Em tempos de pandemia COVID-19, momento em que se escancara o que há muito se esconde, a pobreza e a desigualdade se torna algo trivial, partindo do pressuposto que nós brasileiros temos que nos acostumar a ver senhores de 70, 80 anos revirando lixo para ter o que comer e poder dar o de comer para seus filhos, netos e demais familiares, assim como fila para recebimento de doações de ossos e disputa de seres humanos por gorduras antes destinadas a ração animal, e confecção de sabão, com cães de rua.
Famílias em São Paulo fazem da Praça da Sé e Avenida Paulista seu novo lugar de moradia, em barracas improvisadas, tendo em vista os despejos, desocupações, reintegrações de posses que não pararam no estado considerado mais rico do país, em plena pandemia. Crianças sem poder frequentar as escolas públicas fechadas, com a sorte de possuírem um celular conseguem utilizar rede wi-fi de praças e ruas para acesso ao ambiente escolar virtual, na presença de dependentes químicos e moradores de rua, como vizinhos de precariedade e falta de políticas públicas.
Não é de hoje que o Brasil é conhecido por sua extrema desigualdade social. João Fernando de Almeida Prado, no livro O Brasil e o Colonialismo Europeu1 , com riqueza de detalhes como foi a colonização brasileira.
Em passagem contida no livro, o comerciante J.B Moore, que morou por 15 anos no Brasil respondia ao Parlamento britânico, em interrogatório, após a proibição do tráfico negreiro pelos ingleses:
"Perguntado mais, se o governo brasileiro não impunha medidas internas para obstar o comércio de escravos, respondeu que os traficantes desfrutavam de absoluta liberdade para se organizarem e comerciarem"2.
No decorrer da obra é explanado como Dinamarca em 1802 proibia a prática do tráfico, a Suécia em 1813 também a proibia, a considerando ilegal e em 1814 Holanda idem, bem como objetivavam o fim do tráfico negreiro a nível mundial.
A Grã-Bretanha, embora em 1815 tenha decretado a extinção do tráfico negreiro, à época explorava minério no Brasil e as principais minas do Império estavam em poder dos ingleses, que se utilizavam da mão de obra escrava, ou melhor, "empregavam quem podiam, de acordo com as condições locais, de sorte a figurarem negros livres e escravos entre os trabalhadores"3, o que era vedado por disposições legais da Inglaterra.
O livro deixa evidente como a Inglaterra repreendia tráfico negreiro do Brasil não por ideais humanitários e sim por ver no Brasil forte concorrente e uma extrema desigualdade, visto que a Grã-Bretanha não mais comercializava e utilizava mão-de-obra escrava, ao passo que o Brasil sim.
Em fragmento de outro depoimento prestado ao Parlamento Inglês, temos4:
Foi-lhe também perguntado como poderiam as colônias britânicas competir com Brasil e Cuba: Eu acho que isso depende inteiramente do comércio de escravos. Se os brasileiros como no momento podem, importar tantos escravos quanto desejam, eu não acho que em quaisquer circunstâncias nós poderíamos competir com eles.
Por conta do movimento antiescravagista que foi ganhando terreno no século XVIII, inclusive por Voltaire, "o ilustre escritor, posto acionista da Companhia das índias Ocidentais, envolvida no tráfico nefando, de que tirava o melhor de seus proventos, elevava-se contra a política colonial das grandes potências europeias"5.
A situação acima descrita, somada aos constantes episódios de piratas que sequestravam os navios negreiros para roubar a carga de víveres, com a forte repressão inglesa, os escravos se tornam cada vez mais caros e então começa-se a pensar em mão de obra camponesa europeia em sua substituição, para as fazendas de café.
O texto vai além ao mencionar a alta tributação brasileira dos escravos, o que impedia inclusive o aumento da produção6:
No Brasil os escravos sempre custaram caro, porquanto além das perdas em viagem, sofriam forte tributação do governo. Em 1797 escrevia o futuro Conde de Linhares, que tantos benefícios prestaria ao Brasil nascente: Os direitos que pagam os negros, não quando entram no Brasil, mas quando vão entrando nas capitanias centraes, depois de terem já pago ao sahir de Angola e dos nossos estabelecimentos na costa d´África, parecem não só excessivos, mas necessariamente diminuem a produção, porque impedem o aumento dos braços e dos instrumentos, que devem cultivar e fazer produtivo o terreno.
O historiador, membro da Academia Brasileira de Letras, continua, às folhas 288:
Não havia escravos que chegassem. Todo o império luso repousava sobre o trabalho do preto. A razão de ser do recém fundado Banco do Brasil depois da chegada do Regente, não se prendia tanto a funções auxiliadoras diretas da produção, mas principalmente de estender créditos a atividades ligadas ao café e ao tráfico negreiro, que dependia a prosperidade local. O braço necessário à agricultura era a providência inicial a qualquer empresa. Com abundância de instrumentos agrícolas, como eram os cativos remetidos da África, tudo se tornava possível. Sem eles, nada se conseguia, o produtor cerceado na produção, o governo sem recursos para dar largas ao seu colonialismo no sul do continente, o tesouro além de vazio, endividado, atrasado nos vencimentos, desmoralizado dentro e fora de fronteiras.
De mediana clareza compreender o que o negro e o tráfico negreiro representaram no Brasil sem eles, nada seria viável, grandes potências mundiais invejavam sua ascensão ao se utilizar de trabalho escravo e o Império lucrava muito com os altos tributos.
Ao longo da obra é explicitado o que era o tráfico negreiro, de odo que podemos concluir como o grande poeta abolicionista Castro Alves, em Navio Negreiro, soube expressar com primazia o horror, a brutalidade e a desumanidade que os negros passaram desde o arrebatamento na África até chegarem ao Brasil, quando chegavam.
Achille Mbembe com propriedade assevera: "Humilhado e profundamente desonrado, o Negro é, na ordem da modernidade, o único de todos os humanos cuja carne foi transformada em coisa, e o espírito, em mercadoria a cripta viva do capital"7.
Marquis de Condorcet, importante filósofo francês que apoiou a Revolução Francesa, em sua obra Réflexions Sur Lesclavage Des Nègres, de 1781, vai clamar por uma punição severa aos traficantes de escravos, bem como expor a forma ignóbil que os escravos eram tratados:
Não pode haver nenhum pretexto para os governos tolerarem, nem o comércio dos negros feito pelos negociantes nacionais, nem alguma importação de escravos. Esse tráfico horrível deve ser proibido não como contrabando, mas como um crime; não é com multas que deve ser punido, mas por penas corporais e desonrosas.[...] Não fazemos, sem dúvida, nenhuma distinção entre um ladrão e um homem que negocia a liberdade de outro homem, que retira de sua pátria, homens, mulheres e crianças; os empilha, os acorrenta a dois, em um navio, calcula sua alimentação, não com base nas suas necessidades, mas em sua avareza; que amarra suas mãos para impedir que se matem; que, calmamente, joga tranquilamente ao mar aqueles cuja venda será menos vantajosa, como se se livrasse primeiro das mercadorias mais vis. Pode-se cometer furtos e não sufocar todos os sentimentos de humanidade, todas as inclinações da natureza, sem perder todas as elevações da alma, toda ideia de virtude, mas não pode restar a um homem, que faz comércio dos negros qualquer sentimento, qualquer virtude, mesmo alguma probidade; se conservasse qualquer aparência, seria a probidade dos bandidos, que fiéis aos seus compromissos culpáveis, limitam seu moral ao ponto de não roubar um ao outro8.
Em 2012, exatos 512 anos do Descobrimento do Brasil, sancionada a Lei de Cotas, a qual determinou em seu artigo 1°, que as instituições federais de educação superior vinculadas ao Ministério da Educação reservassem no mínimo 50% (cinquenta por cento) de suas vagas para estudantes que tenham cursado integralmente o ensino médio em escolas públicas.
Referida lei fixou ainda que: "Em cada instituição federal de ensino superior, as vagas de que trata o art. 1º desta Lei serão preenchidas, por curso e turno, por autodeclarados pretos, pardos e indígenas e por pessoas com deficiência, nos termos da legislação, em proporção ao total de vagas no mínimo igual à proporção respectiva de pretos, pardos, indígenas e pessoas com deficiência na população da unidade da Federação onde está instalada a instituição, segundo o último censo da Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística IBGE", artigo 3° da Lei n° 12.711 de 29 de agosto de 2012.
Em 2014 começa a viger a Lei de Cotas Raciais (12.990). Nos termos de seu artigo 1°, reservado aos negros 20% (vinte por cento) das vagas oferecidas nos concursos públicos para provimento de cargos efetivos e empregos públicos no âmbito da administração pública federal, das autarquias, das fundações públicas, das empresas públicas e das sociedades de economia mista controladas pela União.
Não são raras as fortes críticas ao implemento das cotas, sobretudo por quem renega ou desconhece a história e não tem ciência de que o Brasil foi construído por mão de obra escrava.
Mas e os índios? Certo é que os negros vieram substituir a mão-de-obra escrava dos índios, visto que "um negro fazia o trabalho de quatro índios"9. Gilberto Freyre, em Casa Grande e Senzala nos traz a dimensão de como os índios eram tratados nos primeiros séculos de colonização, se utilizando de registros do historiador Teodoro Sampaio10:
Os ricos-homens usavam proteger as suas vivendas e solares por meio de duplas e poderosas estacas à moda do gentio, guarnecidas pelos fâmulos, os apaniguados e índios escravos, e servindo até para os vizinhos quando de subido acessados pelos bárbaros.
"Formou-se na América Tropical uma sociedade agrária na estrutura, escravocrata na técnica de exploração econômica, híbrida de índio e mais tarde de negro na composição"11.
Rosa Luxemburgo vai nos explicar a questão dos índios e a colonização:
Cada nova expansão colonial é acompanhada, naturalmente, dessa luta encarniçada do capital contra a situação social e econômica dos indígenas que compreende a apropriação violenta de seus meios de produção e de suas forças de trabalho12.
Rousseau em seu Discurso sobre a Origem da Desigualdade vai nos ensinar acerca da desigualdade natural ou física e moral ou política. Enquanto a primeira se assentaria na diferença de idades, saúde, força do corpo e qualidades do espírito ou alma; a segunda se caracterizaria pelos diferentes privilégios que gozam alguns com prejuízo dos outros, como ser mais rico, honrado, mais poderoso que outros e se fazerem obedecer por eles.
Tal foi ou deve ter sido a origem da sociedade e das leis, que deram novos entraves ao fraco e novas forças ao rico, destruíram sem remédio a liberdade natural, fixaram para sempre a lei da propriedade e da desigualdade, de uma astuta usurpação fizeram um direito irrevogável, e, para proveito de alguns ambiciosos, sujeitaram para o futuro todo o gênero humano ao trabalho, à servidão e à miséria13.
O filósofo iluminista vai mais além ao explanar sobre o início das sociedades políticas:
Os pobres nada tendo que perder senão a sua liberdade, seria grande loucura que eles deixassem tirar voluntariamente o único bem que lhes restava, para nada ganhar em troca; ao contrário, os ricos, por assim dizer, sensíveis em todas as partes dos seus bens, era muito mais fácil lhes fazer mal; por conseguinte, tinham mais precauções que tomar para se garantirem; e, enfim, é razoável acreditar que uma coisa devia ter sido inventada por aqueles a quem é útil, mais do que por aqueles a quem devia prejudicar14.
Paulo Bonavides e Paes de Andrade em História Constitucional do Brasil vão explicar que "o problema constitucional do Brasil, como se vê, passa por uma enorme contradição entre a constitucionalidade formal e a constitucionalidade material"15.
Válido trazer à baila o magistério desses dois mestres tão importantes em nosso Direito Constitucional16:
A constitucionalidade formal é perfeita, assimila toda a constitucionalidade material ou com essa convive em íntima conexidade e perfeita harmonia; assimila também os conflitos constitucionais arbitrados sem abalo para a ordem jurídica estabelecida. Mas isso só acontece naqueles países onde a crise constituinte ficou definitivamente afastada em razão da supremacia da sociedade sobre o Estado. De tal sorte que neles a organização política apenas atravessa crises constitucionais, sem expor nunca as instituições e fraturas ou abalos catastróficos. Todas as dificuldades existenciais do sistema se resolvem no quadro da ordem vigente. Em outras palavras, a semelhantes estruturas, tendo já logrado um alto grau de estabilidade, somente se lhes deparam reformas da Constituição, não derivando jamais das tensões políticas que pesam na balança dos interesses um desiquilíbrio produtor daquela hegemonia fatal do Estado sobre a sociedade, em que a relação pública de tutela desfaz os fundamentos democráticos do regime e prepara a dissolução do chamado Estado de Direito.
Enquanto não tivemos que fazer rosto em nossa história ao desafio da constitucionalidade material, traduzida em direitos sociais consagrados no âmbito formal das constituições, foi de todo possível dissimular ou conter a impetuosidade da crise constituinte, sempre presente, mas nunca tão geradora de efeitos desestabilizantes quanto nesta segunda metade do século XX, e menos desestabilizante ou menos complexa por ser ainda a crise constituinte da constitucionalidade formal, aquela atada quase toda a aspectos políticos de formulação de direitos e liberdades individuais ou de consagração formal da regra de separação de poderes, tudo em nome ainda de princípios fundamentais da ideologia liberal.
O trecho a seguir merece destaque, por relatar com esmero a dificuldade de transformar em realidade tudo o que prega a Constituição:
A tragédia do constitucionalismo brasileiro reside em que jamais sequer nos foi possível pela natureza mesma da sociedade - o Império escravocrata e patriarcal fazia avultar a opressão dos fortes sobre os fracos invalidando assim toda veleidade de contrato social, ponto de partida para a eliminação de desigualdades e privilégios - jamais nos foi possível ultrapassar a crise constituinte da constitucionalidade formal; crise basicamente política, em termos tradicionais.
Tocqueville nos aclara como as desigualdades sociais extremas abalam uma democracia:
O bem-estar geral favorece a estabilidade de todos os governos, mas em particular do governo democrático, que repousa nas disposições da maioria e, principalmente, nas disposições dos que são mais expostos às necessidades. Quando o povo governa, é necessário que seja feliz, para que não subverta o Estado. A miséria produz nele o que a ambição faz nos reis17
E não foi o único. Montesquieu também professava "O amor à república, numa democracia, é o amor à democracia; o amor à democracia e o amor à igualdade"18.
Não é de hoje que diversos estudos apontam a relação entre democracia, redistribuição de renda e desigualdade19.
De acordo com relatório de desenvolvimento humano de 2019 do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), a América Latina foi considerada a região mais desigual do planeta20, com gênero, etnia e riqueza dos pais ainda determinando com frequência o lugar de uma pessoa na sociedade.
Conforme o relatório, os rendimentos e circunstâncias dos pais afetam a saúde, educação e rendimento dos seus filhos. As crianças nascidas em famílias com baixos rendimentos são mais suscetíveis a problemas de saúde e grau inferior de escolaridade.
A desigualdade de gênero também desempenha forte barreira ao desenvolvimento humano, impactando a estrutura da sociedade. Poucas mulheres ocupam cargos políticos, posições de destaque na sociedade e a maioria ganham menos que os homens, com triplas jornadas que envolvem educação dos filhos, afazeres domésticos e sobrecarga de trabalho diário. Onde há mais poder, há mais preconceito em relação às mulheres.
Com a pandemia COVID-19, a classe média brasileira encolheu de 51% em 2020 para 47% em 2021 de acordo com estudo do Instituto Locomotiva, já tendo o mesmo tamanho da classe baixa.
Muitos brasileiros que ascenderam socialmente nos últimos anos através de maior renda e melhor economia, com apoio de políticas públicas de transferência de renda, hoje mal têm o que comer e quiçá onde morar.
Essa situação reflete na sociedade como um todo visto que uma parte considerável da população é excluída do mercado de trabalho, deixa de ter possibilidade de mobilidade social através de cursos profissionalizantes, capacitação por parte de empresas e indústrias e até mesmo deixando de empreender, o que geraria empregos e arrecadação de impostos.
Políticas públicas desempenham forte papel na supressão de desigualdades, com apoio a arrecadação de impostos, seja sobre rendimento, riqueza ou consumo.
A distribuição de poder através de políticas de mercado, com apoio de atores da sociedade no papel econômico, com programas de inclusão e igualdade de oportunidades também geram impacto na sociedade e desigualdade.
Ações conjuntas com foco na primeira infância igualmente são extremamente importantes e eficientes no combate às desigualdades.
James Heckman21, economista que ganhou prêmio Nobel em 2000, professor da Universidade de Chicago criou diversos métodos científicos para avaliar a eficácia de programas sociais, sobretudo na primeira infância.
Suas pesquisas apontam que os primeiros anos da infância, até os 5-6 anos, são os anos mais importantes na vida de um indivíduo, visto que a criança aprende a um ritmo espantoso e é justamente durante esse período que as habilidades cognitivas, emocionais e sociais necessárias para o sucesso são adquiridas.
Todavia, tal fase costuma ser negligenciada por falta de boas escolas e creches públicas e no Brasil; milhares de crianças ficam fora das creches porque não há vagas suficientes para todas.
A pandemia COVID-19 agravou esse cenário, tendo em vista o fechamento das creches e a exclusão de crianças do ambiente escolar.
Em 1982 Darcy Ribeiro já dizia que se os governantes não construírem escolas, em 20 anos faltaria dinheiro para construir presídios. Pesquisa realizada pelo Departamento Penitenciário Nacional em 2019 apontou que o Brasil possui uma população carcerária de 773.151 pessoas, com uma superlotação nas penitenciárias de 54,9% acima da capacidade.
Investir na educação infantil se traduz em uma economia mais forte, com força de trabalho qualificada, bem como reduz os custos necessários para educação corretiva, reabilitação da saúde e sistema de justiça penal, visto que países que não investem em primeira infância possuem maior criminalidade, maior evasão escolar, maior taxa de gravidez na adolescência e menor produtividade.
Estudo realizado pela OCDE Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico22, de 2017, demonstrou que uma educação de qualidade na primeira infância aumenta a participação da mulher no mercado de trabalho e em países com alta taxa feminina no mercado de trabalho há mais crianças na escola, e, crianças que frequentam a escola desde cedo possuem melhores habilidades cognitivas e emocional, assim como desenvolvem o gosto pelo aprendizado ao longo da vida, que reduzirá pobreza, desigualdade e melhorará a mobilidade social de geração para geração.
Quanto maior a desigualdade, maior também o afastamento do jogo democrático porque vai ser aí que o populismo fincará raízes com um discurso anti-establishment, reforçando a crise política já existente aliada ao desejo de mudança.
É nesse cenário interligado por crise social-econômica, política-discursiva, cultural - por falta de acesso da população a uma educação de qualidade, e, de certa forma, também moral, pela banalização da fome, miséria e precarização contínua, seja de modo de vida, trabalho, estudo ou da falta dele, que crises de representação começam a surgir através do que denominamos populismo.
Um dos mais respeitados estudiosos do tema na Europa, Andrej Skolkay23, vai definir populismo da seguinte forma:
Populismo é uma forma de nítida retórica política e de políticos, que simplificam problemas e oferecem soluções relativamente simples, sem dor, às vezes muito concretas, mas frequentemente vagas. O político populista se apresenta como um homem comum que entende pessoas, em contraste com as elites corruptas, incapazes e/ou impróprios para governar. Ele se apresenta como representante de todos não privilegiados e sub-previlegiados, sem representação, ou qualquer outro grupo relativamente grande e vagamente representado.
Com líderes carismáticos, ideologias nascem e crescem a partir de eleitores que veem naquele candidato e/ou em sua ideologia a resolução de todos os problemas.
E outros eleitores que simplesmente não mais sentindo-se representados, se afastam do cenário democrático, se abstendo de participar dos pleitos eleitorais porque nada vai mudar.
Rousseau vai nos trazer a concepção de pacto social, onde "Cada um de nós põe em comum sua pessoa e todo o seu poder sob a suprema direção da vontade geral, e recebemos enquanto corpo cada membro como parte indivisível do todo"24.
E dentro dessa concepção partirá a premissa de que todos os cidadãos fazem parte de um grande contrato social, são todos iguais e sua vontade geral é indestrutível.
Não obstante, quando o pacto social é enfraquecido, seja por meio de pequenos interesses de uma pequena minoria sobrepondo-se ao interesse comum, seja através do aumento da distância entre povo e governo com uma menor prosperidade entre todos os participantes do contrato social, há não só o afastamento dos cidadãos da política, mas também o descaso no que se refere aos assuntos do Estado, sobretudo no papel de legislar melhores representantes formulam melhores leis e piores representantes formulam piores leis.
Marcos Coimbra, sociólogo e presidente do instituto Vox Populi argumenta que desde 2013 o interesse da população brasileira por política diminuiu. Os interesses variam de acordo com a renda. Quanto maior a renda, maior o interesse.
Logo, quanto maior poder aquisitivo, mais escolhas voltadas ao seu próprio interesse e não aos dos demais; o que gerará mais desigualdade, maior concentração de renda e falta de políticas públicas voltadas aos menos favorecidos e minorias.
A renomada cientista política Danielle Allen, de Harvard, que estuda a questão da desigualdade política é catedrática ao afirmar que: "Uma educação que prepara estudantes para engajamento cívico e político traz não só a concepção de igualdade política, mas também a perspectiva de contestação política em torno de questões relativas à justiça econômica"25.
Em um país onde a educação já é relegada ao segundo, terceiro, quarto plano, eivado de desigualdades sociais históricas não reparadas, que afastam cada vez mais os pobres e as minorias do jogo político, sem possibilidade de contestação de tudo o que está sendo feito errado, o populismo encontra o cenário ideal e perigoso para se propagar e fortalecer, visto que através de governos eleitos democraticamente a democracia vai sendo esvaziada, como relatado no livro como as democracias morrem:
Muitos esforços do governo para subverter a democracia são legais, no sentido de que são aprovados pelo Legislativo ou aceitos pelos tribunais. Eles podem até mesmo ser retratados como esforços para aperfeiçoar a democracia tornar o Judiciário mais eficiente, combater a corrupção ou limpar o processo eleitoral. Os jornais continuam a ser publicados, mas são comprados ou intimidados e levados a se autocensurar. Os cidadãos continuam a criticar o governo, mas muitas vezes se veem envolvidos em problemas com impostos ou outras questões legais. Isso cria perplexidade e confusão nas pessoas. Elas não compreendem imediatamente o que está acontecendo. Muitos continuam a acreditar que estão vivendo sob uma democracia26.
E com o populismo, vem a polarização. Pessoas que se sentem preteridas na sociedade, capitaneadas pelo populismo viram massa de manobra de partidos e políticos.
O ressentimento alimenta a polarização. O ressentimento de trabalhar e não ter condições de ter uma vida digna, o ressentimento de trabalhar em empregos que pagam mal, sem pouca ou nenhuma segurança e proteção social, alimenta a sensação de não-pertencimento, gera revolta, frustração.
Voltando ao início desse artigo. Como você se sentiria, depois de ter trabalhado honestamente a vida inteira e agora, em plena pandemia, não ter direito a nada e ter que disputar restos de comida de caminhões de lixo com animais de rua? Como você se sentiria em plena pandemia, ao ser despejado do seu barraco, construído às duras penas, com o salário de entregador de aplicativo? Como você se sentiria ao ver seus filhos em uma barraca improvisada na avenida considerada o centro financeiro da cidade mais rica do país? As indagações são muitas e as respostas também.
Políticas voltadas às desigualdades econômicas e sociais são mais que necessárias, mas precisam ser acompanhadas de perto, para que não virem igualmente objeto de polarização e populismo por parte de partidos e políticos.
Há que se pensar em igualdade e diversidade racial, étnica, de gênero para que todos, de forma igualitária possam participar da construção da sociedade que nós queremos vivenciar nos próximos 20, 30, 50 anos e no fortalecimento de nossas bases democráticas, que serão pavimentadas pelas próximas gerações.
"Pluralismo encontra-se no núcleo central da democracia moderna: Se nós queremos uma democracia moderna, nós devemos aumentar o pluralismo e dar espaço para uma multiplicidade de formas de associações e comunidades"27.
O caminho não é fácil e não será. O desafio será constante, mas todos devemos participar porque viver em uma democracia exige isso.
E você? Já fez sua parte hoje?
NOTAS
PRADO, J.F de Almeida. O Brasil e o Colonialismo Europeu. Exemplar n. 1642, Série 5°, Volume 288. São Paulo: São Paulo Editora S/A, 1956.
op. cit., p.174.
op. cit., pag. 178.
op. cit., pag.180.
op. cit., pag.88.
op. cit., pag. 157.
MBEMBE, Achille. Crítica da Razão Negra. 1ͣ Edição. Portugal. Antígona, 2014, p.19.
CARITAT, Nicolas de. CONDORCET, Marquis de. Réflexions Sur Lesclavage des Nègres. La Société Typographique, Neufchatel, 1781. p. 26.
PRADO, J.F de Almeida. O Brasil e o Colonialismo Europeu. Exemplar n. 1642, Série 5°, Volume 288. São Paulo: São Paulo Editora S/A, 1956, p. 103.
FREYRE, Gilberto. Casa-Grande & Senzala: Formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. 48ͣ Edição. Recife: Global Editora e Distribuidora Ltda, 2003, p.18.
op. cit., pag.32.
LUXEMBURG, Rosa. A Acumulação do Capital: Estudo sobre a Interpretação Econômica do Imperialismo. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1970, p.319.
ROUSSEAU. Jean-Jacques. Discurso sobre a origem da desigualdade. Disponível em: <https://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/cv000053.pdf>. Acesso em 16 de dezembro de 2021, p.37.
Ibid., p.38.
BONAVIDES, Paulo; DE ANDRADE, Paes. História Constitucional do Brasil. São Paulo: Editora Paz e Terra S/A, 1991, p.9.
Ibid., p.10.
TOCQUEVILLE, Alexis de. A Democracia na América Livro 1 Leis e Costumes. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 328.
MONTESQUIEU. O espírito das leis. São Paulo: Martins Fontes. 2000, pag.54.
-
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