendo anulá-la por ilegalidade, de ofício ou por provocação de terceiros, mediante parecer escrito e devidamente fundamentado.

  8. A Administração Pública pode declarar a nulidade dos seus próprios atos.

  9. A administração pode anular seus próprios atos, quando eivados de vícios que os tornam ilegais, porque deles não se originam direitos; ou revogá-los, por motivo de conveniência ou oportunidade, respeitados os direitos adquiridos, e ressalvada, em todos os casos, a apreciação judicial.

Sobre o autor
José Carlos de Moraes Horta

Agente de Segurança Penitenciário no Estado de São Paulo desde 2002. Bacharel em Direito e aprovado no XXV Exame da Ordem dos Advogados do Brasil. Pós-graduando em Direito Público pela Faculdade Legale.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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