1. Introdução
A crise ocidental tão aludida nos últimos tempos, principalmente no séc. XXI, ganha diversas matizes de acordo com as preferências políticas de cada enunciador. Diante de nossa limitação e precaução quanto à realidade da interpretação, nos atentaremos à educação universitária do Direito em seu molde brasileiro atual.
É claro e preocupante o expansionismo dos cursos universitários de Direito no Brasil. Digo expansionismo, pois as faculdades que não possuam seus cursos na web estão à procura de tal nicho mercadológico. É um modus pensandi. O aluno, ante as facilidades das vias digitais, pouco reclama da escassez formativa desses cursos. O reino dos técnicos ou Tecnocracia é uma regra contemporânea. Os futuros juristas nada possuem de formação antropofilosófica ou, simplesmente, humana - quando muito, possuem um curso técnico de Direito, pago à caras custas.
Diante de tal quadro, o sentimento grupal só cresce. Não há força pessoal ou intelectual que permita ao jurista uma "existência independente", só a voz do grupo dará uma "existência válida" ou uma carreira profissional, dita, interessante ou "de sucesso". Buscaremos explicar esse fenômeno alicerçados principalmente no conceito de crise do filósofo brasileiro, e esquecidíssimo, Mário Ferreira dos Santos.
2. Metafísica da "crisis"
"Todo existir está em crisis. E o homem é a estrutura quaternária dessa crisis" (Mário Ferreira dos Santos. Filosofia da Crise. 3ª ed., pág 12).
Desde o começo do séc. XX, principalmente, o tema da crise é recorrente na Filosofia e várias soluções foram apresentadas. Sartre buscou dar uma solução à crise da existência, Husserl buscou dar alguma resposta à crise do conhecimento científico. Mário atenta a essa aporia do seu tempo e estabelece que o próprio existir humano é uma "crisis", pois tudo se apresenta para nós como tensão, um problema a ser resolvido.
O homem, diz ele, "é a consciência da crise" (Filosofia da Crise, 3ª ed., pág. 19) tendo em vista que só ele é apto a perceber essa condição metafísica. Somente o homem pode percebê-la, racionalizá-la, criticá-la e, de algum modo, amenizá-la. A crítica só existe porque nossa existência é crítica.
A "crisis" é uma separação. É um algo que existe entre mim e os demais seres humanos, eu e as demais coisas existentes, que por uma impossibilidade metafísica não são eu. O próprio "algo entre" não se confunde comigo. A minha individualidade é diversa de todo o mais, até no tempo não haverá outro "eu" quando eu morrer.
A "crisis" é uma insatisfação. Esse distanciamento nos coloca sozinhos, cada um. Deste modo, o outro ou o ente diverso nunca me satisfaz por completo, pois comigo ele não possui igualdade, mas apenas semelhança, proximidade etc.
"Mas nós sofremos, quando nos sentimos sós, únicos, na nossa unicidade, separados por um abismo de todos os outros, famintos de uma fusão, de algo que nos una, mas sentindo, após as nossas embriaguezes, em que coincidimos com os outros, a irremediável desilusão, e a certeza não desejada de que há algo em nós, cuja sombra jamais se fundirá com as sombras dos outros (Mário Ferreira dos Santos. Filosofia da Crise. 3ª ed., pág. 29).
Mas o que há nesse entre? O "nada" não pode ser, pois haveria um vazio que impediria minha percepção, compreensão. Esse "algo entre" é o limite. Este delimita não só o que algo é, como também o que não é, portanto, é dialético. Há três tipos de limite:
Figurativo: a delimitação corporal, exterior, "última superfície";
Formal: a delimitação formal-intrínseca, a razão da coisa, a quididade (o que é);
Ambiente-circunstancial: a fronteira do não-ser.
Ficaremos por aqui com as considerações metafísicas. Consideremos os elementos-chave do conceito de "crisis": separação, insatisfação e limite.
3. A "crisis" na vida prática
Preliminarmente, é interessante esclarecer que a terminologia "vida prática" diz respeito ao uso cotidiano da razão e saberes práticos, como medicina, artes mecânicas, sociologia etc, em suma, conjunto de saberes que colaboram para que o homem tenha uma vida cotidiana sã - vide Ética, precipuamente.
A "crisis" na sua verve metafísica, conhecida em linhas gerais, deve nos levar a uma melhor compreensão do homem na sua figura mais impactante: o outro. A separação, que é relativa à substancialidade, é suplantada - via anímica - por um estado de meditação mútua (ver Louis Lavelle, Conduite à légard dautrui) no qual mutuamente as duas pessoas consideram elementos da vida do outro e chegam, ou deveriam chegar, à "crisis".
Todavia, com a incompreensão mútua predominante na sociedade contemporânea, criada principalmente por ideologias políticas, impede que o indivíduo perceba o abismo entre ele e o outro, "diferente", e gera um movimento de agrupamento.
A consciência procura um gozo amargo nos seus estados violentos e dolorosos donde o amor próprio está como que vivo e, pelo abalo mesmo que eles imprimem ao corpo e à imaginação, nos dão, enfim, a ilusão de haver penetrado como que à raiz mesma do real (Louis Lavelle, La Présence Totale, Introduction, Tradução minha).
Veja: eu, impossibilitado de compreender aquele que me é adverso, procuro algum elemento de semelhança com alguém e o elemento político, predominante na cultura, leva a aproximar-me de um determinado grupo. Esse grupo desconhece a separação - a crisis - existente entre esses componentes. A "voz" que ressoam é o fator unitivo. Nunca se viu tantos grupos políticos e munidos de tamanha repulsa mútua.
O grupo não me deixa "insatisfeito", porém, os demais sim. O fator unitivo supera dissidências ou problemas. A compreensão do "limite" inerente se fecha. No grupo, não há compreensão. É a satisfação da minha subjetividade que os demais componentes devem realizar.
Passemos ao mundo jurídico.
4. A "Crisis" no meio universitário do Direito
O jovem aluno da cátedra jurídica entra no meio universitário tendo que aderir a um grupo. Sua própria produção acadêmica é grupal - diversos autores para um artigo. O tema de sua produção deve adequar-se ao predominante, nada de desvios (ver Intelectual Orgânico in Olavo de Carvalho, A Nova Era & a Revolução Cultural).
Não há conhecimento efetivo na adequação ao temário de um grupo. Só interesse mais sinceridade pode resultar numa atividade intelectual genuína.
Noutra vertente, as vias digitais em expansão relegaram ao Direito o mister de representante da vontade dos tecnocratas de toga - a Juristocracia. Não há formação humana, mas um mero acumular de "conteúdos jurídicos" em vista do Exame da Ordem dos Advogados do Brasil ou concursos públicos.
A aludida formação humana começa por situar o homem na "crisis" também.
Segundo Bernard Lonergan (em Tópicos da Educação, 2019), os paradigmas da educação contemporânea são: as massas, a nova aprendizagem (evolução tecnológica) e a especialização. Os cursos jurídicos inflaram, digitalizaram-se e tornaram-se técnicos. Ou seja, caíram num poço.
Não há problema na democratização da função de jurista, contudo, ela veio com um decaimento na formação do mesmo (https://www.extraclasse.org.br/educacao/2021/12/a-expansao-desenfreada-do-setor-mercantilista-de-educacao/).
Retornemos ao conceito proposto anteriormente. A "crisis" é a nossa existência, que é um separar-se. Por que, então, nos comportamos como o homem-massa orteguiano? Nos agrupamos e anulamos a nossa consciência diante de uma utópica "consciência de classe" (ver Mentalidade de Grupos in https://www.scielo.br/j/pusp/a/gTCXvtbP7WD7MmQVpv6DxRP/?lang=pt). Só há consciência no homem, nesse "separado".
Um adendo. Esta crisis formativa do Direito não está alheia aos projetos mundiais de dominação. Dentro do projeto megacapitalista (Da Subversão in Globalismo e Ativismo Judicial, Márcio Luis Chila Freyesleben, 2020), caracterizado por cinco etapas (elaboração, operacionalização, culturalização, mundialização e institucionalização), a adequação de um desconhecido pretenso mestrando em Direito está situada na culturalização, ou seja, a expansão de teses previamente elaboradas, e com financiamentos desconhecidos, para os mais recônditos recantos universitários de forma que parece para si mesmo e para seu orientador uma genuína produção própria, quando na verdade, o pretenso mestrando está apenas adequando-se ao tema aceito pela comunidade universitária, que chancela ou não a ascensão social de muitos por esse processo de carimbo ideológico.
Portanto, não há produção genuína. Um exemplo: teses sobre, ou que ao menos citam, os demasiadamente citados Enrico Tullio Liebman, Oskar Von Bulow, António Gramsci, Luigi Ferrajoli ou Mauro Cappeletti só reverberam o sociologismo jurídico destes, corrente com amplo amparo no marxismo, seja ortodoxo ou não.
Desconhecendo essa separação que correntes de pensamento suscitam na sua concreção (termo da metodologia de Mário Ferreira dos Santos), o acadêmico coloca-se numa posição de insatisfação não pela separação, que ele desconhecer ser, metafísca, mas considera como meramente intelectual ou ideológica e busca, assim, mudar o mundo numa clara demonstração de fé metastática em si mesmo (ver Eric Voegelin, Reflexões Autobiográficas). Buscando romper, ao menos na sua mente, o limite metafísico formal - de diferenciação das essências -, ele embrenha-se na adequação ao establishment, por depender deste para ganhar seu soldo público ou privado com financiamento público.
5. Conclusão
A mudança institucional só ocorre após décadas de fomento cultural em dado sentido. Impossível procurar agora medidas alternativas que atenuem o problema formativo dos operadores do Direito, seja mudança de grande com ampliação da dedicação às matérias propedêuticas ou definição - via MEC - de linhas de pesquisa diversa. Apenas a dedicação individual em realizar efetivamente o ofício do jurista, que suscita um amplo conhecimento antropológico, filosófico e histórico, poderá colocá-lo numa posição de compreensão do homem, necessária ao hábito da justiça. Justiça é hábito, diz São Tomás de Aquino.
A crisis é separação, insatisfação e limite. Só Deus, o Ser, do qual participamos, ou seja, que em todos os entes tem sua parcela, portanto tem em mim, no outro e no limite, pode transpor esse abismo metafísico - que tem ser - pela via do amor, pela Caritas.
Todo o existir é separar-se; esta frase denota a evidente separação que temos de todo o mais. Qualquer forma de agrupamento, de reunião, por vias ideológicas subverte mentalmente no indivíduo essa ordem que é básica para a compreensão do homem, pois, conhecer o homem inicialmente é conhecer seu posto metafísico, o entre-meio platônico. Alugar o seu lugar no grupo é perder a humanidade.