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Governo ostentação: a utilização de veículos de luxo no serviço público e o princípio da eficiência

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13/01/2022 às 13:40
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III - PRINCÍPIO DA EFICIÊNCIA

Quando se estuda os princípios, importa mencionar o salto qualitativo que esse tipo de norma jurídica teve dentro do denominado pós-positivismo.

Em síntese apertada, no positivismo jurídico, de um lado estariam as regras representando o direito posto ou positivado e, de outro, estariam os princípios que representariam o direito pressuposto ou ideal, para alguns, o direito natural, de forma que os princípios seriam meras diretrizes para a construção do direito, não possuindo estes força normativa, assumindo, portanto, um papel secundário no ordenamento jurídico.

Ocorre que, notadamente, após as atrocidades da segunda guerra mundial e de condutas realizadas sob o manto da legalidade, se discutiu o papel do direito, o qual deveria refletir os valores mais caros da sociedade, a exemplo, da justiça, relevando-se verdadeiro paradoxo a prática de injustiças a partir do direito, de forma que a aplicação da lei, como principal instrumento de veiculação do direito nos sistemas jurídicos da civil law, pode ser injusta, entretanto, deve haver mecanismos para a sua superação e/ou exclusão do ordenamento jurídico.

Nesse cenário, os valores passam a ser incluídos no ordenamento jurídico através dos princípios, os quais, no pós-positivismo, passam a ter força normativa, a significar que, ao lado das regras, os princípios são espécies de normas jurídicas e, portanto, bastante por si só, na solução dos conflitos.

Os princípios se diferenciam das regras, porque na leitura destas é possível identificar seu campo de aplicação visto que haverá referência ao sujeito e/ou objeto e/ou situação jurídica, enquanto que aqueles, pela abstração inerente, depende, para a sua aplicação da análise do caso concreto, observando que os princípios não perderam a sua função de base ou estrutura do ordenamento jurídico, de forma que as regras devem ser construídas, interpretadas e aplicadas a partir dos princípios.

Nesse contexto, o princípio da eficiência, não pode ser considerado um enfeite ou, meramente, uma diretriz, mas norma jurídica com força normativa para pautar toda e qualquer conduta administrativa, desde elaboração das regras, passando pela sua interpretação e interpretação e findando em sua aplicação.

OLIVEIRA (2020, p. 42) nos ensina que a medida administrativa será eficiente quando implementar, com maior intensidade e com os menores custos possíveis, os resultados legitimamente esperados. GRIFO NOSSO

Já CARVALHO FILHO (2021, p. 82) informa que:

O núcleo do princípio é a procura de produtividade e economicidade e, o que é mais importante, a exigência de reduzir os desperdícios de dinheiro público, o que impõe a execução dos serviços públicos com presteza, perfeição e rendimento funcional. GRIFO NOSSO

Em reforço, importa registrar o conceito de MORAES (2020, p. 412):

Assim, princípio da eficiência é aquele que impõe à Administração Pública direta e indireta e a seus agentes a persecução do bem comum, por meio do exercício de suas competências de forma imparcial, neutra, transparente, participativa, eficaz, sem burocracia e sempre em busca da qualidade, primando pela adoção dos critérios legais e morais necessários para a melhor utilização possível dos recursos públicos, de maneira a evitar-se desperdícios e garantir-se uma maior rentabilidade social. GRIFO NOSSO

Aqui, revela a importância de destacar esse aspecto do princípio da eficiência, qual seja, a utilização dos recursos públicos da melhor forma possível, relacionando-se, nesse aspecto, com a regra da economicidade, a refletir o uso adequado e racional dos recursos públicos.

Nesse sentido, o Tribunal de Contas da União[9] já manifestou que:

A compra ou a locação de veículos deve sempre ser baseada em critérios técnicos de economicidade e contemplar os diversos aspectos que influenciam a vida útil de sua frota, garantindo maior transparência ao processo de renovação.

A finalidade de se manter carros oficiais é permitir o deslocamento de agentes públicos para e no exercício de suas funções, de forma que um veículo popular atinge essa finalidade de igual forma que um veículo de luxo, não justificando, portanto, sob a ótica do princípio da eficiência e da economicidade a aquisição, locação e manutenção de veículos de luxo vez que tal conduta caracteriza verdadeira ostentação com os recursos públicos retirados, compulsoriamente, dos contribuintes para a manutenção da estrutura estatal.

Um julgado do Tribunal Regional Federal da 1ª Região[10], em que pese não tratar especificamente de veículos, retrata bem retrata a discussão aqui posta, o qual, em síntese apertada, discutiu a nulidade do art. 20 da Portaria nº 41/2014, editada pelo Procurador Geral da República, cuja redação assegurava o direito ao uso de passagens aéreas, para voos internacionais, na classe executiva, aos membros do Ministério Público da União e, em determinadas circunstâncias, também a algumas categorias de servidores do MPU e seus acompanhantes, observando que a União, buscando a nulidade desse dispositivo, trouxe, entre outros argumentos que tal expediente violava os princípios republicano (supremacia do interesse público sobre o interesse particular), da moralidade, da economicidade e da razoabilidade.

Foi deferida antecipação de tutela em primeira instância para, entre outros, obstar a aquisição de passagens aéreas na classe executiva e, contra esta decisão, foi interposto agravo de instrumento, cujo Relator, Desembargador Souza Prudente, manteve a decisão, sendo oportuno destacar o seguinte trecho da fundamentação:

3) DA VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO REPUBLICANO - Uma das notas distintivas entre monarquia, república e despotismo, na tipologia das formas de Governo inaugurada com Maquiavel e continuada com Montesquieu, diz respeito à igualdade: "na República, tem de haver uma relativa igualdade, na monarquia desigualdade em benefício de uma nobreza que é necessária para a própria existência do poder real, e no despotismo aquela igualdade que se dá quando todos são escravos." Então, na República Federativa do Brasil, não é tolerável que se pretenda distinguir determinada categoria de servidores públicos, ainda que se trate de agentes políticos (pois mesmo sendo agentes políticos não deixam de ser servidores públicos), pela classe diferenciada nos aviões em que viajam. A autoridade, em uma República, não se legitima em razão de signos exteriores de distinção, mas sim na investidura nas elevadas funções públicas que desempenham quando nomeados para cargos públicos. O artigo 20 da Portaria nº 41/2014-PGR/MPU, "a pretexto de regulamentar artigos de lei", concede "benefício que cria uma verdadeira classe privilegiada de cidadãos, sem que haja qualquer justificativa para isso, fazendo uso de dinheiro público de forma pouco eficiente, ignorando a escassez de dinheiro do erário", o que soa como "eterno retorno do Brasil à época das oligarquias e dos privilégios pessoais, em detrimento do cidadão pagador de tributos." A concessão do benefício como elemento de distinção social fica clara com a assertiva do Sub-Procurador Geral da República Brasilino Santos, que ao defender a medida, asseverou: "Ou é Procurador da República ou é descamisado. Tem que separar as coisas." A frase gerou indignação no então Senador Pedro Simon, que foi à tribuna do Senado para criticar a medida e o comentário, considerando que classe executiva não pode ser medida para aferir a dignidade e a seriedade de agentes públicos. É realmente inexplicável, em um ambiente institucional republicano, a afirmação segundo a qual, para se ter dignidade na função exercida, é necessário viajar em classe executiva, pois se trata de "benefício com dinheiro público, cuja essencialidade para o desempenho funcional está longe de ser evidente." Em uma República, destaca-se o princípio da supremacia do interesse público, a informar que inexiste espaço constitucional/institucional "para atos administrativos que instituam verdadeiros benefícios que aproveitem a uma única pessoa ou a classe específica de pessoas, quando estes não apresentem qualquer motivação que vise resguardar direitos fundamentais ou ainda quando estes não aproveitem ao interesse público. Do contrário, se assim o fosse, nos distanciaríamos do próprio princípio republicano, tendo em vista a concentração de poder excessiva." E continua a parte autora: "assegurar mediante Portaria que um grupo específico de aproximadamente 2000 pessoas possua o direito de realizar viagens na classe executiva (...) não atende, evidentemente, aos interesses da coletividade, sendo injustificável (...). Trata-se, além disso, de evidente priorização de interesse particular em detrimento do público. (...) as prerrogativas não conferem à Administração Pública o direito de gozar de quaisquer regalias. GRIFO NOSSO

Ainda, na referida fundamentação do julgado, há a demonstração da evidente violação do princípio da eficiência a partir de um dado objetivo, qual seja, a diferença de preço entre a passagem aérea na classe econômica da classe executiva, vide:

5) DAVIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DA EFICIÊNCIA O artigo 20 da Portaria nº 41/2014-PGR/MPU escolheu a opção mais custosa sem a devida contrapartida em termos de serviço público, em clara ofensa aos princípios da eficiência e da economicidade (artigos 37 e 70 da Constituição da República). É necessário deixar claro que a autonomia financeira e administrativa do MPU não possibilita escolhas que infrinjam o princípio da economicidade, eis que sempre será necessário pesar a relação entre o benefício social e o custo social de um determinado ato administrativo. A parte autora fornece dois exemplos que deixam muito claro que a opção constante no ato normativo impugnado é ilegal e inconstitucional, eis que, na verdade, não há escolha discricionária porque é caso de "redução da discricionariedade a zero" (item 2, acima), pois somente há uma única conduta válida para o administrador: se a intenção da norma é possibilitar que o agente político/servidor público esteja em condições físicas ideais para trabalhar no exterior, é imensamente mais econômico paga-lhe uma diária a mais do que pagar-lhe viagem aérea na classe executiva, pois é muito mais econômico viajar em classe econômica e pagar uma diária a mais de hotel. Em uma hipotética viagem de Brasília a Nova Iorque, a passagem aérea na classe econômica custa R$ 2.497,00, enquanto que na classe executiva o mesmo trecho, na mesma data hipotética, custa R$ 12.628,00. É muito mais econômico pagar uma diária a mais para que o agente político/servidor público descanse um dia e uma noite no local de destino e esteja em condições ideais de descanso, ao custo de US$ 416,00, do que pagar uma passagem na classe executiva. É mais econômico porque a diferença na classe do voo permitiria o pagamento de aproximadamente mais 8 diárias.

A viagem na classe econômica tão como na classe executiva atinge a mesma finalidade, qual seja, permitir o deslocamento do agente público para e no exercício de suas funções e, dessa forma, há evidente e clara violação ao princípio da eficiência e da economicidade traduzido em verdadeira ostentação com recursos públicos.

A argumentação desenvolvida no julgado, acima referenciada, também aqui se aplica visto que há evidente violação do princípio da eficiência quando recursos públicos custeados pela população são utilizados para a aquisição, locação e/ou manutenção de veículos de luxo para permitir o deslocamento de agentes públicos para e no exercício de suas funções, visto que a mesma finalidade seria alcançada usando veículos, ditos, populares, com custo substancialmente inferior ao veículo de luxo.

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Referida conduta administrativa deve ser combatida e extirpada de nosso ordenamento jurídico porque não só viola o princípio da eficiência, mas, também, o princípio da moralidade, quanto a mesma população que sustenta a opulência, a pomposidade, a suntuosidade, enfim, a ostentação de gestores públicos, é obrigada a contentar com a ausência, precariedade ou deficiência dos serviços públicos, a exemplo, do próprio sistema de transporte público.

Se a regra contida no art. 6º da Lei Federal nº 1.081/50, se o princípio, com status constitucional, da eficiência, não são capazes de inibir e reprimir o uso inadequado de recursos públicos no uso de veículos de luxo, em boa hora, surge, o art. 20 da nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos (Lei nº 14.113/2021), que torna como regra geral e obrigatória a vedação para toda e qualquer aquisição de artigos de luxo realizada pela Administração Pública, vide:

Art. 20. Os itens de consumo adquiridos para suprir as demandas das estruturas da Administração Pública deverão ser de qualidade comum, não superior à necessária para cumprir as finalidades às quais se destinam, vedada a aquisição de artigos de luxo.

§ 1º Os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário definirão em regulamento os limites para o enquadramento dos bens de consumo nas categorias comum e luxo.

§ 2º A partir de 180 (cento e oitenta) dias contados da promulgação desta Lei, novas compras de bens de consumo só poderão ser efetivadas com a edição, pela autoridade competente, do regulamento a que se refere o § 1º deste artigo.

No âmbito federal referida regra legal já foi regulamentada através do Decreto nº 10.818 de 27/09/21, trazendo a seguinte definição:

Art. 2º Para fins do disposto neste Decreto, considera-se:

I - bem de luxo - bem de consumo com alta elasticidade-renda da demanda, identificável por meio de características tais como:

a) ostentação;

b) opulência;

c) forte apelo estético; ou

d) requinte;

Clarividente que mais uma norma legal não vai inibir ou reprimir tal prática histórica, herança do patrimonialismo, de alimentar verdadeiras mordomias com recursos públicos, se não houver uma mudança de cultura, notadamente, dos Tribunais de Contas e do Ministério Público, visto que os exemplos citados demonstram que a aquisição, locação e manutenção de veículos de luxo, também, é adotada por esses próprios órgãos de controle da atividade administrativa.

Ainda, mais paradoxal, é a atitude de determinados gestores, notadamente, municipais, os quais, ao mesmo tempo que esbanjam pomposidade no uso de veículos de luxo contratados com recursos públicos, são incapazes de assegurar os direitos fundamentais mais básicos da população, tais como, saneamento, saúde e educação.

Reportamo-nos a crítica de MOTTA (2019, p. 495), que ao tratar do princípio da eficiência, esclarece:

A adoção do referido princípio, para nós, ou é fruto da tradicional verborragia legislativa ou com objetivos ainda não suficientemente esclarecidos.

No primeiro caso, vemos que o legislador brasileiro gosta de tentar consertar os problemas do país apenas com a alteração de textos legais, sem se preocupar com a efetiva aplicação deles. Veja-se que os outros quatro princípios estão no art. 37, caput, há mais de dez anos e nem por isso foram obedecidos em grau bastante. Bastaria cumprir os quatro princípios já postos que o país estaria muito bem, obrigado. Será que a inclusão de mais uma palavra na carta vai mudar alguma coisa?

O uso dos recursos públicos para garantir a privilégios de um grupo seleto de agentes públicos não é moralmente aceitável porque não traz qualquer melhoria na qualidade de vida da população que vem a ser a responsável por bancar uma pesada carga tributária para manter o governo ostentação.

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Sobre o autor
Fabiano Batista Correa

Advogado, Professor de Direito Administrativo, Gestão Pública, Direito Constitucional e Direito Tributário

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CORREA, Fabiano Batista. Governo ostentação: a utilização de veículos de luxo no serviço público e o princípio da eficiência . Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 27, n. 6770, 13 jan. 2022. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/95695. Acesso em: 25 abr. 2024.

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