Aplicação, aos processos em trâmite, da prescrição intercorrente inserida na Lei de improbidade administrativa

13/01/2022 às 11:33

Resumo:


  • A Lei n. 14.230 de 2021 alterou a Lei de Improbidade Administrativa para estabelecer um prazo prescricional de 8 anos, aplicável a todos os agentes públicos e particulares envolvidos, com possibilidade de suspensão e interrupção desse prazo.

  • As mudanças na legislação visam garantir a constitucionalidade das normas prescricionais sob a ótica do Direito Constitucional, desconsiderando o Direito Civil ou Processual Civil para esses fins.

  • O conceito de prescrição intercorrente foi introduzido como foco, permitindo a sua aplicação em processos em curso e destacando sua fundamentação nos artigos constitucionais que asseguram a razoável duração do processo e a celeridade de sua tramitação.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

I DELIMITAÇÃO DO TEMA

O legislador, em outubro de 2021, pela Lei n. 14.230, alterou a formatação originariamente prevista na Lei n. 8.429, de 1992, quanto à incidência da prescrição na ação por ato de improbidade administrativa, o que motiva a transcrição de excerto pertinente:

"Art. 23. A ação para a aplicação das sanções previstas nesta Lei prescreve em 8 (oito) anos, contados a partir da ocorrência do fato ou, no caso de infrações permanentes, do dia em que cessou a permanência.

§ 1º. A instauração de inquérito civil ou de processo administrativo para apuração dos ilícitos referidos nesta Lei suspende o curso do prazo prescricional por, no máximo, 180 (cento e oitenta) dias corridos, recomeçando a correr após a sua conclusão ou, caso não concluído o processo, esgotado o prazo de suspensão.

[...].

§ 4º. O prazo da prescrição referido no caput deste artigo interrompe-se:

I pelo ajuizamento da ação de improbidade administrativa;

II pela publicação da sentença condenatória; 

III pela publicação de decisão ou acórdão de Tribunal de Justiça ou Tribunal Regional Federal que confirma sentença condenatória ou que reforma sentença de improcedência;

IV pela publicação de decisão ou acórdão do Superior Tribunal de Justiça que confirma acórdão condenatório ou que reforma acórdão de improcedência; 

V pela publicação de decisão ou acórdão do Supremo Tribunal Federal que confirma acórdão condenatório ou que reforma acórdão de improcedência.

[...].

§ 5º. Interrompida a prescrição, o prazo recomeça a correr do dia da interrupção, pela metade do prazo previsto no caput deste artigo.

[...].

§ 8º. O juiz ou o tribunal, depois de ouvido o Ministério Público, deverá, de ofício ou a requerimento da parte interessada, reconhecer a prescrição intercorrente da pretensão sancionadora e decretá-la de imediato, caso, entre os marcos interruptivos referidos no § 4º, transcorra o prazo previsto no § 5º deste artigo".

O legislador alterou o sistema até então vigente, com base no qual, desigualmente, a depender do vínculo do agente com a Administração Pública, fluía o termo a quo do prazo prescricional para fins de propositura de ação de improbidade administrativa.

Com a alteração legislativa, o prazo prescricional passou a ser contado da data de ocorrência do fato (LIA, art. 23, caput), para todos os agentes públicos e particulares com eles envolvidos, dispondo o legislador, ademais, a respeito das hipóteses de suspensão (LIA, art. 23, § 1º) e de interrupção (LIA, art. 23, § 4º, incisos I a V). Também determinou que a fluência dos prazos, nos casos que especifica, deverá ser averiguada de ofício ou a requerimento da parte (LIA, art. 23, § 8º), para fins de reconhecimento da prescrição intercorrente da pretensão sancionadora.

Nesta oportunidade, adota-se a prescrição intercorrente como recorte para análise, tendo como foco a constitucionalidade da norma e a sua aplicação aos processos em curso.

II PARÂMETROS PARA A AFERIÇÃO DA CONSTITUCIONALIDADE DAS NOVAS REGRAS DE PRESCRIÇÃO

À luz da compreensão doutrinária e jurisprudencial já pacificada, e tendo em conta a previsão legal (LIA, arts. 1º, § 4º, e 17-D, caput)[1] de que as sanções por improbidade integram o direito administrativo sancionador, o exame da incidência das novas disposições relacionadas à prescrição, inseridas na Lei de Improbidade Administrativa, há de ser feito sob a ótica do Direito Constitucional, exclusivamente, não do Direito Civil ou do Direito Processual Civil.

Precisamente em razão disso, não devem ser consideradas as disposições contidas nas cabeças dos artigos 17 da LIA[2] que tão somente trata do modo pelo qual os atos processuais devem ser cumpridos no trâmite da ação por improbidade administrativa e 6º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro[3], porque não se cogita de proteger ato jurídico perfeito, direito adquirido ou coisa julgada. Por certo, com relação ao instituto do direito adquirido, há inaplicabilidade, nestes casos; quanto ao primeiro, ao qual se associa a máxima tempus regit actum, não se pode esquecer que ato jurídico perfeito não emana da lei; é negócio jurídico ou ato jurídico stricto sensu, fundado nela e, induvidosamente, o processo judicial a isso não se equipara; por fim, quanto à coisa julgada, a sua eficácia é atingida pela lei mais benigna, consoante precedentes do Supremo Tribunal Federal[4].

Não é razoável supor que a petição inicial apresentada pelo autor, e até mesmo a sentença ou acórdão lavrados, com aplicação de sanções, em ação por improbidade administrativa (repressiva, sancionatória), possam ser considerados atos jurídicos imunes à lei nova mais benéfica, salvo em flagrante desprestígio ao inciso XL do artigo 5º da Carta da República.

A retroatividade da lei benigna em direito punitivo ocorre por força da Constituição que, por óbvio, está acima da lei. Exatamente por isso que retroopera a anistia. O pior não retroage; o favorável, sim. Também ex vi do mesmo preceito constitucional a prisão preventiva decretada com base em lei antiga que, com o advento de lei nova não lhe dá suporte, deve ser revogada.

Conforme Celso Antônio Bandeira de Mello, não há, pois, cogitar de qualquer distinção substancial entre infrações e sanções administrativas e infrações e sanções penais[5], mesmo porque, como observado por Emerson Garcia, membro do MP-RJ, em que pese a sua natureza extrapenal, a aplicação das sanções cominadas na Lei de Improbidade, não raro, haverá de ser direcionada pelos princípios básicos norteadores do direito penal, o qual sempre assumirá uma posição subsidiária no exercício do poder sancionador do Estado, já que este, como visto, deflui de uma origem comum, e as normas penais, em razão de sua maior severidade, outorgam garantias mais amplas ao cidadão[6].

Em comentários ao § 16 do artigo 153 da Emenda n. 1 à Constituição de 1967[7], com ressonância parcial no texto do inciso XL do artigo 5º da Lei Fundamental de 1988, Pontes de Miranda leciona:

"Uma das consequências do texto é que pode ter o juiz de aplicar lei que não foi a do tempo do crime, nem é a que está em vigor no momento da condenação, por ter havido, no período intermédio, lei mais favorável, que retroagiu. O Estado, dir-se-á, renunciou, uma vez, à severidade, e tem-se de levar em conta essa atitude dele; mas o fato só da renúncia não basta, porque, se não existisse a regra jurídica, a renúncia à dureza da pena não teria qualquer eficácia no passado.

A ratio iuris está em que se supõe que o legislador de hoje seja mais esclarecido do que o de ontem, e mais do que o de hoje o legislador de amanhã, e dever-se atender à minoração da pena. [...]. Não se trata apenas de revogabilidade, e sim de retroeficácia da lei: faz-se incidir a regra jurídica em fatos que ocorreram antes dela. [...]"[8].

Tratando-se de direito punitivo, há retroatividade in mitius, um direito irrenunciável do beneficiado, pois não se admite possa o Estado olvidar a prescrição para sancionar, tanto que deve ser reconhecida e declarada ex officio pelo julgador (LIA, art. 23, § 8º).

É um contrassenso jurídico e hermenêutico supor que normas componentes do direito punitivo estatal, favoráveis ao acusado por improbidade, possam ter significação restritiva. A se admitir essa possibilidade, outro disparate exsurge: a interpretação extensiva para punir. Lamentavelmente, essa compreensão vem embutida no argumento de que o novo prazo prescricional deva ser contado somente nos casos novos ou a partir da chegada da Lei n. 14.230, de 25 de outubro de 2021, dada a ausência de regra transitória.

Aqui, relevante relembrar que Cesare Beccaria, ainda em 1764, lecionou que a autoridade de interpretar leis penais não pode ser atribuída nem mesmo aos juízes criminais, pela simples razão de que eles não são legisladores, ou seja, o direito de punir deve resultar das seguintes premissas: a maior deve ser a lei geral; a menor, a ação conforme ou não à lei; a consequência, a liberdade ou a pena[9]. Continua atual essa compreensão e, por certo, tem aplicação nas hipóteses de improbidade administrativa, dado o caráter sancionatório.

Nesse contexto, o novo disciplinamento prescricional deve ser avaliado tendo por parâmetro o inciso XL do artigo 5º da Lei Fundamental, não sendo pertinentes à espécie a doutrina e a jurisprudência civilistas nem a legislação civil (v. g., CPC, art. 14), nem sequer sob o fundamento de necessidade de regra transitória (v.g. CC, art. 2.028[[10]]; CPC, arts. 921, § 4º, e 1.056[[11]]).

III SOBRE A PRESCRIÇÃO INTERCORRENTE

III.1 FUNDAMENTO DE VALIDADE: ARTIGOS 5º, LXXVIII, 22, I, E 37, § 5º, DA CARTA DA REPÚBLICA

A prescrição, antecedente ou superveniente (intercorrente) à propositura da ação tem uma mesma natureza: é instituto de direito material[12],[13]. A última modalidade, por alguns doutrinadores, tem sido vinculada ao direito processual e, não raras vezes, no intuito de afastar a sua aplicação aos processos que versam sobre improbidade administrativa, em curso.

A prescrição intercorrente, no nosso sistema jurídico, tem sido declarada quando o autor permanece inerte por determinado período, normalmente aquele do direito material objeto da pretensão (v.g., CPC, arts. 921, § 4º, e 1.056; STF, Súmula n. 150). Contudo, não há vedação a que o legislador estabeleça, em lei ordinária, outras hipóteses de prescrição superveniente à instauração do processo. Ao contrário, existe autorização (explícita e implícita) na Lei Maior para que isso ocorra, bastando a leitura dos artigos 5º, inciso LXXVIII, 22, inciso I, e 37, § 5º[[14]], de sorte que as modificações empreendidas pelo legislador na Lei de Improbidade Administrativa, especificamente no artigo 23, encontram fundamento de validade nestes dispositivos constitucionais.

Desvinculou-se o legislador, na nova redação do artigo 23 da LIA, da prescrição intercorrente que recai somente quando da inércia da parte autora. O intuito do legislador, manifesto, foi o de assegurar a razoável duração do processo, fixando prazos para a celeridade de sua tramitação (LIA, art. 23, § 4º, incisos I usque V), em consonância com o preconizado no inciso LXXVII do artigo 5º e tendo por arrimo explícito o § 5º do artigo 37, ambos da Lei Básica Nacional, que, quanto a isso, importante frisar, o constituinte não criou uma reserva de densificação restrita ao estabelecimento exclusivo da prescrição anterior ao ingresso da ação, tanto que a referência é ao gênero (a lei estabelecerá os prazos de prescrição para ilícitos praticados por qualquer agente) e não às espécies (antecedente ou intercorrente).

Não fazer incidir a prescrição intercorrente inserta no artigo 23 da Lei de Improbidade Administrativa pela Lei n. 14.230, de 2021, além de afronta aos dispositivos constitucionais já mencionados, importa violar um conjunto de garantias processuais individuais que constam do artigo 5º da Carta Política Nacional, o preceito da separação dos poderes (CF, art. 2º) e o princípio da segurança jurídica, no qual se alicerça o sistema de justiça e constitui pilastra maior do Estado Democrático de Direito.

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As garantias processuais individuais vulneradas por eventual inaplicação da prescrição intercorrente em debate, são: (a) da igualdade (CF, art. 5º, caput), porque requeridos em ações de improbidade em trâmite concomitante receberão tratamento desproporcional e incoerente (os das ações anteriores a 25/10/2021 não serão beneficiados pela prescrição intercorrente; os das posteriores, sim); (b) da legalidade (CF, art. 5º, inciso II), haja vista que a prescrição, estabelecida, existe independentemente da vontade daqueles a quem possa prejudicar ou favorecer. A lei que a cria é rigorosamente obrigatória[15], mas, in casu, estar-se-ia desprezando-a em prejuízo de alguns agentes; (c) da retroatividade da lei sancionatória benigna (CF, art. 5º, inciso XL); e (d) do devido processo legal, que também significa o direito a regular curso de administração da justiça pelos juízes e tribunais[16].

III.2 SOBRE A SUPOSTA VIOLAÇÃO AOS PRINCÍPIOS DA PROTEÇÃO ESTATAL INSUFICIENTE E O DA VEDAÇÃO DE RETROCESSO

Têm se valido defensores da irretroatividade da lei nova, do argumento de que os princípios nominados em epígrafe teriam sido vulnerados com a instituição da prescrição intercorrente nas ações por improbidade administrativa, porque favoráveis aos agentes ditos ímprobos, em detrimento dos interesses da coletividade, de combate à corrupção e de observância à moralidade administrativa.

A isso contrapõe-se o seguinte:

Primus. O combate à corrupção e o castigo por afronta à moralidade administrativa continuarão por intermédio da ação por ato de improbidade administrativa, especialmente nas hipóteses elencadas no artigo 9º da Lei n. 8.429, de 1992, além de outros meios judiciais (v.g., Código Penal, Lei da Ação Popular, Lei Anticorrupção) e administrativos (estatutos de servidores públicos, códigos de ética).

Há que se ter em conta que a ação de improbidade administrativa não é a solução para todos os males da sociedade brasileira. Assim, exempli gratia, o peculato culposo, a prevaricação e outros ilícitos que deixaram de configurar improbidade administrativa serão punidos por outros meios legais. Não é toda conduta de agente público que dá ensejo à aplicação da Lei n. 8.429, de 1992. Sanções com base neste diploma derivam da estrita compatibilidade entre o ato e o preceito legal, o que não impede eventual responsabilização de ordem administrativa, civil e/ou penal. Ademais, não é porque um mesmo ato resulte em imputações por crime e por improbidade, que a ação desta natureza repressiva, de caráter sancionatório (LIA, art. 17-D, caput) sofra influência ou fique subordinada ao processo criminal, salvo para os fins e nas exclusivas hipóteses do artigo 935 da Lei Substantiva Civil[17] e dos artigos 12, § 6º, e 21, § 4º, da Lei de Improbidade Administrativa[18].

Secundus. Sabe-se que os direitos fundamentais não são somente dos indivíduos, mas também da comunidade, razão suficiente para justificar restrições e controles em favor de e contra uns e outros[19]. Estes são admitidos nas hipóteses expressamente previstas na Constituição e com base na lei, quando aquela estabelecer previsão de reserva legal[20], e nos limites estritamente necessários a salvaguardar outros direitos ou interesses também protegidos, sem poder ter caráter individual, nem diminuir a extensão e o alcance do conteúdo essencial[21] do direito consagrado constitucionalmente.

Sobre isso, claras são as constituições de Portugal[22] e da Espanha[23] e a Lei Fundamental da Alemanha[24], coincidentes, em termos, com as garantias constantes das cláusulas declaradas pétreas na nossa Lei Maior (art. 60, § 4º)[25], as quais impõem ao constituinte derivado e ao legislador que se abstenham de legislar para suprimir ou atenuar (tendente a abolir) direitos consagrados como fundamentais pela Constituição, de sorte que estabelecido um mínimo inatacável[26].

Pretender que se deixe de aplicar a retroatividade da norma benigna em razão da natureza do ato (supostamente) praticado (corrupção, imoralidade administrativa), sem que a lei estabeleça reserva, com respaldo constitucional, importa diminuir o alcance do conteúdo essencial ou abolir, in concreto, direitos e garantias constitucionais (igualdade, legalidade, retroatividade in mellius e devido processo legal) dos implicados, algo que sequer o constituinte derivado pode ousar.

Tertius. A Carta da República estabelece, já no artigo 1º, ser princípio fundamental a dignidade da pessoa humana que, a rigor, constitui o cerne, o ápice, dos valores fundantes.

Portanto, vivemos em um país que optou, de modo peremptório, por constituir-se em Estado Democrático e de Direito, elegendo, por princípio fundamental, dentre outros, a dignidade da pessoa humana[27]. O aspecto em questão leva a aventar a hipótese de que toda a atuação do Estado, por quaisquer de seus Poderes, órgãos e agentes, haverá de pautar-se na lei, na justiça e na primazia do homem[28], que é anterior e superior ao próprio Estado, razão por si só suficiente para que se constitua em causa primária e derradeira de toda a atuação estatal[29], até porque, como asseverado pelo Papa João Paulo II, os direitos do Poder não podem ser entendidos de outro modo que não seja sobre a base do respeito pelos direitos objetivos e invioláveis do homem[30].

Não é justo nem dignificante suplantar a cristalina garantia de retroatividade da lei benéfica, insculpida no inciso XL do artigo 5º da Lei Fundamental, porque em processo que versa sobre suposta improbidade administrativa e sob o argumento de que a lei nova afronta os princípios da proteção estatal insuficiente e da vedação de retrocesso se, em realidade, esta (a nova lei) está a assegurar precisamente o respeito de direitos e princípios constitucionais caríssimos ao Estado Democrático de Direito (igualdade, legalidade, retroatividade in mellius e devido processo legal).

Quartus. A limitação de direitos fundamentais deve decorrer não somente da lei como expressão de força do Estado, mas como instrumento de justiça, compreendida essa como sentimento vigente num mundo globalizado e, não, como uma consciência existente em determinado lugar ou grupo, motivo justificador da inserção, na Constituição da Espanha[31], de que tais direitos devem ser interpretados em conformidade com tratados internacionais sobre o tema, não podendo ser de outro modo em relação aos que aderiram ao Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos[32] e à Convenção Americana de Direitos Humanos[33], que expressam, de modo resoluto, que se, depois de perpetrado o delito, a lei estipular a imposição de pena mais leve, o delinquente deverá dela beneficiar-se (no primeiro, art. 15, 1, in fine; na segunda, art. 9º), caso da República Federativa do Brasil (CF, art. 5º, § 2º)[34].

Logo, ressalte-se, preterir ou limitar a garantia de retroatividade da lei benigna não é permitido sequer ao legislador brasileiro.

Quintus. A Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção (Convenção de Mérida), promulgada pelo Decreto n. 5.687, de 31 de janeiro de 2006, no único dispositivo em que trata da prescrição, o artigo 29, primeira parte, dispõe que cada Estado Parte estabelecerá, quando proceder, de acordo com sua legislação interna, um prazo de prescrição amplo para iniciar processos por quaisquer dos delitos qualificados de acordo com a presente Convenção[35], no que foi plenamente atendida na alteração empreendida pela Lei n. 14.230, de 2021, na Lei de Improbidade Administrativa, na medida em que o prazo prescricional foi estabelecido em 8 (oito) anos, contados a partir da ocorrência do fato ou, no caso de infrações permanentes, do dia em que cessou a permanência, no que extrapola, em muitos casos, o interregno fixado na redação original (por exemplo, em relação aos agentes detentores de mandato eletivo ou cargo em comissão, cujo prazo era de cinco anos após a desinvestidura).

De ver-se, ademais, que a nova lei não alterou condutas delituosas aplicáveis aos casos de corrupção, quanto ao que não se pode falar em retrocesso legislativo no seu combate.

Sextus. Deve-se ter em conta que direitos e garantias fundamentais, pelo caráter aberto, polissêmico e indeterminado[36], estão a exigir, no caso concreto, que a sua interpretação seja otimizada pelos operadores do Direito. Eventual alegação de que a retroatividade da prescrição, in casu, revela violação aos princípios da vedação à proteção estatal insuficiente e o da vedação de retrocesso legislativo somente é possível (i) em desestima ao texto constitucional (CF, art. 5º, XL) e (ii) à deslembrança de que a meta a ser alcançada é a satisfação plena dos direitos e das garantias constitucionais dos indivíduos, estes, sim, passíveis de, com fulcro no princípio da proporcionalidade, receberem interpretação protetiva do Judiciário quando se mostre insatisfatória aquela outorgada pelo legislador, ou quando ocorra restrição desarrazoada, desproporcional, inadequada ou desnecessária.

A se admitir escorreita a compreensão da irretroatividade da nova lei benigna, chegará a hora em que também atos de anistia, indulto e comutação de penas serão questionados (i) valendo-se de solipsismo do intérprete, (ii) em desdém a uma abordagem normativista-formalista e (iii) em afronta ao princípio de interpretação constitucional da máxima efetividade ou eficiência[37] , por pseudoviolação aos princípios da vedação à proteção estatal insuficiente e o da vedação de retrocesso legislativo, invocados não para proteger direitos e garantias fundamentais dos indivíduos, mas, não raras vezes, em prestígio ao punitivismo e, em contrapartida, repulsa aos avanços sociais, morais e legislativos.

NOTAS:

  1. Art. 17-D. A ação por improbidade administrativa é repressiva, de caráter sancionatório, destinada à aplicação de sanções de caráter pessoal previstas nesta Lei, e não constitui ação civil, vedado seu ajuizamento para o controle de legalidade de políticas públicas e para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos. [...].

  2. Art. 17. A ação para a aplicação das sanções de que trata esta Lei será proposta pelo Ministério Público e seguirá o procedimento comum previsto na Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil), salvo o disposto nesta Lei. [...].

  3. Art. 6º. A lei em vigor terá efeito imediato e geral, respeitados o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada. [...].

  4. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Segunda Turma. Recurso Extraordinário n. 534343/RS. Relator: Ministro Cezar Peluso, 16 dez. 2008. Diário da Justiça eletrônico, Brasília, 13 mar. 2009; Tribunal Pleno. Habeas Corpus n. 31776/ES. Relator: Ministro Orozimbo Nonato, j. 21 nov. 1951. Diário da Justiça da União, Rio de Janeiro, 31 jan. 1952.

  5. MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 32. ed. São Paulo: Malheiros, 2015, p. 871.

  6. GARCIA, Emerson. A lei de improbidade e a dosimetria de suas sanções. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, n. 58, jan. / fev. 2006, p. 37.

  7. Art. 153. [...]. § 16. A instrução criminal será contraditória, observada a lei anterior, no relativo ao crime, e à pena salvo quando agravar a situação do réu. [...].

  8. MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Comentários à constituição de 1967 com a emenda n. 1 de 1969. t. V (arts. 153, § 2º - 159). 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1987, p. 249.

  9. BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. Trad. J. Cretella Jr. e Agnes Cretella. 2. ed. 2. tir. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, pp. 32 e 33.

  10. Art. 2.028. Serão os da lei anterior os prazos, quando reduzidos por este Código, e se, na data de sua entrada em vigor, já houver transcorrido mais da metade do tempo estabelecido na lei revogada.

  11. Art. 921. [...]. § 4º. O termo inicial da prescrição no curso do processo será a ciência da primeira tentativa infrutífera de localização do devedor ou de bens penhoráveis, e será suspensa, por uma ´única vez, pelo prazo máximo previsto no § 1º deste artigo. [...]. Art. 1.056. Considerar-se-á como termo inicial do prazo da prescrição prevista no art. 924, inciso V, inclusive para as execuções em curso, a data de vigência deste Código.

  12. Posto que possa se caracterizar nos parâmetros processuais da relação jurídica, a prescrição intercorrente não é instituto de direito processual, mas de direito material. Os elementos essenciais à caracterização da praescriptio são os mesmos exigíveis à configuração da prescrição intercorrente, com o só plus de que aquele é antecedente à propositura da ação, enquanto essa é superveniente à propositura da ação. (ALVES, Vilson Rodrigues. Da prescrição e da decadência no novo código civil. 3. ed. rev. ampl. Atual. Campinas: Servanda, 2006, p. 662).

  13. PRESCRIÇÃO INTERCORRENTE. Tem a prescrição a mesma natureza, seja ela decorrente de prazo que haja fluído antes da instauração do processo ou após paralisação deste. É sempre de direito material, dizendo com a lide e não com a regularidade da relação processual. Sendo de índole patrimonial, o direito, a cuja satisfação visa o processo de execução, não poderá ser a prescrição declarada de ofício. (BRASIL. Tribunal Federal de Recursos. Sexta Turma. Apelação Cível n. 0119280/PE. Relator: Ministro Eduardo Ribeiro, j. 19 fev. 1987. Diário da Justiça da União, Brasília, 26 fev. 1987). No mesmo sentido, do mesmo órgão julgador: Apelação Cível n. 0119277/PE. Relator: Ministro Eduardo Ribeiro, j. 12 fev. 1987. Diário da Justiça da União, Brasília, 19 fev. 1987; Apelação Cível n. 0117744/PE. Relator: Ministro Eduardo Ribeiro, j. 4 dez. 1986. Diário da Justiça da União, Brasília, 11 dez. 1986.

  14. Art. 5º. [...]; LXXVII a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação. [...]. Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre: I direito civil, comercial, penal, processual, eleitoral, agrário, marítimo, aeronáutico, espacial e do trabalho; [...]. Art. 37. [...]. § 5º. A lei estabelecerá os prazos de prescrição para ilícitos praticados por qualquer agente, servidor ou não, que causem prejuízos ao erário, ressalvadas as respectivas ações de ressarcimento. [...].

  15. CAHALI, Yussef Said. Prescrição e decadência. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 20.

  16. FERREIRA, Pinto. Comentários à constituição brasileira. v. 1. São Paulo: Saraiva, 1989, p. 175.

  17. Art. 935. A responsabilidade civil é independente da criminal, não se podendo questionar mais sobre a existência do fato, ou sobre quem seja o seu autor, quando estas questões se acharem decididas no juízo criminal.

  18. Art. 12. [...]. § 6º. Se ocorrer lesão ao patrimônio público, a reparação do dano a que se refere esta Lei deverá deduzir o ressarcimento ocorrido nas instâncias criminal, civil e administrativa que tiver por objeto os mesmos fatos. [...]. Art. 21. [...]. § 4º. A absolvição criminal em ação que discuta os mesmos fatos, confirmada por decisão colegiada, impede o trâmite da ação da qual trata esta Lei, havendo comunicação com todos os fundamentos de absolvição previstos no art. 386 do Decreto-lei n. 3.689, de 3 de outubro de 1941 (Código de Processo Penal).

  19. Preleciona Nuno Rogeiro que o sistema de direitos fundamentais resulta, obviamente, de uma equação das relações entre estado e sociedade (incluindo aqui indivíduos, grupos naturais, instituições etc.), por um lado, e de uma consagração de regras pertinentes aos laços intrassociais, por outro. (ROGEIRO. Nuno. A lei fundamental da República Federal da Alemanha. Coimbra: Coimbra, 1996, p. 78).

  20. Konrad Hesse salienta que várias vezes estão traçados limites à liberdade jurídico-fundamental por a Constituição juntar uma reserva legal à garantia jurídico-fundamental, pela qual o legislador fica autorizado a determinar os limites da garantia. [...]. Como todas as reservas legais somente autorizam o legislador à limitação de direitos fundamentais, é também, nesse caso, a determinação dos limites do direito fundamental assunto do legislador; ele deve determinar aqueles pressupostos tão exato que a faculdade para a limitação não seja posta totalmente na discricionariedade administrativa ou na discricionariedade judicial (HESSE, Konrad. Elementos de direito constitucional da República Federal da Alemanha. Trad. Luís Afonso Heck. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1998, p. 253).

  21. Para Márcio Iorio Aranha, ele é definido como o valor intrínseco de cada uma das cláusulas pétreas reconhecidas na Constituição Federal brasileira de 1988, no seu art. 60, § 4º, resultando da conjugação, no que couber, entre o valor da dignidade humana, os elementos conceituais e o núcleo radical, este último próprio da atribuição de significado oriunda das inúmeras manifestações concretas das cláusulas pétreas. (ARANHA, Márcio Iorio. Conteúdo essencial das cláusulas pétreas. Notícia do Direito Brasileiro Nova Série, Brasília, v. 7, p. 399, 2000).

  22. Art. 18º. [...]. 2. A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos. 3. As leis restritivas de direitos, liberdades e garantias têm de revestir carácter geral e abstracto e não podem ter efeito retroactivo nem diminuir a extensão e o alcance do conteúdo essencial dos preceitos constitucionais.

  23. Artículo 53. 1. Los derechos y libertades reconocidos en el Capítulo segundo del presente Título vinculan a todos los poderes públicos. Sólo por ley, que en todo caso deberá respetar su contenido esencial, podrá regularse el ejercicio de tales derechos y libertades, que se tutelarán de acuerdo con lo previsto en el artículo 161, 1 a. [].

  24. Art. 19º. 1. Quando, segundo esta Lei Fundamental, um direito fundamental puder ser restringido por lei ou com base numa lei, essa lei deverá ter carácter geral e não ser limitada a um caso particular. Além disso, a lei terá de citar o direito fundamental em questão, indicando o artigo correspondente. 2. Em caso algum pode um direito fundamental ser afectado no seu conteúdo essencial.

  25. Art. 60. [...]. § 4º. Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: I a forma federativa de Estado; II o voto direto, secreto, universal e periódico; III a separação dos Poderes; IV os direitos e garantias individuais. [...].

  26. Trata-se, no dizer de Canotilho, de cláusula de vinculação [que] tem uma dimensão proibitiva: veda às entidades legiferantes a possibilidade de criarem actos legislativos contrários às normas e princípios constitucionais, isto é, proíbe a emanação de leis inconstitucionais lesivas de direitos, liberdades e garantias que são, nesta perspectiva, normas negativas de competência, porque estabelecem limites ao exercício de competências das entidades públicas legiferantes (CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional. 6. ed. reimpr. Coimbra: Almedina, 1993, p. 580).

  27. Art. 1º. A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado democrático de direito e tem como fundamentos: [...]; II a cidadania; III a dignidade da pessoa humana; [...].

  28. Conforme ensinava Henry Thoreau, por volta de 1848: Jamais haverá um Estado realmente livre e esclarecido até que este venha a reconhecer o indivíduo como um poder mais alto e independente, do qual deriva todo seu próprio poder e autoridade, e o trate da maneira adequada. (THOREAU, Henry David. A desobediência civil. Trad. Sérgio Karam. Porto Alegre: L&PM, 1999, p. 55).

  29. Nesse particular, a Lei Fundamental da Alemanha, ao estabelecer, já em seu artigo 1o, a proteção da dignidade da pessoa humana, claramente coloca esse princípio em posição hierárquica orientadora de prevalência em relação aos demais valores (cf. HESSE, Konrad. Op. cit., pp. 110-1). Também a Constituição de Portugal, em seu artigo 1º, elege como esfera constitutiva da República a dignidade da pessoa humana (Cf. CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 3. ed. reimpr. Coimbra: Almedina, 1999, p. 221). No Brasil, considerando tal princípio como vetor interpretativo, destacam-se: COELHO, Inocêncio Mártires. Interpretação constitucional. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1997, p. 84; ARANHA, Márcio Iorio. Op. cit., p. 397.

  30. CARTA Encíclica Redemptor Hominis do Sumo Pontífice João Paulo II. São Paulo: Paulinas, 1990, p. 69.

  31. Art. 10. [...]. 2. Las normas relativas a los derechos fundamentales y a las libertades que la Constitución reconoce, se interpretarán de conformidad con la Declaración Universal de Derechos Humanos y los tratados y acuerdos internacionales sobre las mismas materias ratificados por España.

  32. O Brasil aderiu mediante depósito de Carta em 24/01/1992, em decorrência de aprovação do seu texto pelo Congresso Nacional, conforme declarado no Decreto Legislativo n. 226, de 12/12/1991, tendo entrado em vigor ex vi do Decreto n. 592, de 6 de julho de 1992.

  33. O Decreto n. 678, de 6 de novembro de 1992, promulgou o texto, que entrou em vigor, para o Brasil, em 25 de setembro de 1992.

  34. Art. 5º. [...]; § 2º. Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte. [...].

  35. Eis a íntegra do dispositivo: Artigo 29. Prescrição. Cada Estado Parte estabelecerá, quando proceder, de acordo com sua legislação interna, um prazo de prescrição amplo para iniciar processos por quaisquer dos delitos qualificados de acordo com a presente Convenção e estabelecerá um prazo maior ou interromperá a prescrição quando o presumido delinquente tenha evadido da administração da justiça.

  36. COELHO, Inocêncio Mártires. Op. cit., pp. 26 e 85.

  37. É um princípio operativo em relação a todas e quaisquer normas constitucionais, e embora a sua origem esteja ligada à tese da actualidade das normas programáticas (THOMA), é hoje sobretudo invocado no âmbito dos direitos fundamentais (no caso de dúvidas deve preferir-se a interpretação que reconheça maior eficácia aos direitos fundamentais). (CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional. 6. ed. reimpr. Coimbra: Almedina, 1993, p. 227).

Sobre o autor
José Wanderley Bezerra Alves

Advogado. Mestre em Direito UnB. ex-Procurador-Geral do Estado de Mato Grosso do Sul

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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