Por Ricardo Russell Brandão Cavalcanti. Defensor Público Federal. Professor do IFPE. Mestre e Doutorando em Direito. Especialista em Ciência Política.
Introdução
O Ministério da Educação editou o despacho 29 de dezembro de 2021 com o seguinte teor:
DESPACHO DE 29 DE DEZEMBRO DE 2021
Nos termos do art. 42 da Lei Complementar nº 73, de 10 de fevereiro de 1993, o Ministro de Estado da Educação aprova o Parecer nº 01169/2021/CONJUR-MEC/CGU/AGU (3065063), da Consultoria Jurídica junto ao Ministério da Educação, e consolida o seguinte entendimento:
(I) Não é possível às Instituições Federais de Ensino o estabelecimento de exigência de vacinação contra a Covid-19 como condicionante ao retorno das atividades educacionais presenciais, competindo-lhes a implementação dos protocolos sanitários e a observância das diretrizes estabelecidas pela Resolução CNE/CP nº 2, de 5 de agosto de 2021.
(II) A exigência de comprovação de vacinação como meio indireto à indução da vacinação compulsória somente pode ser estabelecida por meio de lei, consoante o entendimento firmado pelo Supremo Tribunal Federal - STF nas ADI nº 6.586 e ADI nº 6.587.
(III) No caso das Universidades e dos Institutos Federais, por se tratar de entidades integrantes da Administração Pública Federal, a exigência somente pode ser estabelecida mediante lei federal, tendo em vista se tratar de questão atinente ao funcionamento e à organização administrativa de tais instituições, de competência legislativa da União.
MILTON RIBEIRO
Ministro
Estaria o referido despacho em consonância com nossa legislação e com o entendimento do STF?
A resposta ao questionamento acima é o que pretende se fazer no presente artigo por meio de uma metodologia exploratória e descritiva.
1.Da vacinação obrigatória
A discussão sobre a obrigatoriedade de vacinação não é nova no Brasil. Em 31 de outubro de 1904, foi aprovada a lei 126/04, que previa o seguinte:
Art. 1º A vaccinação e revaccinação contra a variola são obrigatorias em toda a Republica.
Art. 2º Fica o Governo autorizado a regulamental-a sob as seguintes bases:
a) A vaccinação será praticada até o sexto mez de idade, excepto nos casos provados de molestia, em que poderá ser feita mais tarde;
b) A revaccinação terá logar sete annos após a vaccinação e será repetida por septennios;
c) As pessoas que tiverem mais de seis mezes de idade serão vaccinadas, excepto si provarem de modo cabal terem soffrido esta operação com proveito dentro dos ultimos seis annos;
d) Todos os officiaes e soldados das classes armadas da Republica deverão ser vaccinados e revaccinados, ficando os commandantes responsaveis pelo cumprimento desta;
e) O Governo lançara mão, afim de que sejam fielmente cumpridas as disposições desta lei, da medida estabelecida na primeira parte da lettra f do § 3º do art. 1º do decreto n. 1151, de 5 de janeiro de 1904;
f) Todos os serviços que se relacionem com a presente lei serão postos em pratica no Districto Federal e fiscalizados pelo Ministerio da Justiça e Negocios Interiores, por intermedio da Directoria Geral de Saude Publica.
Art. 3º Revogam-se as disposições em contrario.
Conforme se percebe, a lei em testilha obrigou que a população fosse vacinada contra a varíola, inclusive por meio do uso da força estatal, o que descontentou a população da época, implicando na chamada Revolta da Vacina[1].
De fato, vacinar as pessoas por meio do uso da força é algo muito preocupante e, assim como nos parece que a lei acima da época da República Velha não estava em consonância com a Constituição de 1891, vacinar as pessoas por meio do uso da força também não está em consonância com a Constituição de 1988.
Entretanto, não podemos confundir o conceito de vacinação forçada com o de vacinação obrigatória. Na primeira a pessoa seria levada à força para se vacinar, o que não está em consonância com um Estado Democrático de Direito, como é o caso do Brasil[2]; já a segunda hipótese não seria o caso de alguém ser vacinado por meio do uso da força do Estado, podendo efetivamente alguém optar por não ir se vacinar, porém, quem assim o fizer, não poderá exercer plenamente os seus direitos porque terá que se isolar para não afetar as outras pessoas.
Para melhor esclarecer o que estamos afirmando, trazemos um exemplo de Renato Janine Ribeiro em livro escrito junto com Mario Sergio Cortella:
Uma discussão interessante a esse respeito se levantou, quando se aprovou em São Paulo a lei limitando o uso do tabaco em público. Muita gente a questiona de uma forma marota, mas, na verdade, o que lei a proíbe é que o indivíduo terceirize sua fumaça. Não se proíbe ninguém de fumar, mas de fazer o outro aspirar o seu fumo[3].
Assim, fumar é um direito, ninguém pode ser impedido de o fazer, porém o usufruto do referido direito deve ser realizado de uma forma tal que ninguém aspire a fumaça do cigarro de outrem.
A mesma lógica se aplica para a vacinação: a pessoa tem o direito de não se vacinar, porém não pode aumentar a exposição das outras pessoas.
Desse modo, um aluno da rede pública não pode não se vacinar e simplesmente frequentar a sala de aula e aumentar o risco de contágio dos seus professores e dos seus colegas.
2. O despacho 29 de dezembro de 2021 do Ministro da Educação
O despacho em questão é ilegal, inconstitucional e não está em consonância com o entendimento do STF, senão vejamos.
O referido despacho usou como fundamentação a decisão do STF no julgamento das Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs) 6586 e 6587, que tem o referido teor:
II A obrigatoriedade da vacinação a que se refere a legislação sanitária brasileira não pode contemplar quaisquer medidas invasivas, aflitivas ou coativas, em decorrência direta do direito à intangibilidade, inviolabilidade e integridade do corpo humano, afigurando-se flagrantemente inconstitucional toda determinação legal, regulamentar ou administrativa no sentido de implementar a vacinação sem o expresso consentimento informado das pessoas. III A previsão de vacinação obrigatória, excluída a imposição de vacinação forçada, afigura-se legítima, desde que as medidas às quais se sujeitam os refratários observem os critérios constantes da própria Lei 13.979/2020, especificamente nos incisos I, II, e III do § 2º do art. 3º, a saber, o direito à informação, à assistência familiar, ao tratamento gratuito e, ainda, ao pleno respeito à dignidade, aos direitos humanos e às liberdades fundamentais das pessoas, bem como os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, de forma a não ameaçar a integridade física e moral dos recalcitrantes. (Grifos Nossos)[4].
Desse modo, ao mesmo tempo em que veda a vacinação forçada, o STF permite a vacinação obrigatória nos termos da lei e, ao contrário do afirmado pelo Ministério da Educação, a referida lei já existe, qual seja: a Lei 13.979/2020, que prevê o seguinte:
Art. 3º Para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional de que trata esta Lei, as autoridades poderão adotar, no âmbito de suas competências, entre outras, as seguintes medidas: III - determinação de realização compulsória de:
(...)
d) vacinação e outras medidas profiláticas; (Grifos Nossos).
Desse modo, por expressa disposição legal, em lei declara constitucional pelo STF, o Reitor de uma instituição federal de ensino pode, dentro de sua competência administrativa, determinar a vacinação obrigatória dos alunos e servidores públicos, devendo efetivamente assim o fazer, uma vez que o artigo 7º, XII, da Constituição, prevê como direito dos trabalhadores a redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, além do fato de os alunos se encontrarem sob a tutela específica do Estado, o que gera a obrigação de se garantir a proteção deles buscando evitar danos[5] como os decorrentes da não vacinação.
No mais, sob o argumento de que as universidades e os institutos federais integram a Administração Pública Federal, o Ministro da Educação pretende fazer valer uma hierarquia que não existe.
A universidades federais e os institutos federais possuem natureza jurídica de autarquia, ou seja, eles não são um órgão da União e sim outra pessoa jurídica, possuindo autonomia administrativa para o desempenho de suas funções[6].
O Ministério da Educação não realiza um controle hierárquico em relação aos institutos federais e às universidades federais, mas sim um controle meramente finalístico, uma mera supervisão[7], o que só pode ser feito nos termos estabelecidos em lei[8], de modo que o MEC só pode intervir em uma universidade federal ou em instituto federal quando houver um desvio de finalidade legal, ou seja, quando não houver a prestação de um serviço de educação de qualidade.
Assim, quem deve determinar, em consonância com as leis e com a Constituição, os requisitos para o retorno dos alunos para as aulas na Rede Federal de Ensino são os reitores de cada instituição educacional federal e não o Ministro da Educação.
Conclusão
Despachos ministeriais no final de ano deveriam servir para desejar um próspero Ano Novo e muita saúde para todas e todos. Entretanto, o Ministro da Educação tenta se utilizar do referido expediente para impedir que alunos da Rede Pública Federal de ensino sejam obrigados a comprovar a vacinação para garantir o retorno às aulas presenciais.
A referida atitude do ministro é extremamente preocupante, pois expõe a vida de pessoas que estão sob a tutela específica do Estado e deveriam ser protegidas e não expostas.
Além disso, o despacho em questão fere o entendimento do STF e usurpa a função dos reitores das instituições federais de ensino de organizarem as pessoas jurídicas que administram.
Desse modo, diante da manifesta ilegalidade e inconstitucionalidade do Despacho de 29 de dezembro de 2021 do Ministério da Educação, ele deve ser deixado de lado pelas universidades federais e pelos institutos federais, que precisam, por meio de normas internas e visando proteger a saúde dos seus alunos e servidores, exigir a vacinação de todas e todos que entrarem em suas dependências.
REFERÊNCIAS
ARAGÃO, Alexandre Santos. Curso de Direito Administrativo. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2013.
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 34ªed. São Paulo: Atlas, 2020.
CORTELLA, Mário Sérgio; RIBEIRO, Renato Janine. Política para não ser idiota. 9ªed. Campinas: Papirus, 2012.
https://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15346093809&ext=.pdf.
https://super.abril.com.br/historia/oswaldo-cruz-e-a-variola-a-revolta-da-vacina/
MARINELA, Fernanda. Direito Administrativo. 6ªed. Niterói: Impetus, 2012
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 26ª ed. Malheiros: São Paulo, 2009. p.164.
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 43ªed. São Paulo: Malheiros, 2020.
https://super.abril.com.br/historia/oswaldo-cruz-e-a-variola-a-revolta-da-vacina/. Acesso em 06/06/2021.
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 43ªed. São Paulo: Malheiros, 2020.p.114.
CORTELLA, Mário Sérgio; RIBEIRO, Renato Janine. Política para não ser idiota. 9ªed. Campinas: Papirus, 2012.p.11.
Interior teor: https://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15346093809&ext=.pdf. Acesso em 06/06/2021.
MARINELA, Fernanda. Direito Administrativo. 6ªed. Niterói: Impetus, 2012.p.974.
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 34ªed. São Paulo: Atlas, 2020. p.302.
ARAGÃO, Alexandre Santos. Curso de Direito Administrativo. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2013. p.107.
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 26ª ed. Malheiros: São Paulo, 2009. p.164.