Caso Kiss: a balbúrdia jurídica

05/01/2022 às 19:30
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No último ano, vimos o Júri da Boate Kiss e o trágico resultado empenhado pela acusação (MPE/RS), por que trágico?

O que se discutia era a culpa consciente e o dolo eventual que nada mais é a culpa com previsão, ou seja, o agente pratica o fato prevendo a possibilidade de ocorrência de um resultado, mas confia em suas habilidades para que o resultado não ocorra; por outro lado, no dolo eventual, o agente não persegue diretamente o resultado (dolo direto), mas com sua conduta, assume o risco de produzi-lo com indiferença, ou seja, não se importa.

Ora, quem acompanhou os 10 dias de júri viu claramente que não houve, de fato, homicídio doloso por dolo eventual. As provas, testemunhas, os autos do processo etc., mostra um fato culposo (negligência, imprudência ou imperícia), menos dolo (é a vontade livre e consciente de um sujeito, dirigida a se produzir um resultado, a concretizar as características objetivas do tipo penal).

Ademais, a acusação sustentou o dolo eventual num nível fora dos limites, comparar um fato histórico (o holocausto) com este caso foi desumano e desrespeitoso aos familiares.

Partindo no momento da sentença, Juiz se debruçou no art. 492, alínea e, sendo:

e) mandará o acusado recolher-se ou recomendá-lo-á à prisão em que se encontra, se presentes os requisitos da prisão preventiva, ou, no caso de condenação a uma pena igual ou superior a 15 (quinze) anos de reclusão, determinará a execução provisória das penas, com expedição do mandado de prisão, se for o caso, sem prejuízo do conhecimento de recursos que vierem a ser interpostos;

Ora, este dispositivo é claramente inconstitucional, pois é incompatível com princípio constitucional da presunção de inocência. Assim, a Constituição Federal é clara ao estabelecer que qualquer sanção penal só pode ser executada após o trânsito em julgado da condenação, isto é, a regra é a liberdade e a exceção é a prisão preventiva, ou seja, é ultima ratio, quando há, de alguma forma, o Periculum Libertatis (perigo de liberdade).

Aliás, o Juiz, fatidicamente, fundamentou a sentença, com todas as palavras, com a pena alta por conta do sistema de progressão de regime, ou seja, totalmente desproporcional, fora dos limites legais, surreal!

Diante ao exposto, o circo de horror começou depois do sensacional HC preventivo do Dr. Jader Marques, concedido pelo TJRS em um pedido de liminar.

A HC preventiva surpreendeu todos, literalmente, todos que estavam acompanhando o caso. Após a sentença condenando os réus e o juiz exigindo execução da pena, a HC preventiva assegurou a liberdade dos 4 réus, jogada de mestre!

Entretanto, o MP não se contentou, cassou a suspensão da liminar (SL 1504) diretamente no Supremo Tribunal Federal (STF), suprimindo instâncias, pois não se pode subir para instância superior senão está esgotado a instância inferior; ademais, em HC a instância recursal é, necessariamente, o Superior Tribunal Justiça, e, o pior de tudo, violando a súmula 691 STF.

Dá para entender esta jogada suja dos representantes do Parquet, pois o STJ, tanto na QUINTA quanto na SEXTA turma, tem o entendimento predominante de que não se admite a execução imediata de condenação pelo Tribunal do Júri, sob pena de afronta ao princípio constitucional da presunção de inocência. Então, qual é a jogada? Suprime instancia e entrega direto na mão do Min. Punitivista e sem amparo constitucional, e foi o que vimos acontecer.

O MPE/RS se debruçou na discussão a respeito do princípio constitucional da soberania do veredicto:

(...) ao impedir a execução imediata da condenação, causa manifesta lesão à ordem jurídico constitucional, à ordem social e à segurança pública, pois uma vez proferido o veredicto condenatório pelo Tribunal do Júri, estaria preclusa a discussão acerca da materialidade e autoria delitivas, formando-se título passível de imediata execução. Aduz, nesse sentido, que uma vez encerrada a discussão fática com o julgamento pelo Tribunal do Júri, o cumprimento das sanções cominadas em processo criminal deve ser a regra, a determinação de recolhimento dos condenados ao cárcere, como na hipótese em liça, não mais depende do exame dos requisitos previstos no artigo 312 do Código de Processo Penal, porquanto representa a execução imediata da pena imposta em conformidade com o soberano veredito da Corte Popular.

Ora, não é da competência do Conselho de Sentença calcular e aplicar a pena, mas sim do juiz, ou seja, a desculpa do MP para impetrar HC direto no STF discutindo uma temática constitucional não tem cabimento algum. Pior, o show de horrores não acaba por aí!

Após essa balburdia jurídica, o Min. Fux susta os efeitos de eventual concessão do Habeas Corpus concedido pelo TJ/RS, aliás, reiterando a determinação de cumprimento imediato das penas atribuídas aos réus (...).

Dessa forma, Fux rasgou e enterrou a Constituição Federal, aquela que prometeu respeitar. O Min. Punitivista, criou uma insegurança jurídica contra Remédio Constitucional (Habeas Corpus) perigosíssimo!

Por fim, o Presidente da Suprema Corte do Judiciário brasileiro, diante a um Estado Democrático de Direito, susta os efeitos de uma HC é uma afronta a democracia, se equiparou a Ditadura, ao dispositivo mais horrendo da ditadura, AI-5. Em pleno recesso forense, há no ar está insegurança jurídica quanto a credibilidade do STF.

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Além disso, o MPE/RS não buscou justiça neste processo, pediu uma condenação de um crime que não ocorreu (homicídio doloso por dolo eventual), fez atrocidades jurídicas para manter os 4 réus no sistema carcerário. Enfim, a injustiça venceu e a vingança foi feita!

Não citei as inúmeras nulidades ocorridas no julgamento, até porque são muitas, mas ainda há muita água para rolar e a defesa não vai se calar diante a essas balburdias!

Sobre o autor
Jonathan Ferreira

Acadêmico de Direito pela universidade Estácio de Sá com foco em Dir. Penal, Dir. Proc. Penal, Dir. Constitucional Brasileiro. Administrador e fundador da página Âmbito Criminalista, no qual ajudo pessoas a entenderem o Direito Penal de forma simples e descomplicada. Amante da Sabedoria e estudante da psicanálise lacaniana em conjunto com a seara penal.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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