Culpa- embora os mais perspicazes juízes das bruxas, e até as bruxas mesmas, estivessem convencidas da culpa de bruxaria, essa culpa não existia. O mesmo acontece com toda culpa.
Friedrich Nietzsche A Gaia Ciência
Resumo
Partindo do pressuposto de que em que pese o código de processo penal ser anteriormente ao texto constitucional, o que se busca na práxis jurídico-legal é fugir de heranças inquisitoriais buscando a implementação de um processo penal que respeite as garantias preconizadas no texto constitucional, entendendo que o processo penal é (ou deveria ser) uma garantia em si mesmo, servindo como forma de livrar o acusado de arbítrios do Estado e conceder-lhe um julgamento que leve em consideração princípios caros ao Estado Democrático de Direito como o da presunção da inocência, juiz natural e da imparcialidade do julgador. No mesmo sentido, tem o afã o presente trabalho de tecer críticas ao chamado instituto da prevenção, presente no código de processo penal Brasileiro, como critério fixador da competência, no sentido de mostrar como esse critério viola o próprio texto constitucional e os princípios supramencionados e ratificados na carta Magna, isso porque, tendo o juiz a possibilidade jurídica-legal de atuar de maneira investigativa em determinado caso e neste mesmo caso proferir sentença, estará propenso a desenvolver o chamado Quadros Mentais Paranoicos (síndrome de Dom Casmurro) fato que corromperá sua atribuição de julgador equidistante do processo, uma vez que o coloca na condição de investigador da causa, logo, preocupado em perseguir sua intuição investigativa, fruto de seu trabalho como juiz prevento, ao passo que esquece de sua responsabilidade legal de garantir e possibilitar a paridade de armas que deveria advir de um juízo respaldado em imparcialidade e em respeito ao contraditório.
Palavras-chave: Juiz prevento. Quadros mentais paranoicos. Imparcialidade.
Abstract
Assuming that, despite the criminal procedure code being prior to the constitutional text, what is sought in the legal-legal praxis is to flee from inquisitorial legacies, seeking to implement a criminal procedure that respects the guarantees provided for in the constitutional text, understanding that the criminal process is (or should be) a guarantee in itself, serving as a way of freeing the accused from the State's discretion and granting him a judgment that takes into account principles dear to the Democratic State of Law, such as the presumption of innocence , natural judge and the impartiality of the judge. In the same sense, the present work is eager to criticize the so-called institute of prevention, present in the Brazilian criminal procedure code, as a criterion to establish jurisdiction, in order to show how this criterion violates the constitutional text itself and the aforementioned principles and ratified in the Magna letter, because, if the judge has the legal-legal possibility of acting in an investigative manner in a given case and in this same case, he will be prone to develop the so-called Paranoid Mental Frames (Dom Casmurro syndrome), a fact that will corrupt his attribution of equidistant judge from the process, as it places him in the condition of investigator of the case, therefore, concerned with pursuing his investigative intuition, the result of his work as a preventive judge, while he "forgets" his legal responsibility to guarantee and enable the parity of arms that should come from a judgment based on impartiality and respect for the contradictory.
Keywords: Preventive judge. Paranoid frames. Impartiality.
Introdução
O processo penal além de figurar, universalmente, como meio necessário para garantia de um processo assecuratório dos direitos do acusado, também, como preleciona Alonso (1997, p. 87), funciona como instituição estatal única, dotada de estrutura legítima para satisfação da pretensão acusatória, podendo alcançar, ou não, a satisfação punitiva na imposição de pena ao acusado que virou réu.
Nesse mesmo sentido já preleciona quanto à dinâmica estruturante do Código de Processo Penal o professor Aury Lopes Jr quando diz que:
No processo penal, a parte acusadora, titular da pretensão acusatória, invoca por meio da acusação (ação penal) que o juiz exerça a jurisdição e, ao final, se comprovada a tese acusatória, exerça o poder de punir do Estado. No momento em que o Estado substitui as partes e impede a autotutela, nasce também um dever correlato, de atuar quando a intervenção seja solicitada. O instrumento por meio do qual se concretiza e se pode exercer o poder-dever punitivo é o processo penal (LOPES JR, Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 69.)
O que nada tem de relação com a simples e utilitarista visão de ser o processo penal como um instrumento de aplicabilidade do Direito Penal e sua respectiva e automática vinculação da imputação ao acusado de tipo penal em um determinado caso concreto. Pois se assim fosse, debalde seria os direitos constitucionais como a presunção da inocência e o devido processo legal, uma vez que o processo penal, estando a serviço do Direito material e não do acusado, figuraria como mero floreio teatral com enredo previamente escrito e obrigatoriedade em segui-lo à risca, pouco importando garantias constitucionais e/ou novas informações legitimadoras de verdade da defesa que aparecessem no decorrer do processo; do inquérito à sentença.
Tendo isso como premissa básica, percebe-se que, em um país que está assentado sob a égide de um direito constitucional democrático, o processo penal, como mecanismo que baliza a resposta do ethos de um povo em um dado tempo, espaço e contexto, deve, de igual modo, atuar na implementação de arranjo eminentemente dotado de estruturas estruturantes verdadeiras e genuinamente constitucionais, para que seja limitado o arbítrio do Estado punidor. Nesse contexto, chega-se a princípios caros ao processo penal democrático como o princípio da imparcialidade do juiz, assim como a necessária paridade de armas às partes para sustento de suas respectivas alegações. É, pois, aqui que se fundamenta a necessidade e objetivo do presente trabalho; em evidenciar que, sendo a imparcialidade do juiz julgador condição sine qua non para a garantia de um direito processual penal que respeite a norma constitucional traduzida na legal e máxima justiça do país, institutos como o da prevenção, previsto no Código de Processo Penal como critério fixador de competência, mesmo figurando como critério residual, funciona, na verdade, como paradoxo do mesmo direito e não como garantia constitucional que promete ratificar. Isso porque, sendo a imparcialidade do juiz elemento de higidez processual-constitucional, a fixação da própria competência do magistrado para atuação em dado caso concreto pela prevenção, fere demasiadamente sua imparcialidade, sob aspectos que serão ainda inframencionados, assim como oferece ao magistrado a possibilidade de apego, mesmo não intencional, à primeira impressão dos fatos até então sabidos, fato que fundamentará toda a dialética de produção de sentido ao curso do processo, tendendo atenção aos fatos probandos descobertos em primeiro momento, anulando-se o futuro. Como já asseverava o professor Jacinto Coutinho, e na mesma linha o processualista Franco Cordeiro, resultará, com tal instituto, o chamado primado da hipótese sobre fatos e a conhecida síndrome estudada pelo criminologia que, infelizmente, tem sido tão presente no judiciário brasileiro, a saber, a síndrome de Dom Casmurro, também chamado de quadros mentais paranoicos.
A figura do juiz prevento no processo penal brasileiro e sua inconstitucionalidade.
Como se sabe, o processo penal que se tem (ou que se busca) hoje, é resultado de uma dialética que como tal não terá fim. Todavia, nos dias que correm, já é perceptível, quando se olha para o passado, ver como o mecanismo punitivista Estatal sofreu profundas transformações ao longo dos anos, acompanhando intimamente a evolução das penas no mundo. Nesse ínterim, o processo penal deixou de ser uma simples ritualística inquisitiva que oferecia aos acusados vezes o direito, vezes a obrigação ao silêncio antes de se decretar a sentença capital; quando na maioria das vezes não se sabia nem de que estava sendo julgado os acusados pelos acusandos, nem sabia de que realmente acusava os acusando os acusados.
Hoje, o processo penal possui uma leitura fundada em preceitos constitucionais que busca, esse mesmo processo, ser um instrumento de efetivação das garantias constitucionais de todos os acusados, independente do crime a ele imputado. Disso extrai-se que o direito processual diz muito mais sobre o tempo em que está assentado que mesmo o direito material em si.
Dessa interpretação J. GOLDSCHMIDIT (2018, p. 67) em um compilado de artigos da conferência da Universidade de Madri de 1934 a 1935, que depois publicou em sua clássica obra Problemas Jurídicos e Políticos do Processo Penal, já traduzia essa mesma observação em dizer que os segmentos da política processual de um país diz respeito aos segmentos de sua política geral. Sendo que, como já foi dito em outras palavras, seu processo penal é, portanto, uma espécie de termômetro que afere estruturas e elementos autoritários ou democráticos dessa mesma nação. Isso porque, dialética e mimeticamente, um povo, com sua respectiva constituição autoritária dar à luz" um processo penal de igual modo. Ao passo que uma nação constitucionalmente fundada em democracia, oferece aos seus um sistema de máxima eficácia em garantias individuais. Assim, fruto de um processo histórico-dialético, chega-se ao processo penal contemporâneo; fundado no entendimento legitimante de que o processo penal democrático deve ser e buscar garantias individuais pela instrumentalidade constitucional.
Fato é também que, como acontece em outras áreas, o ordenamento jurídico como um todo, e nesse contexto, o processo penal em si, traz consigo heranças do passado que não basta tão somente um tipificação legal proibitiva para seu esquecimento. Isso porque talvez uma das heranças de um processo inquisitorial que, por osmose jurídica, agregou-se ao processo penal dito constitucional contemporâneo diz respeito à possibilidade de um juiz possivelmente contaminado com informações investigativas do processo, atuar neste mesmo feito. Pois o que para outros países é caso de contaminação e consequente impedimento de um julgador para atuar na causa, no Brasil, o processo penal dito garantidor, chama de instituto da prevenção, critério que na verdade não afasta, mas fixa a competência. Tornando esse mesmo juiz figura detentora de autoridade para presidir e julgar a lide.
A sistemática processual penal Brasileira ao adotar o critério de fixação residual da competência do magistrado em atuar em determinado caso, como se extrai do artigo 69, inciso VI do CPP quando diz que, dentre outras:
Art. 69. Determinará a competência jurisdicional:
VI - a prevenção;
Traz a significação em dizer que dessa forma, o instituto da prevenção torna-se critério para fixação da competência, quando outros não se adequarem primeiro. Isso para efeitos práticos, significa dizer que sempre que houver mais de um juiz igualmente competente, a competência será fixada em decorrência daquele que se antecipar em relação aos outros e praticar qualquer ato decisório. Dessa forma, observa-se que com a possível utilização de tal instituto, o (re)surgimento de um problema advindo de resquícios de um processo penal inquisitorial, deveras incompatível com a sistemática processual penal dita democrática e garantista que se tem (e se busca) hoje. Pois, tendo o juiz a possibilidade e até mesmo prerrogativas de poder-dever de conhecer do material investigativo, tanto da polícia judiciária quanto do próprio órgão acusador e, nesse mesmo tempo, julgar pelos respectivos pedidos de incursão persecutória criminal que esses possam requerer em juízo, até quando da possibilidade de receber como procedente a ação penal, não há como este julgador dizer-se equidistante do processo, sobretudo, de não ter atuado como juiz investigador da causa. Fato esse que, conscientemente ou não, influenciará de sobremaneira seu julgamento, uma vez que já há em seu juízo valorativo um peso probatório negativo em relação ao acusado pelo possível crime cometido, isso resultado de uma atuação muito mais de representante do Ministério Público que propriamente de um juiz comprometido com a imparcialidade e garantias processuais-constitucionais.
Dessa forma, não há que se falar, com a utilização do ora comentado critério de adoção de competência, em juiz imparcial, assim como não há também o oferecimento daquilo que o professor Aury Lopes Jr chama de contraditório como exigência da igualdade cognitiva. Posto que, por mais que exista, até mesmo por parte da doutrina, a justificativa da necessidade da existência do instituto da prevenção, no sentido de dizer que com ele o magistrado seria melhor habilitado para julgar, uma vez que já tomou conhecimento prévio dos fatos e consequentemente possuiria mais arcabouço fático para subsidiar uma possível sentença, é justamente por isso que tal instituto torna-se inconstitucional. Percebe-se, assim, que o que busca legitimar sua aplicabilidade é na verdade e ao mesmo tempo o que condena todo um sistema jurídico processual penal acusatório. Pois coloca o magistrado na condição de inquisidor e não de espectador que possui carência de informações das partes e de igual modo necessita que essas mesmas partes subsidiem sua convicção no curso do processo.
Quando o professor Geraldo Prado escreve sobre sistema acusatório ele conversa muito bem com o que já foi argumentado alhures dentro do contexto do princípio da imparcialidade do juiz. Posto que é assim que assevera o professor:
A imparcialidade do juiz, ao contrário, exige dele justamente que se afaste das atividades preparatórias, para que mantenha seu espírito imune aos preconceitos que a formulação antecipada de uma tese produz, alheia ao mecanismo do contraditório. (PRADO, Geraldo. Sistema Acusatório, A Conformidade Constitucional das Leis Processuais Penais. (LOPES, José António Mouraz Atutela da imparcialidade endoprocessual no processo penal português, Coimbra: Coimbra Editora, 2005, nota de rodapé (216) p.77.). ed., Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2006, p 175.)
Dito de outra forma, não há a possibilidade de um julgamento permanecer equânime quando o mesmo julgador que obtém informações, por força de seu poder, de uma investigação em curso, ou seja, antes mesmo de aberta a ação penal, é o mesmo que proferirá sentença no mesmo caso. Porque assim como acontece na filosofia dita por Heráclito, a saber, que ninguém pode entrar duas vezes no mesmo rio, pois quando nele se entra novamente, não se encontra as mesmas águas, e o próprio já se modificou, o mesmo acontece com a valoração cognitiva do magistrado que sabendo de informações de um lado das partes, uma vez que foi o próprio que assim a conduziu e de igual modo assim a obteve, não será o mesmo juízo que proferirá sentença caso de nada soubesse dessas mesmas informações e funcionasse como ente espectador do processo, como o deveria assim ser. Dessa forma, tudo é regido pela dialética, a tensão e o revezamento dos opostos. Portanto, a real sentença advinda do juiz prevento é, pois, o fruto da mudança de figura, da alteração viciosa da estrutura de quem tão somente deveria julgar, ou seja, da usurpação permissiva entre os contrários.
O que fere o instituto da prevenção não é uma simples ritualística que nada geraria de prejuízo para alguma das partes. O que está em jogo, e com grande possibilidade (porque assim já se viu) de perder, é um dos pilares do processo penal democrático, senão o maior, que legitima a existência e necessidade da própria justiça, enquanto poder judiciário, que é a figura do juiz representante desse mesmo poder. Não figurando, portanto, como nenhuma parte, pelo contrário, sendo um ente único, afastado e imparcial no processo, fato este que justamente por sua condição o coloca na posição de jus judicandi. É notadamente por tudo isso que José António Mouraz Lopes escreve sobre a importância da imparcialidade do juiz e sua exigente e necessária obrigatoriedade de continuar sendo, porque:
A imparcialidade do magistrado é indiscutivelmente o elemento mais importante no desenvolvimento do processo penal, não é por acaso que no XV Congresso Internacional de Direito Penal, da Associação Internacional de Direito Penal (A.I.D.P.), foi aprovado à chamada Recomendações de Toledo para um Processo Penal Justo que impôs expressamente a presença de juiz imparcial no julgamento dos processos, o que pressupõe que a fase de investigação deva ser levada a cabo por uma entidade distinta daquela a quem cabe a fase de julgamento. Assim, o juiz do julgamento não deve participar em actos das fases anteriores. É ainda altamente recomendável, que o juiz do julgamento seja distinto daquele que decide sobre o recebimento da acusação.(LOPES, José António Mouraz Atutela da imparcialidade endoprocessual no processo penal português, Coimbra: Coimbra Editora, 2005, nota de rodapé (216) p.77.)
Infere-se, portanto, que enquanto há uma preocupação por parte da comunidade jurídica internacional, a exemplo de países como Itália, Espanha e Portugal em ratificação ao próprio Tribunal Europeu de Direitos do Homem- TEDH, de afastar o juiz da prática de atos investigatórios, o que naturalmente corrompe sua imparcialidade, a sistemática de processo penal brasileira, vai de encontro a tudo o que se combate aplicando o instituto da prevenção, na verdade, como critério fixador de competência, quando deveria ser fator de exclusão. O paradoxo constitucional se estabelece justamente aqui: quando busca-se um processo penal que respeite as garantias constitucionais, porque são delas que advém (ou deveria advir) sua essência, logo sua aplicabilidade; ao passo que esse mesmo processo penal, tipificadamente, rompe com sua própria responsabilidade constitucional de garantir um juízo imparcial e uma igualdade entre as partes.
É fato que o texto constitucional do artigo 5º dispõe que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade. Além de acrescentar o inciso XXXVII que não haverá juízo ou tribunal de exceção"; e ainda o inciso LIII que ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente".(grifo nosso) Disso se extrai e se busca entender até que ponto, hermenêutica e juridicamente, se conhece por autoridade competente. Pois na Convenção Americana de Direitos Humanos, da qual o Brasil é signatário, o artigo 8º preceitua que todo indivíduo tem o direito de ser ouvido por um juiz ou tribunal competente, que seja estabelecido anteriormente pela lei, e que seja independente e imparcial. Os dois últimos termos permitem mais uma vez perceber que juiz imparcial é juiz independente, logo, afastado do processo do ponto de vista investigativo e não juiz comprometido com as provas da investigação criminal por ter atuado na fase pré-processual. Isso porque, como já foi dito, a imparcialidade do juiz é a maior garantia que um acusado e toda a coletividade pode ter em um processo penal democrático. E talvez a maior dificuldade desse processo penal efetivamente se consolidar como democrático diz respeito ao fato desse ser fundado em um estrutura inquisitória, com raízes miméticas do Código facista de Processo Penal Italiano (Código de Rocco), portanto, incompatível com a Constituição de 1988 tida como constituição cidadã, porque feita para cidadãos, ou seja, um povo dotado de direitos. Assim, discorrendo sobre o mesmo assunto, a saber, a imparcialidade do juiz, Julio Maier diz que:
"A palavra 'juiz' não se compreende, ao menos no sentido moderno da expressão, sem o qualificativo imparcial. De outro modo: o adjetivo imparcial integra hoje, desde um ponto de vista material, o conceito de juiz..." (MAIER, Julio. Derecho Procesal Penal. Buenos Aires: Editores del Puerto, 2004, t. 1, p. 739.)
Dessa forma, o que se percebe é que imparcialidade é condição sine qua non para a existência do próprio juiz. Por isso é que o próprio texto constitucional busca assegurar a competência do magistrado quando já se estabelece quem será o juiz competente para determinado caso no momento em que o crime é cometido. Isso para que afaste de imediato a possibilidade da escolha do juiz por qualquer uma das partes, em respeito à imparcialidade e ao juízo natural. Todavia, com o instituto da prevenção, além de se apresentar, por menor que seja, a possibilidade da eleição da causa pelo juiz, é possível, também, a condução da mesma causa pelo juiz que se contaminou tanto pelas informações recebidas em fase pré-processual, como também, e em consequência, pelo esquecimento de sua competência fundada em imparcialidade e passar a conduzir o processo com juízo investigativo até chegar na sentença, espaço que reverberará seus quadros mentais paranoicos de juiz combatente da criminalidade.
O instituto da prevenção e a Síndrome de Dom Casmurro.
Para fundamentar como o instituto da prevenção, adotado como critério fixador de competência pelo código de processo penal brasileiro, gera o chamado quadri mentali paranidi (quadros mentais paranoicos), nada melhor que a obra do grande Machado De Assis, escrita por volta de 1900, denominada Dom Casmurro. Que justamente também carrega o nome do vício cognitivo proveniente de antinomias como o instituto ora comentado em que o juiz que, dotado de poderes investigatórios, primeiro decide e depois sai à procura de material probatório para alicerçar e justificar sua decisão.
Para se compreender a relação do instituto com a síndrome de Dom Casmurro é necessário se fazer uma digressão literária no afã de compreender que a obra escrita por Machado De Assis conta a história de Bentinho, por sinal, um bacharel em direito, que mesmo sem evidências passa a desconfiar da fidelidade de sua amada Capitu, a mulher de olhos claros, nariz reto, boca fina e queixo largo, cujas mãos, a despeito do ofício rude, eram curadas com amor como assim a descrevia. Narra a obra que a desconfiança passa a ser maior quando no enterro de Escobar, seu grande amigo do tempo de seminário que veio a falecer, sua amada Capitu externa um sofrimento muito mais de uma companheira que perdeu seu amado que somente de uma amiga que perdeu um amigo. Com o passar do tempo, o quadro mental paranoico de homem traído de Bentinho passa a induzi-lo a imaginar que seu filho com Capitu, Ezequiel, dia após dia, tomava os traços físicos de Escobar. Bentinho fica tão tomado pela convicção de que foi traído, mesmo sem dar a Capitu a possibilidade de saber de sua desconfiança, que chega a cogitar a matá-la assim também como ao filho. Fato que não se consuma, mas que, mesmo sem provas e sem procurar ouvir uma outra versão que não a que ele mesmo criou em sua mente paranoica, Bentinho só alimenta e consequentemente aumenta a convicção de que Capitu deixou de ser aquela mulher que ele tão amavelmente a descrevia e passou a ser a esposa traidora, mulher com olhos de cigana oblíqua e dissimulada.
Os quadros mentais paranoicos (Síndrome de Dom Casmurro), na obra de Machado de Assis, afetou Bentinho de tamanha forma que esse chegou ao ponto de cogitar a possibilidade de cometer um duplo assassinato, simplismente por ter desenvolvido uma suspeita e ter acreditado nela ao ponte de (per)segi-la. Hoje, no escopo do código de processo penal brasileiro, as figuras que detém o jus judicandi (que não pode ser confundido com o jus puniendi no sentido persecutório) são dominadas tão fortemente pela convicção paranoica de que há crime e há autor, que desrespeitam direitos, violam garantias constitucionais e até mesmo condenam em razão de uma uma busca em se alcançar uma possível verdade real, uma justiça, e pior ainda, um combate à criminalidade. Tudo isso porque ainda há, sobretudo com a utilização do instituto da prevenção, um vício linguístico e cognitivo por parte dos magistrados, que utilizando do poder decisório para investigar, emitem decisões muito mais fundadas em subjetivismos, em fundamentos de consciência, em convicção pessoal que realmente fundadas em materialidade que se deu em respeito ao devido processo legal e imparcialidade. Nesse sentido, já escreveu Fernando Fortes Said Filho em artigo que tratou dos modos hermenêuticos presentes nas decisões dos magistrados. Dizendo ele que:
É a nítida oposição à concepção de sentença advinda de sentire (BERMUDES, 2010, p. 93), ou, conforme ainda domina no imaginário dos juristas, o juiz é o senhor dos sentidos. Trata-se, segundo afirma, de uma vulgata da filosofia da consciência que traz consequências nefastas para a democracia, pelo fato de que esta posição solipsista adotada pelo juiz enfraquece o Direito. Por uma razão simples, se cada magistrado é dono de sua razão e se é esta quem aponta os parâmetros para a interpretação da lei, cada juiz é livre para julgar de acordo com a sua consciência. Basta apenas pensar que se a interpretação judicial deve ser pautada nas preferências valorativas pessoais do intérprete de acordo com a sua consciência -, é forçoso concluir que cada julgador acredita estar decidindo corretamente as questões que lhe são dadas, uma vez que o senso de justiça é inerente à sua formação interna. (FILHO, Fernando Fortes Said.Decido conforme a consciência do juiz togado: o modo hermenêutico (?) de construção das decisões judiciais nos juizados especiais. Âmbito Jurídico, São Paulo, Disponível em:<https://ambitojuridico.com.br/cadernos/direito-constitucional/decido-conforme-a-consciencia-do-juiz-togado-o-modo-hermeneutico-de-construcao-das-decisoes-judiciais-nos-juizados-especiais/>. Acesso em: 22 de dez. 2021, p.01.)
É, pois, por crer demasiadamente no seu imaginário ao ponto de fundamentar suas decisões não em elementos de convicção probatória, mas em elementos de convicção pessoal, que o instituto da prevenção torna-se grande aliado da síndrome de Dom Casmurro nesse processo persecutório judicial. Isso é tão presente que até mesmo nas decisões judiciais é possível perceber marcas desse vício linguístico-cognitivo como julgo/decido de acordo com a minha consciência, mostrando justamente o quanto a percepção pessoal e o juízo de valor, muito impregnada de aspectos construtivistas sociais, estão presentes em atos e decisões judiciais. Isso se maximiza ainda mais quando o magistrado sentencia com informações parciais e pré-julgamentos. O que mostra, na verdade, que o processo penal se traduz em uma ritualística de cartas marcadas, um ato teatral de enredo previamente escrito com desfecho previsível. Nesse sentido, o professor Lênio Streck (2007, p. 9) já ensina que é equivocado afirmar, por exemplo, que o juiz primeiro decide, para só depois fundamentar; na verdade, ele só decide porque já encontrou, na antecipação de sentido, o fundamento, a justificação. Não obstante, o que fez Bentinho e o que faz o magistrado que atua no sentido persecutório da ação, a priori e posteriori, chancelado pelo instituto da prevenção, é, na verdade, decidir sobre o caso concreto e utilizar sua própria competência de magistrado para conseguir subsidiar, mesmo que em vetor trocado, o que ele acredita em sua convicção pessoa. Aparentando usar uma espécie de Antolhos jurídico, ou seja, assim como os antolhos sendo acessório que se coloca na cabeça de animal de montaria ou carga para limitar sua visão e forçá-lo a olhar apenas para a frente, e não para os lados, o magistrado que conduz o processo sendo mais instrutor que espectador, torna-se tão fiel ao que acredita e ao que o oferece os quadros mentais paranoicos (síndrome de Dom Casmurro) que sua intenção é chegar rapidamente na fase de sentença para ver concretizado o fruto de seu trabalho investigativo. Para isso, sua visão fica demasiadamente posta para frente (futuro) pouco importando o que aparece de informações e, nesse contexto, empecilho, ao seu redor, uma vez que seu desiderato é tão somente ratificar uma conclusão que fundamentou suas decisões instrutórias no passado e que no agora legitima sua respectiva sentença. Pois o juiz, assim como Bentinho, acredita, defende e até legitima tipificadamente sua possibilidade de fazer interpretações em abstrato, ou seja, fora de um contexto prático, em uma tentativa de mostrar que os sentidos dependem exclusivamente de sua vontade, afirmando até mesmo magistrados que primeiro decidem para somente após fundamentar; tal como fez o personagem de Dom Casmurro ao condenar sua esposa ao status de mulher adúltera.
Considerações Finais
Como se observou do presente trabalho até aqui, a imparcialidade do juiz diz respeito não apenas a necessidade da figura de um juiz que se diz imparcial tão somente sob a égide positivista, mas também a necessária aparência e realidade fática-jurídica verdadeiramente imparcial para todas as partes do processo. Pois, sendo o juiz figura tão cara ao ordenamento jurídico, esse só se reveste de necessidade e patamar de soberania jurídica pelo fato de trazer (ou imaginar-se trazer) consigo o elemento da imparcialidade como fato gerador de uma carência de informações quanto às alegações das partes do processo sobre seus respectivos aspectos fáticos do caso concreto, posto que somente assim se pode subsidiar uma verdadeira e justa sentença. Dessa forma, sendo a imparcialidade, a naturalidade do juiz, o devido processo legal e o princípio da presunção da inocência alguns dos elementos que devem reinar no processo penal brasileiro do início até o fim, sob pena de se viciar um processo ao ponto de condenar um inocente ou inocentar quem deveria ser condenado, não se pode esse mesmo processo penal adotar como critério fixador de competência um instituto que, ao contrário do que justifica parte da doutrina apresentada alhures, na verdade quando não quebra demasiadamente, desconfigura o verdadeiro propósito desses princípios supramencionados.
É bem verdade ao chegar até aqui que não se pode argumentar somente por uma inconstitucionalidade do instituto da prevenção por alegar a violação das garantias constitucionais já tão citadas no presente trabalho. Isso porque a própria crítica aqui apresentada foi no sentido de mostrar que sua aplicabilidade, mesmo como critério residual, ou seja, quando não se adequar outras possibilidades previstas no rol do artigo 69 do Código de Processo Penal Brasileiro, nos casos de juízes igualmente competentes, ao invés de ser critério de fixação de competência do magistrado pelo fato de já ter atuado no caso, na verdade, deveria ser condição que revelaria uma impossibilidade desse mesmo magistrado em continuar atuando. Fato que tornaria o instituto da prevenção equiparado à condição de impedimento do magistrado em julgar em dado caso concreto. Porque sendo o critério atual possuidor de aplicabilidade inconstitucional, sua mudança de vetor tornar-se-ia critério legal. Porquanto perceba que essa justificativa se dá por critério lógico-jurídico. Lógico porque se um julgamento pressupõe um juízo de elementos puramente presente nos autos construídos sob o crivo do contraditório, ou seja, com abertura legal e material para as partes se manifestarem no transcorrer do processo, posto que como já dispõe o brocardo latino Quod non est in actis non est in mundo (o que não está nos autos não está no mundo), consequentemente, surge com isso uma impossibilidade desse mesmo julgamento ser alicerçado em elementos de convicção pessoal que acabem sendo fundamentos de decisões construídas na consciência do julgador, sob a alegação de estarem perquirindo a solução mais justa ao caso concreto, como acontece com os julgadores-inquisidores possuídos pela Síndrome de Dom Casmurro. Uma vez que se espera do Estado-Juiz uma atuação não baseada na emoção, e nesses casos emoções paranoicas, mas sim em critérios legais alicerçados em imparcialidade resultado de um julgar equidistante no decorrer de todo o processo verdadeiramente judicandi. E ao mesmo tempo se revela uma justificativa jurídica porque lógica.
Referências
Código de Processo Penal. decreto lei nº 3.689, de 03 de outubro de 1941. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/CCIVIL/Decreto-Lei/Del3689.htm.
FILHO, Fernando Fortes Said.Decido conforme a consciência do juiz togado: o modo hermenêutico (?) de construção das decisões judiciais nos juizados especiais. mbito Jurídico, São Paulo, Disponível em:<https://ambitojuridico.com.br/cadernos/direito-constitucional/decido-conforme-a-consciencia-do-juiz-togado-o-modo-hermeneutico-de-construcao-das-decisoes-judiciais-nos-juizados-especiais/>. Acesso em: 22 de dez. 2021, p.01.
LOPES JR., Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007.
LOPES, José António Mouraz Atutela da imparcialidade endoprocessual no processo penal português, Coimbra: Coimbra Editora, 2005, nota de rodapé (216) p.77.
MAIER, Julio. Derecho Procesal Penal. Buenos Aires: Editores del Puerto, 2004, t. 1, p. 739.
PRADO, Geraldo. Sistema Acusatório, A Conformidade Constitucional das Leis Processuais Penais. 4. ed., Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2006.