A Intervenção do Estado no Domínio Econômico

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Introdução

O modus operandi institucional da intervenção do Estado no domínio econômico passou por várias fases no correr da História até atingir a maturidade atual, após passar por vários conflitos nacionais e internacionais, inobstante as mudanças que poderão vir.

Inicialmente, com a concretização do modelo do Estado Nacional Liberal, que se iniciou com a fase do liberalismo econômico, baseado no laissez-faire, em que prevalecia a livre iniciativa praticamente sem regras ou intervenção da ação estatal para regular ou fiscalizar a atividade econômica.

Com a crise do modelo econômico liberal do Século XIX e início do Século XX, seguida das duas grandes guerras mundiais, bem como a crise econômica de 1929 e a grande depressão econômica de 1930, começou a aparecer paulatinamente uma preocupação com a exacerbada liberdade econômica vigente e o surgimento de preocupações sociais com a economia, no sentido de promover uma maior inclusão das forças produtivas, que se refletiu na Constituição Mexicana de 1917, na Constituição Alemã de Weimar de 1919 e na revolução econômica nos Estados Unidos da América EUA por meio do New Deal, em que, nesse caso, o Estado passa a intervir diretamente na economia.

Não muito diferente do movimento econômico mundial, o Brasil parte de um modelo puramente liberal com a Constituição Imperial de 1824, que se manteve com a Primeira Constituição Republicana de 1891, permeada de alguns ideais sociais, que em parte foram mantidos pela Constituição de 1934, que foi sumariamente revogada em 1937 com o Golpe do Estado Novo, que instaura a Ditadura Varguista e mais uma Constituição, rompendo com o caráter liberal até então vigente, ocorrendo a centralização do Poder Executivo em moldes fascistas e, com isso, resultou em um aumento dos poderes do Estado que passa a intervir de forma mais enfática na economia, conforme se pode observar no texto do art. 135, in verbis:

Art 135 - Na iniciativa individual, no poder de criação, de organização e de invenção do indivíduo, exercido nos limites do bem público, funda-se a riqueza e a prosperidade nacional. A intervenção do Estado no domínio econômico só se legitima para suprir as deficiências da iniciativa individual e coordenar os fatores da produção, de maneira a evitar ou resolver os seus conflitos e introduzir no jogo das competições individuais o pensamento dos interesses da Nação, representados pelo Estado. A intervenção no domínio econômico poderá ser mediata e imediata, revestindo a forma do controle, do estímulo ou da gestão direta. [Constituição37 (planalto.gov.br)]

Com a queda da Ditadura do Estado Novo é promulgada a Constituição de 1946, que estabeleceu direitos individuais em cotejo com princípios de justiça social, mantendo a livre iniciativa como princípio da ordem econômica e introduziu no ordenamento jurídico brasileiro a valorização do trabalho, bem como passou a ser combatido o poder econômico mediante a fiscalização de empresas dominadoras do mercado.

Concomitantemente, após o fim da Segunda Guerra Mundial a intervenção do Estado no domínio econômico passa a ser mais enfática em proveito da valorização do social e do trabalho, ocorrendo o apogeu do Estado Social, que em decorrência de sua inevitável crise promoveu a volta da valorização do liberalismo econômico, necessariamente temperado por uma necessidade premente de uma considerável regulação no intuito de evitar as sucessivas crises econômicas e sociais que vicejaram durante a primeira metade do Século XX e que se sucederam também na segunda metade, em especial na década de 70.

No Brasil tal situação sofreu influências, tanto que após o Golpe Militar de 1964 a ordem jurídico-constitucional por intermédio das Constituição de 1967, seguida da Emenda Constitucional nº 1 de 1969, que instituiu oficialmente a Ditadura Militar, de influência claramente positivista, passou-se a valorizar uma maior intervenção do Estado na economia, que de certo modo manteve-se com a atual Constituição Federal de 1988 CF que inaugurou a presente fase do Estado Democrático de Direito, que em seu art. 170 e seguintes deu o contorno vigente acerca da intervenção do Estado no domínio econômico como atualmente conhecemos.

Alguns entendem tratar-se a atual Constituição Federal como resultado de uma onda neoliberal e outros a entendem como um marco de conquistas sociais, porém, tais percepções para além de pura elucubração não se demonstram minimamente razoáveis e, muitas vezes, por motivos ideológicos de cunho puramente demagógico, mostram-se completamente apartadas da realidade da economia moderna, conforme se pode extrair de Celso Antônio Bandeira de Mello in Curso de Direito Administrativo, 32ª edição, revista e atualizada até a Emenda Constitucional 84, de 2.12.2014, Malheiros Editores, 2015, São Paulo:

3. À vista dos dispositivos citados, é claro a todas as luzes que a Constituição brasileira apresenta-se como uma estampada antítese do neoliberalismo, pois não entrega a satisfatória organização da vida econômica e social a uma suposta (e nunca demonstrada) eficiência do mercado. Pelo contrário, declara que o Estado Brasileiro tem compromissos formalmente explicitados com os valores que nela se enunciam, obrigando a que a ordem econômica e social sejam articuladas de maneira a realizar os objetivos apontados. Com isto, arrasa liminarmente e desacredita do ponto de vista jurídico quaisquer veleidades de implantação, entre nós, do ideário neoliberal. Aliás, uma verdadeira aberração do ponto de vista do neoliberalismo é o disposto no art. 219, de acordo com o qual: O mercado interno integra o patrimônio nacional e será incentivado de modo a viabilizar o desenvolvimento cultural e socioeconômico, o bem-estar da população e a autonomia tecnológica do país, nos termos de lei federal.

Lineamentos Básicos da Ordem Econômica

O art. 170 da CF ao enumerar os princípios fundantes da ordem econômica estabelece de forma precípua seus fundamentos com base nos postulados da valorização do trabalho humano e da livre concorrência, objetivando equilibrar os fatores do trabalho como necessidade humana para a subsistência com o mercado, que para além de ser considerado de forma equivocada com um ente despersonalizado e etéreo, mas que em verdade consistente na liberdade para as atividades econômicas, não havendo, em regra, a intervenção direta entre a atividade estatal e a iniciativa privada, que ocorrerá de forma exceptiva e subsidiária em decorrência de motivos ponderosos e utilitários.

Já o art. 173 da CF prevê a exploração direta da atividade econômica pelo Estado, quando necessário, em hipóteses de imperativos da segurança nacional ou de relevante interesse coletivo, seja na prestação de serviços públicos de forma direta e indireta ou no exercício de atividade econômica em sentido estrito, conforme a divisão classificatória da atividade econômica dada por Eros Roberto Grau in A Ordem Econômica na Constituição de 1988, oitava edição, Malheiros Editores, 2010, São Paulo.

Por outro lado, o art. 174 da CF trata do Estado como agente normativo e regulador ao exercer funções de fiscalização, incentivo e planejamento e o art. 175 trata do Estado como executor das atividades econômicas mediante a prestação de serviços públicos, seja de forma direta ou de forma indireta, nesse caso mediante os regimes de concessão ou permissão.

A atuação como Estado regulador ocorre em três formas: fiscalização, na qual o Estado busca regular o setor econômico para evitar formas abusivas de comportamento dos particulares; incentivo, na qual o Estado estimula o desenvolvimento econômico e social por meio da economia, mediante empréstimos, isenções fiscais e abertura de créditos; e, por fim, planejamento, na qual o Estado busca transformar a realidade existente no intuito de alcançar objetivos pré-estabelecidos.

Atuação do Estado como agente econômico em cotejo com a iniciativa privada

Na atual sistemática constitucional, em especial o art. 173, foi reservado à iniciativa privada papel preponderante e ao Estado papel residual, ou seja, excepcionalmente, quando a iniciativa privada não puder fomentar a economia, poderá o Estado intervir na economia por meio de empresas estatais no intuito de estabelecer concorrência com as empresas privadas de forma subsidiária.

Tal formatação de subsidiariedade tem como base constitucional o art. 1º, IV, o art. 170 e o art. 173, estabelecendo as bases do Direito Econômico Brasileiro o valor social da livre iniciativa como princípio constitucional fundamental, o valor social da livre-iniciativa como fundamento da ordem econômica e, por fim, a permissão da atuação estatal nas atividades econômicas para atender aos imperativos de segurança nacional e de relevante interesse coletivo.

Com isso a atuação do Estado na economia de forma subsidiária visa evitar intervenções diretas estatais na economia que não tenham bases excepcionais, quais sejam, os imperativos de segurança nacional e relevante interesse coletivo, que em geral decorrem da deficiência na prestação do serviço ou do fornecimento do bem pela iniciativa privada e não o contrário, por questões de lógica puramente elementar.

São fundamentos da subsidiariedade da intervenção do estado na economia: autonomia privada dos indivíduos; justiça; pluralismo social e político; dignidade da pessoa humana.

A autonomia privada dos indivíduos visa a defesa do livre mercado e da própria natureza humana em cotejo com a liberdade, no intuito de possibilitar o trabalho em prol do bem comum sem olvidar os interesses pessoais.

A justiça visa evitar a subtração aos membros da sociedade a sua própria iniciativa e a capacidade de empreender livremente.

O pluralismo social e político visa garantir a liberdade de vida e de pensamento para garantir as diferenças e evitar ou autoritarismo de ideias e possibilitar as divergências no debate público.

A dignidade da pessoa humana visa garantir que cada indivíduo possua um valor inerente e inalienável, no qual tal valor deve ser moralmente superior ao Estado e demais agrupamento sociais uns com outros com o propósito de desenvolver o indivíduo em toda a sua potencialidade.

Pois bem, partindo desses fundamentos, a exploração direta da atividade econômica pelo Estado é efetuada por meio de empresas estatais, no caso as empresas púbicas e as sociedades de economia mista e de suas subsidiárias, que são regidas por normas de direito privado, mas com exceções de direito público, que devem ser interpretadas conforme o propósito da estatal naquela atuação específica, ou seja, de forma finalística de acordo com o tipo de atividade que a estatal desempenha, caso preste serviço público em regime não concorrencial ou exerça atividade de apoio à Administração Pública.

A estatal prestadora de serviço público em livre concorrência com outras prestadoras privadas terá exceções de direito público de forma mais rarefeita e devem ser compatíveis no sentido de não interferir na livre concorrência.

Um dado importante em sede de intervenção do Estado no domínio econômico, que se justifica quando houver ameaça à segurança nacional ou em prol do interesse coletivo, é que o Estado ao atuar por meio de empresas estatais não pode obter benefícios fiscais que não forem estendíveis ao setor privado concorrente e quando o Estado atuar mediante uma sociedade de economia mista o capital deve, necessariamente, ser aberto.

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Formas de intervenção do Estado

Há três modalidades de intervenção do estado no domínio econômico: intervenção por absorção ou participação; intervenção por direção; e intervenção por indução.

A intervenção por absorção ou participação ocorre quando o Estado assume o controle de um setor do mercado sob o regime de monopólio ou quando o Estado mantém empresas que disputam o mercado com o setor privado, a intervenção por direção ocorre quando o Estado estabelece normas de conduta para os agentes do setor privado, e a intervenção por indução ocorre quando o Estado estabelece políticas de benefícios fiscais ou tributários para os agentes do setor privado.

Tais modalidades impõe a existência de uma atividade econômica em sentido amplo, que se subdivide em atividade econômica em sentido estrito, em regra promovida pela iniciativa privada e em exceção promovida pelo poder público de forma subsidiária, e serviço público, em regra promovido pelo poder público e com possibilidade de participação da iniciativa privada por meio de concessão, permissão e autorização.

A distinção entre serviço público e atividade econômica em sentido estrito ocorre em função das eventualidades das relações entre as forças sociais, eis que a atividade econômica objetiva a produção de riquezas por meio da troca comercial e da satisfação de aquisição de bens pelo indivíduo consubstanciado na troca e o serviço público objetiva a satisfação das necessidades consideradas básicas pelo indivíduo consubstanciando na utilidade para a subsistência do indivíduo a tempo e modo como atividade indispensável à coletividade vinculada ao interesse social.

Os serviços públicos podem ser privativos ou não privativos, sendo aqueles exercidos pelo Estado e por entidades do setor privado em regime de concessão ou permissão (art. 175, CF), e os últimos aqueles que podem ser prestados pelo setor privado independentemente de concessão, permissão ou autorização.

As atividades econômicas em sentido estrito podem ser exploradas pelo Estado como agente econômico em estado de livre concorrência ou em regime de monopólio (art. 173 e art. 177 da CF), com a ressalva neste caso que a mera atribuição de determinada competência atinente à prestação de serviços ao Estado não é suficiente para definir essa prestação como de serviço público.

Conclusão

Conforme visto o art. 173 da CF estabelece os pressupostos para a atuação direta do Estado no domínio econômico, o primeiro é o atendimento aos imperativos da segurança nacional e o segundo é o relevante interesse coletivo.

Historicamente tais pressupostos foram de grande importância no Brasil no Período da Ditadura do Estado Novo e no Período da Ditadura Militar, períodos nos quais os governos de turno objetivavam fomentar uma atividade econômica mais forte diante das circunstâncias internacionais da época, na qual o país resumia-se às atividades agrícolas, sendo bem deficitário no âmbito das atividades industriais e nos serviços públicos.

Realmente o fomento à atividade econômica pelo Estado foi historicamente de grande utilidade para iniciar uma maior modernização e proporcionar serviços de interesse público de forma mais ampla, o que de certo modo ainda é necessário na atualidade, porém de forma menos agressiva.

Os apontados pressupostos constitucionais para a atuação direta do Estado no domínio econômico imperativo de segurança nacional e relevante interesse coletivo devem ainda ser gradativamente mais rigorosos nos tempos atuais no sentido de a economia nacional dar um passo mais largo de forma mais objetiva no intuito de fomentar e valorizar o livre mercado como produtor de riqueza e de bem-estar social, sem descurar dos demais princípios referentes à ordem econômica.

Desde a redemocratização advinda com a atual Constituição e tendo em vista o histórico nacional no que tange a atividade econômica, já se faz necessário a desvinculação do estado patrimonialista ainda vigente para uma necessária incursão em uma economia de mercado mais moderna e menos tutelada pelo Estado.

Alguns, com velhos hábitos e alimentando inimigos imaginários neoliberais, acham que a sociedade brasileira não está preparada para o próximo passo de mais autonomia da atividade econômica, outros, os reais produtores de riqueza e que no fim sustentam a máquina estatal, a despeito de ainda encostarem-se no vetusto patrimonialismo de origem lusitana, creem na necessidade de encarar o próximo passo de autonomia econômica.

O que deve prevalecer? Continuar marcando passo para esperar o país do futuro que nunca vem? Ou buscar novos ares e aventuras mediante riscos controlados para finalmente alcançar a pujança econômica suficientemente forte para ter uma atividade econômica com maiores possibilidades e serviços públicos mais suficientes?

Bibliografia

- CAMARGO, Ricardo Antônio Lucas. Advocacia Pública e Direito Econômico: O Encontro das Águas. Nuria Fabris Editora: Porto Alegre, 2009.

- GRAU, Eros Roberto. A Ordem Econômica na Constituição de 1988, Oitava Edição. Malheiros Editores: São Paulo, 2010.

- MELLO, Celso Antônio Bandeira de Mello. Curso de Direito Administrativo, 32ª edição. Malheiros Editores: São Paulo, 2015.

- SOUZA, Washington Peluso Albino de. Teoria da Constituição Econômica. Editora Del Rey: Belo Horizonte, 2002.

Sobre o autor
Luciano Santos de Oliveira Goes

Procurador do Município de Belém e Advogado

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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