Dosimetria da Punição em transgressões disciplinares no âmbito do Comando da Aeronáutica

14/01/2022 às 16:17
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Antes de trazermos à baila o cerne do assunto supramencionado, mister e salutar se faz compreendermos, ainda que de forma superficial, algumas especificidades do regime jurídico dos militares, bem como as regras inerentes à vida castrense dos sujeitos sociais desta seara jurídica. Nesta Senda, a Constituição Federal de 1988 tratou em alguns dispositivos acerca das Forças Armadas, criando destarte, verdadeiro regime jurídico especial em relação aos demais servidores federais e estaduais, instando mencionar os ditames previstos no artigo 142 da carta magna, que assim dispõe:

(...) Art. 142. As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem.

§ 1º Lei complementar estabelecerá as normas gerais a serem adotadas na organização, no preparo e no emprego das Forças Armadas.

§ 2º Não caberá habeas corpus em relação a punições disciplinares militares.

Como se percebe a partir da leitura do dispositivo acima mencionado, as Forças Armadas do Brasil, composta por Exército, Marinha e Aeronáutica, além da observância dos princípios da Administração Pública previstos no art. 37 da CF, por serem órgãos da Administração Direta, mais especificamente pertencentes à União Federal que é a pessoa jurídica de direito público interno, tem como obrigação institucional e por parte de seus integrantes o acatamento irrestrito aos Princípios da Hierarquia e Disciplina, constituindo, portanto, verdadeiro supedâneo das Forças Armadas, ou seja, tais valores são imprescindíveis para o fiel funcionamento organizacional das instituições militares.

Falando acerca da hierarquia José dos Santos Carvalho Filho assim pontua:

(...) Hierarquia é o escalonamento em plano vertical dos órgãos e agentes da Administração que tem como objetivo a organização da função administrativa. E não poderia ser de outro modo. Tantas são as atividades a cargo da Administração Pública que não se poderia conceber sua normal realização sem a organização, em escalas, dos agentes e dos órgãos públicos. Em razão desse escalonamento firma-se uma relação jurídica entre os agentes, que se denomina de relação hierárquica. (CARVALHO FILHO, 2010)

Ainda em seu manual de Direito Administrativo, o ilustre jurista citado, consubstancia em sua obra os efeitos produzidos pelo princípio da hierarquia, que nesta ocasião destacamos os seguintes efeitos:

  • Poder de comando dos agentes superiores sobre os seus subordinados;

  • Dever de obediência do subordinado para com o superior, cabendo-lhe acatar de imediato as ordens que lhe são dirigidas, desde que, obviamente, não sejam ordens ilegais

Com relação a disciplina, assim descreve:

(...) tem-se, de maneira ampla, que é a situação de respeito que os agentes administrativos devem ter para com as normas que os regem, em cumprimento aos deveres e obrigações que a eles são impostos,

Nessa esteira, o legislador buscou definir tais conceitos no art. 14 e parágrafos da Lei nº 6.880, de 9 de dezembro de 1980, que dispõe sobre o Estatuto dos Militares, quanto segue:

(...) Art. 14. A hierarquia e a disciplina são a base institucional das Forças Armadas. A autoridade e a responsabilidade crescem com o grau hierárquico.

§ 1º A hierarquia militar é a ordenação da autoridade, em níveis diferentes, dentro da estrutura das Forças Armadas. A ordenação se faz por postos ou graduações; dentro de um mesmo posto ou graduação se faz pela antiguidade no posto ou na graduação. O respeito à hierarquia é consubstanciado no espírito de acatamento à sequência de autoridade.

§ 2º Disciplina é a rigorosa observância e o acatamento integral das leis, regulamentos, normas e disposições que fundamentam o organismo militar e coordenam seu funcionamento regular e harmônico, traduzindo-se pelo perfeito cumprimento do dever por parte de todos e de cada um dos componentes desse organismo.

§ 3º A disciplina e o respeito à hierarquia devem ser mantidos em todas as circunstâncias da vida entre militares da ativa, da reserva remunerada e reformados.

Compreende-se, portanto, a partir da ilação do conteúdo normativo ora apresentado, que os integrantes das forças armadas estão vinculados à observância de uma série de regramentos essenciais para o exercício desse tão honroso mister, e consequentemente, pelo acatamento dessas regras, encontram óbices legais que restringem direitos comumente assegurados aos demais sujeitos de direito, o que pode ser claramente evidenciado no próprio texto constitucional, no que tange por exemplo, a vedação de participação em greve, ou de impetração de habeas corpus em casos de punições disciplinares, e outras limitações.

Diante do que foi até então apresentado, constata-se que para a manutenção da hierarquia e disciplina, havendo a prática de uma conduta infracional por parte do militar, o Estado por meio de seus agentes administrativo, utilizando o direito/dever de punir (jus puniendi) poderá lançar mão de seu sistema de punições disciplinares.

No âmbito do comando da Aeronáutica, os militares integrantes daquela força deverão observar as regras contidas no regulamento disciplinar da aeronáutica (RDAER). O Regulamento Disciplinar da Aeronáutica, Decreto nº 76.322, de 22 de setembro 1975, foi editado com o escopo de regulamentar o art. 47 da Lei nº 6.880, de 9 de dezembro de 1980, preconizando o seguinte:

(...) Art. 47. Os regulamentos disciplinares das Forças Armadas especificarão e classificarão as contravenções ou transgressões disciplinares e estabelecerão as normas relativas à amplitude e aplicação das penas disciplinares, à classificação do comportamento militar e à interposição de recursos contra as penas disciplinares.

A tipificação das condutas infracionais, estão descritas no art. 10 do RDAER, contudo, em seu parágrafo único o legislador permitiu que esse rol não se restringisse ao que ali estava descrito, dando margem para diversos entendimentos acerca do que poderia ser caracterizado como transgressão disciplinar, colaborando dessa forma para a insegurança jurídica dos militares. O art. 10 parágrafo único do RDAER, assim dispõe:

(...) Parágrafo único. São consideradas também, transgressões disciplinares as ações ou omissões não especificadas no presente artigo e não qualificadas como crime nas leis penais militares, contra os Símbolos Nacionais;contra a honra e o pundonor individual militar; contra o decoro da classe; contra os preceitos sociais e as normas da moral; contra os princípios de subordinação, regras e ordens de serviço, estabelecidos nas leis ou regula mentos, ou prescritos por autoridade competente.

O regulamento disciplinar da aeronáutica em seu art. 13 traz regras do julgamento das transgressões, elencando circunstâncias justificantes, atenuantes e agravantes, no item 1 deste dispositivo lista, nas alíneas a a f, circunstâncias justificativas da transgressão disciplinar. No item 2 alíneas a a f, traz o rol de circunstâncias atenuantes, que são: bom comportamento, relevância dos serviços prestados, falta de prática no serviço, influência de fatores adversos, ocorrência da transgressão para evitar mal maior e defesa dos direitos próprios ou de outrem. E por fim o item 3 vai trazer as causas agravantes.

O Capítulo I trata sobre a definição e gradação das punições disciplinares, o art. 15 traz o rol das punições disciplinares previstas no RDAER, a saber: i) repreensão, que poderá ser em particular ou em público, verbal ou por escrito; ii) detenção; iii) prisão, que poderá ser fazendo serviço, sem fazer serviço ou em separado; iv) licenciamento a bem da disciplina; e v) exclusão a bem da disciplina.

Diante dos mecanismos sancionatórios ora apresentados, a dificuldade surge no momento em que as punições disciplinares são utilizadas como ferramentas para diversos excessos e arbítrios por parte das autoridades militares, muito embora seja cediço da necessidade de rigidez no ambiente militar, mormente no que tange a manutenção da hierarquia e da disciplina, tais argumentos não podem ser utilizados para justificação do abuso de poder. Além do mais, os agentes administrativos, utilizando do poder discricionário juridicamente investidos, devem se limitar a margem de discricionariedade nos ditames da lei, ou seja, não podem ao seu bel prazer dizer o direito, e a não observância do princípio da legalidade pode constituir causa para nulidade do ato emanado por parte daquela autoridade, e a depender do caso, até mesmo constituir crime.

Para aqueles que estão inseridos, ou um dia já fizeram parte do ambiente castrense, sabem que em muitas ocasiões as punições disciplinares, são aplicadas de forma difusa, e sem a observância dos ditames legais previamente estabelecidos em normas reguladoras, mormente no que se refere a forma como a punição é aplicada, ou seja, à gradação da punição. Verifica-se até mesmo, situações em que um militar com histórico exemplar, com uma ficha impecável e sem registros de transgressões em seus assentamentos, ao cometerem uma falta estabelecida como leve, sofrem as mesmas consequências, ou até mesmo pior, do que aqueles que não são detentores do mesmo histórico.

Insta salientar que a autoridade militar que aplica a punição disciplinar deve se atentar ao princípio da proporcionalidade, ou seja, deve haver uma proporção adequada entre os meios utilizados e os fins almejados, para que assim se evite excessos, e se tenha medidas efetivas para assegurar a devida solução para aquele caso concreto.

Neste diapasão, trazemos à baila do presente artigo, o estabelecido no art. 37 do regulamento disciplinar da aeronáutica, tal dispositivo, ainda que de forma superficial, uma vez que poderiam haver mais dispositivos claros nesse sentido, com o escopo de limitar a atuação arbitrária por parte da autoridade responsável em aplicar a punição, bem como estabelecer critérios mínimos para a gradação da punição. O art. 37 estabelece os critérios de dosimetria para aplicação das punições disciplinares, prescrevendo o mínimo e máximo, bem como os tipos de punição aplicáveis a cada categoria de transgressão, tendo como parâmetro a gravidade em concreto do fato, caso a punição seja desproporcional, mesmo arrazoada, haverá ato ilegal, a depender da medida imposta, por vício decorrente de abuso de autoridade. Valendo a ressalva de que toda decisão emanada por parte dos agentes administrativos envolvidos no processo administrativo disciplinar, deverão ser motivadas.

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(...) Art. 37. Na aplicação de punição deve ser observado o seguinte:

1 - A punição será proporcional à gravidade da falta, observados os seguintes limites mínimos e máximos:

a) para transgressões leves: repreensão em particular e detenção até 10 dias;

b) para transgressões médias: repreensão em público por escrito e prisão até 10 dias;

c) para transgressões graves: 1 (um) dia de prisão, e os limites estabelecidos no Quadro de punições máximas (Anexo II):

2 - Ocorrendo somente circunstâncias atenuantes, a punição tenderá para o mínimo previsto respectivamente nas letras a, b e c do número 1 deste artigo.

O dispositivo supramencionado (grifos), dispõe que havendo apenas circunstâncias atenuantes, a punição deverá tender para o mínimo previsto, ou seja, repreensão particular. Destarte o quantum punitivo fica restrito aos critérios aqui descritos, e assim a autoridade deverá observa-los para se chegar na punição mais indicada para se alcançar o interesse público, no caso, a manutenção da hierarquia e da disciplina, a não observância deste dispositivo, o que convenhamos é frequente, pode acarretar a nulidade do ato sancionador, sem prejuízo das consequentes perdas e danos que poderão ser discutidas.

Com a leitura do dispositivo acima transcrito, fica evidente que caso um militar venha cometer alguma falta disciplinar de natureza leve, apenas com a incidência de causas atenuantes descritas no art. 13, item 2 do RDAER, deverá ter como punição mínima a repreensão em particular, não se justificando qualquer discricionariedade por parte da autoridade competente, fora dos ditames legais.

Além disso, caso algum Militar, por ocasião dos processos administrativos disciplinares constate alguma incorreção procedimental, ou sinta-se lesado por algum ato administrativo praticado nesse contexto, poderá se valer do direito de petição constitucionalmente garantido, buscando guarida no poder jurisdicional.

Insta salientarmos, que o mero descontentamento por parte do punido com relação ao ato sancionador, não se justifica para eventual lide frente ao judiciário, uma vez que este deverá se ater apenas às questões envolvendo a legalidade do ato administrativo, ou seja, não será discutido o mérito (se o ato foi justo ou injusto), tal restrição de atuação judiciária encontra óbice no principio da discricionariedade bem como respeito a teoria da separação dos poderes, conservando-se a atuação harmônica dos três poderes do Estado Brasileiro, restando, portanto, para aquele que se sentiu ofendido, provar a ilegalidade da punição disciplinar.

Bibliografia: (CARVALHO FILHO, 2010).

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