O direito fundamental à saúde a partir das decisões judiciais embasadas no Princípio da Reserva do Possível

15/01/2022 às 09:48
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Resumo: O artigo aborda de forma sintética a situação atual do Brasil no que tange a mitigação do direito fundamental à saúde, a partir das decisões judiciais que ora são embasadas no Princípio da Reserva do Possível, que a despeito de contribuírem para a saúde financeira do sistema público, estão a desproteger trabalhadores. Faz uma breve incursão sobre as reformas estruturantes no sistema da seguridade social do Brasil, promovidas pelo atual governo interino e ilegítimo, que tomou o poder para implantar um sistema neoliberal que visa puramente o lucro, não se importando com o trabalhador, que é tratado como coisa e não como ser humano de direitos. Ao final, analisa a importância dos sindicatos no progresso de redemocratização, manutenção e consolidação dos direitos sociais, com base no Princípio do Bem-Estar social, que somente poderá se firmar com a ajuda das verdadeiras unidades representativas dos trabalhadores.

Palavras-chave: Direito; Saúde; Princípio; Neoliberalismo; Reformas; Capitalismo; Neoliberalismo; Sindicatos; Educação; Redemocratização.

Introdução

O direito à saúde, tal como o concebemos hoje, como sendo parte da seguridade social, trilhou um árduo caminho para ser positivado como direito fundamental.

Na Inglaterra da Idade Média, surgiu a primeira lei de cunho sanitário: a Lei dos Pobres Poor Law, um sistema de ajuda pública, com características de amparo social aos necessitados: pobres e doentes. O sistema perdurou até meados do século passado, quando foi substituído pelo novo sistema previsional: Lei de Assistência Nacional de 1948.

Com Otto Von Bismarck (Alemanha, final do século XIX) surgiram as primeiras leis de acidentes de trabalho, seguro doença, auxílio invalidez, além do reconhecimento dos sindicatos. As leis precursoras no campo da seguridade social, nasceram fincadas no Princípio do Bem-Estar Social, como de fato acataram o preceito a Escola Escandinávia (que fundamenta empiricamente conceitos redistributivos, com ênfase para as políticas educacionais, o que amplia a socialização da produção e consequentemente a inclusão social e a diminuição das desigualdades sociais) e a Escola de Estocolmo (que após sua reforma política social em 1990, firmou-se como um dos mais generosos sistemas de proteção social do mundo contemporâneo, com significativo indicador do PIB Produto Interno Bruto e taxa de emprego, resultado da participação econômica coletiva com aumento da capacitação para a produtividade).

Movimento significativo para a consolidação das leis de proteção à saúde do trabalhador foi a Revolução Industrial (final do século XVIII), que atuou no sentido de transferir as reivindicações sanitárias para o Estado, que toma para si a função de garantidor da saúde pública.

A instituição da Organização das Nações Unidas em 1945, demandou a criação de sua subordinada Organização Mundial de Saúde (OMS), em 7 de abril de 1948. Esta última, por sua vez, modificou o conceito negativo de saúde anteriormente adotado, como sendo ausência de enfermidade e deficiências físicas e/ou mentais para adotá-lo de forma positiva, como estado de completo bem-estar físico, mental e social e não somente ausência de afecções e enfermidades[1]. A saúde passou assim a ser valorada em prol da comunidade e não apenas de forma individualizada.

De acordo com o portal da World Health Organization (WHO), em pleno Séc. XXI, de uma noção antiga de saúde, estática e formal, chega-se, agora, a uma outra noção de saúde  dinâmico-social e socio-económica -como resposta do indivíduo as condições do meio onde vive, resposta esta que deve ser analisada sob três planos ou dimensões: saúde física, saúde mental e saúde social[2].

Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 erigiu o direito à saúde como direito fundamental, conforme interpretação sistemática do corpo normativo, como corolário do direito à vida e preceituado no caput do seu Artigo 196, que aduz, in verbis:

Art. 196 A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas públicas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.

Acerca da conceituação contemporânea de saúde, como direito fundamental do individuo, vale colacionar as assertivas de Ingo Wolfgang Scarlet, para quem:

A saúde é um direito social fundamental, ligado, juntamente com outros (assistência social, previdência social e renda mínima), ao direito à garantia de uma existência digna, no âmbito do qual se manifesta de forma mais contundente do seu objeto com o direito à vida e ao princípio da dignidade da pessoa humana. A vida assume, no âmbito desta perspectiva, a condição de verdadeiro direito a ter direitos, constituindo, além disso, precondição da própria dignidade da pessoa humana[3].

No contexto, pode-se inferir que hodienarmente o direito à saúde é um direito público subjetivo, na medida em que pode ser invocado frente à inércia do Estado, que tem o dever de prestá-lo, de forma satisfatória aos administrados.

No entanto, e apesar da Carta Magna brasileira de 1988 ter inovado de forma positiva em matéria de direitos fundamentais, alargando o tratamento até então dispensado, com a elevação do direito à saúde à categoria de direitos fundamentais, em contramão, surgiu a problemática da falta de recursos por parte do Poder Público para dar cumprimento às demandas judiciais envolvendo esses direitos.

A partir da constatação, surgiu no Brasil o fenômeno hoje conhecido como Princípio da Reserva do Possível, que impõe limitações ao cumprimento de decisões judiciais, notadamente no campo da saúde.

Princípio da Reserva do Possível adotado pelo Brasil

O Princípio da Reserva do Possível ou Reserva do Financeiramente Possível ou Reserva da Consistência, surgiu na Alemanha, na década de 60, por ocasião de um julgamento pelo Tribunal Constitucional da Alemanha, numa ação em que estudantes pleitearam ingressos em diversos cursos universitários, com fundamento no Artigo 12 da Constituição da Alemanha, que prevê que todo cidadão alemão tem o direito à livre escolha da profissão. Com base no dispositivo, os postulantes formularam a argumentação e no julgamento, firmou-se o entendimento de que o cidadão somente poderia obter prestação do Estado que não ultrapasse o limite da sua razoável capacidade financeira.

No caso do Brasil, como não há previsão legal expressa, a doutrina pátria cuidou de cunhar o princípio que hoje é largamente aceito jurisprudencialmente. Em linhas gerais, se traduz na possibilidade de atendimento por parte do Poder Público quando houver recursos financeiros para tal. O Estado somente pode arcar com o que estiver dentro de sua capacidade econômica/financeira. Ou seja, decisões judiciais condenando ao cumprimento de ações positivas por parte do Poder Público somente poderão ser satisfeitas caso haja recursos financeiros disponíveis para tal. Portanto, se constitui em uma forma de limitar a responsabilidade do Estado, com a finalidade transversa de proteger suas finanças.

Contudo, o que temos visto é o Estado se desvincular de suas obrigações, com fincas no aludido princípio. Do posicionamento estatal, ou seja, a concretização de direitos sociais surge problemática da reserva do possível frente ao mínimo existencial, principalmente na seara da saúde, cujo direito é diretamente ligado ao direito fundamental à vida. Muitas das decisões judiciais estariam, portanto, ferindo o mínimo de existência digna, consagrado na Constituição Federal de 1988.

Acerca do princípio, Marcelo Novelino faz as seguintes indagações:

Como compreender a disponibilidade fática de o Estado implementar o direito social? Deve-se verificar a viabilidade de atender àquela demanda específica ou a viabilidade de atender a todas as demandas idênticas a ela? O atendimento da necessidade deve ser feito a todos ou somente para os que comprovarem que não possuem os recursos para arcar com seus custos?[4]

A carência de verbas públicas judicializou a saúde no Brasil. No entanto, como os recursos estatais limitados e as demandas sociais muito numerosas, a discussão acerca da possibilidade de cumprimento das decisões ganha feições importantes, na medida em que o ponto fulcral passa pela concretização da garantia do mínimo existencial frente à possibilidade da reserva do mínimo possível.

A Professora Nathalia Masson faz uma observação interessante:

Nada obstante a indiscutível relevância do direito à saúde, o que se verifica na prática é uma reiterada e sistemática omissão dos Poderes Públicos na elaboração e implementação de políticas públicas eficientes à promoção de uma saúde pública de qualidade. Daí decorre o aumento das demandas judiciais, individuais ou coletivas, objetivando que os entes federados forneçam medicamentos, órteses e próteses, criem vagas em UTIs e leitos hospitalares, realizem cirurgias e exames, custeiem tratamento fora do domicílio (inclusive no exterior) etc.[5]

Neste contexto, há que se firmar que cumpre ao Estado arcar com o cumprimento das decisões, não podendo invocar o princípio para desvincular-se de promover o mínimo de que o cidadão precisa para ter uma existência compatível com sua condição humana.

A partir do momento em que o Estado não garanta o mínimo possível, não está observando normas basilares. Eventuais limitações ou dificuldades orçamentárias não podem servir de pretexto para negar o direito à saúde e à vida, garantidos no dispositivo constitucional, não havendo que se cogitar, desse modo, da incidência do princípio da reserva do possível, dada a prevalência do direito em questão. (TJ/RS, Apelação Cível nº 70063026041, Oitava Câmara Cível, Relator Ricardo Moreira Lins Pastl, j. 05-03-2015).

O principio da reserva do possível é uma releitura da responsabilidade estatal e não forma de desobrigar o Estado ao cumprimento do mínimo existencial, em razão da proteção constitucional. De acordo com o Supremo Tribunal Federal, o Poder Judiciário não está inovando na ordem jurídica, mas apenas determinando que o Poder Executivo cumpra políticas públicas previamente estabelecidas. (STF, RE 642536, Rel. Min. Luiz Fux, T1, j. 05-02-2013 e DJe 27-02-2013).

À luz do disposto no artigo 196 da Constituição Federal o Estado tem o dever de prestar assistência médica à população, razão pela qual a determinação judicial de fornecimento de medicamento não constitui violação ao princípio da legalidade e da isonomia. As limitações orçamentárias não podem servir de supedâneo para o Distrito Federal se eximir do dever de prestar assistência à saúde (fornecimento de medicamento) a pacientes sem condições financeiras. Aplica-se o princípio da reserva do possível em situações excepcionais, desde que o ente público demonstre, de forma objetiva, a impossibilidade econômico-financeira de custear a medicação pleiteada. (TJ/DF, RMO 20130111639603. Rel. Nídia Corrêa Lima, 1ª Turma Cível, j. 16/09/2015, DJe 02-10-2015).

Via transversa, há que se atentar para a razoabilidade dos comandos insertos nas decisões judiciais, na medida em que não se mostra razoável a determinação, por exemplo, de que o Estado seja compelido a pagar internação hospitalar em outro pais quando há tratamento similar no Brasil. Outro exemplo, é a exigência da compra de medicamentos de determinado fabricante, quando este mesmo medicamento pode ser adquirido de forma genérica, a preços bem mais acessíveis.

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O que é inadmissível é o Estado não cumprir com sua agenda básica no que se refere à políticas públicas direcionadas à área da saúde. Não se mostra suficiente, portanto, para a aplicação da Teoria da Reserva do Possível, a simples alegação de insuficiência de recursos, mas a comprovação de ausência deles, também denominada de exaustão orçamentária. (TJ/PE, AGV 3568930, Rel. Fernando Cerqueira, 1ª Câmara de Direito Público, j. 03-03-2015 e p. 11-03-2015).

O Juiz Federal George Marmelstein, com maestria, faz a seguinte observação:

Apesar de a reserva do possível ser uma limitação lógica à possibilidade de efetivação judicial dos direitos socioeconômicos, o que se observa é uma banalização no seu discurso por parte do Poder Público quando se defende em juízo, sem apresentar elementos concretos a respeito da impossibilidade material de se cumprir a decisão judicial. Por isso, as alegações de negativa de efetivação de um direito econômico, social e cultural com base no argumento da reserva do possível devem ser sempre analisadas com desconfiança. Não basta simplesmente alegar que não há possibilidades financeiras de se cumprir a ordem judicial; é preciso demonstrá-la. () Assim, o argumento da reserva do possível somente deve ser acolhido se o Poder Público demonstrar suficientemente que a decisão causará mais danos do que vantagens à efetivação de direitos fundamentais. Vale enfatizar: o ônus da prova de que não há recursos para realizar os direitos sociais é do Poder Público. É ele quem deve trazer para os autos os elementos orçamentários e financeiros capazes de justificar, eventualmente, a não-efetivação do direito fundamental[6].

Nesta linha de ilação, temos como certeza de que os direitos fundamentais sociais não podem ser tomados de forma absoluta que não possam sofrer quaisquer tipos de restrição, no entanto, a garantia do mínimo à existência digna deve ser assegurada, sem reservas. A atuação do Poder Judiciário neste campo é de incontestável importância Todavia, ao lado do Judiciário, devemos relevar a importância dos sindicatos, que dado às incontroversas posições do Poder Público, em livrar-se do cumprimento das decisões por força do princípio invocado, direitos sociais estão sendo feridos diuturnamente no Brasil, quer seja de forma direta ou indireta.

As reformas legislativas do governo neoliberal em detrimento aos direitos sociais: o caso do Brasil

A fim de controlar os gastos públicos brasileiros, o governo do Presidente (que fora interino), Michel Temer acabou editando a Emenda Constitucional (EC) n. 95, de 16 de dezembro de 2016, que ficou conhecida no Brasil como a PEC dos gastos públicos. Referida norma constitucional, dentre outros, congelou por 20 (vinte) anos, gastos do governo em todas as esferas (federal, estadual e municipal), gostos com saúde, previdência, assistência e educação, ou seja, o novo regime fiscal inclui os orçamentos da seguridade social[7].

Dentre as sanções contidas na EC 95 no que tange ao seu descumprimento, dentre outras, estão proibições de aumentos salariais, contratações de pessoal (inclusive via concurso público), criação de novas despesas (e o rol é extenso) e a concessão de novos incentivos fiscais, para todos os entes federados (União, estados e municípios) e os órgãos aos mesmos vinculados, direta ou indiretamente.

Com a nova tratativa, temos como certo de que o novo comando constitucional colocou ainda mais dificuldades no que concerne ao cumprimento de decisões judiciais referentes à garantia da saúde, que envolve outras questões, até mesmo de certa complexidade, que vão além da compra de medicamentos.

Além dessa medida legislativa austera, o governo brasileiro encaminhou para o Congresso Nacional (Senado e Câmara Federal), outras proposições, que somadas, retiram direitos dos trabalhadores brasileiros, ao ponto de os privarem de recursos que possam lhes dar garantia de direitos básicos, neles compreendidos o direito à saúde de forma básica.

O que se está vendo hoje no Brasil é a quebra de garantias constitucionais, a derrocada de direitos fundamentais, a inobservância irrestrita de direitos sociais. A onda neoliberal, que é direcionada unicamente ao lucro, tende a intensificar o tratamento de seres humanos como coisas, e não sujeitos de direitos.

E o fenômeno não somente está ocorrendo no Brasil, mas em toda América Latina e Caribe, com raras exceções. O sistema capitalista financeiro e hegemônico, que é marcado pela especulação financeira e pela bolsa de valores, tem engendrado ações para privatização dos sistemas de proteção à saúde, previdência e assistência, com apoio dos governos neoliberais que foram instalados, de forma legitima ou ilegítima na região.

Atualmente, as chamadas reformas modernizadoras, patrocinadas por governos neoliberais, estão a impor pesados sacrifícios à classe trabalhadora e se constituem em desafio para os sindicatos, vez que as reformas nos termos como são propostas, têm o objetivo de liquidar conquistas, como o ingresso no serviço público através de concurso público, terceirização de serviços e mitigação de direitos trabalhistas (estabilidade no emprego, férias, 13º salário, etc.), o que proporciona, sem sombra de dúvidas, a multiplicação de empregos informais, que via de consequência, subtraem amparo social, inclusive na área de saúde.

Analisando meritoriamente a questão, a especialista em saúde pública, em planejamento da saúde e doutora em economia, a Professora Laura Soares, se posiciona no sentido de que as reformas sociais devem ser projetadas não apenas de forma emergencial (como vem sendo feito), mas sobretudo para atingir toda a sociedade numa perspectiva de longo prazo. Para ela, que acredita no desenvolvimento econômico com base na igualdade distributiva de renda:

Para os países onde não existia um Estado de Bem-Estar Social constituído, as políticas de ajuste vieram mais pelo lado econômico abertura comercial, deslocalização de indústrias e atividades e desemprego do que pelo lado da distribuição de aparelhos de política social. Uma vez que estes não existiam, dependendo da intensidade do ajuste, vários países foram obrigados a fazer programas sociais de caráter emergencial, focalizados, contando com a solidariedade comunitária.

Em todos os casos, porém, essas políticas foram manifestamente insuficientes para diminuir a desigualdade social e a pobreza preexistentes e, sobretudo, agravadas pelo próprio ajuste.

Nos casos em que já existiam políticas sociais universais (Previdência Social, Saúde, Educação Básica), o desmonte dessas políticas agravou consideravelmente as condições sociais, já de per si precárias, em particular no caso dos países da periferia capitalista.

[...] mesmo reconhecendo as gritantes evidências do fracasso social do ajuste, os organismos internacionais mascaram a impossibilidade de que, a persistir a mesma política econômica, esse fracasso possa ser revestido, impondo uma visão de que os problemas sociais hoje existentes são apenas um problema de administração do ajuste, culpabilizando, mais uma vez, os Estados Nacionais de serem incompetentes na gestão econômica e social. É nessa perspectiva que se situam as recomendações recorrentes da necessidade de reformas, baixo o argumento de que elas ou ainda não foram realizadas ou foram mal implementadas nos países latino-americanos[8]. (Os grifos são originais).

Nesta linha elucubrativa, temos que a política neoliberal, que foi e continua sendo a responsável pela virtual insolvência dos sistemas de proteção públicos na região, haja vista a transferência maciça de recursos públicos para o setor privado da economia, privilegiando o capital estrangeiro. A submissão de governos ao capitalismo financeiro, que resulta na transferência para centros de decisões situados no plano externo, ou seja, do poder decisório sobre políticas econômicas, nelas compreendidas as de natureza sociais, está a deliberar sobre a edição desenfreada de normas que significam verdadeiros retrocessos sociais, em oposição às conquistas angariadas pelos trabalhadores.

Há que se repudiar veemente as formas como estão sendo trabalhados ajustes fiscais, com a consequente redução do tamanho do Estado, abertura comercial, privatizações, fim das restrições ao capital internacional, abertura financeira, desregulamentação das leis trabalhistas e desestruturação dos sistemas implantados com vistas à proteção social. Essas ações promovem diminuição da inclusão social e em contramão, o avanço das desigualdades sociais e de práticas discriminatórias (racismo, xenofobia, homofobia e misoginia).

Atuação sindical no campo dos direitos sociais

As conquistas sindicais não foram construídas a partir de um rompimento constitucional, mas sim de forma paulatina, fruto de movimentos reivindicatórios por parte da classe trabalhadora ao se posicionar contra a tirania do Estado.

Partindo-se da premissa de que a todo trabalhador deve ser garantida cobertura securitária, com vedação de retrocesso social, e que a todos é garantido o bem-estar social e o mínimo existencial como direitos fundamentais, urge delimitar a importância do movimento sindical para garantia e manutenção desses direitos, ora visivelmente atentados, para o fim de serem mutilados.

No mundo globalizado do século XXI, em que as tecnologias estão a substituir a mão de obra do trabalhador, outros desafios se mostram prementes e necessários, exigindo das instituições representativas dos trabalhadores uma análise do passado, a verificação do presente e o apontamento de rumos para os horizontes.

No presente momento quando a proteção social (saúde, previdência e assistência social) do trabalhador vem sendo absurdamente mitigada, é demasiadamente importante que se faça uma reflexão acerca da importância do movimento sindical no campo dos direitos sociais. Ainda mais quando os governos neoliberais empregam ardis e subterfúgios com o desideratum de impedir o protagonismo sindical.

Neste mesmo sentido, não pode ser olvidado e desconsiderado que a luta sindical pode influenciar para adoção de políticas públicas que sejam capazes de dar proteção e amparo aos trabalhadores e que somente com ações conjuntas entre os sindicatos da América Latina e Caribe será possível impedir o avanço do imperialismo e submissão ao poderio do capitalismo na região.

Conforme as lições valiosas de Robert Alexander:

Desde os seus primórdios, como se vê, a organização operária na América Latina foi parte do movimento por uma transformação básica, do ponto de vista econômico, social e político, na área. A partir do seu princípio, estava impregnada de ideias revolucionárias. Além do mais, a sua própria existência, era uma precursora, bem como uma força motivadora para a mudança. Representava uma nova força no cenário social, e era inevitável que os seus membros lutassem para aumentar tanto a sua participação cívica como seu quinhão em toda a renda nacional destes países[9].

Como vimos especificamente no caso do Brasil, as elites dominantes contam com o apoio do Poder Judiciário e parte considerável da doutrina, que a despeito de consolidar um posicionamento contrário às conquistas sociais, mitigam direitos sob a argumentação de que por vezes não pode o Estado cumprir com as políticas públicas sociais por incapacidade financeira. Noutro norte, não apontam soluções e muito menos determinam prazos para satisfação dos direitos violados.

É a Constituição Federal Brasileira de 1988 que expressamente inclui a saúde como direito fundamental social, oponível contra todos e lhe dedica todo um capítulo, em especial para afirmar positivamente no seu Artigo 196 que A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas públicas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação. 

A construção do direito não é, portanto, uma simples criação doutrinária, vez que se trata de direito positivado e dentro da rigidez constitucional brasileira, insere-se no chamado campo das cláusulas pétreas, cujas normas destacadas não podem ser violadas nem mesmo por meio de emendas constitucionais, com votação qualificada dentro das duas casas legislativas que compõem o Congresso Nacional (Senado e Câmara dos Deputados, no sistema bicameral).

Ao lado da inserção do direito à saúde, como direito fundamental de segunda geração ou dimensão, encontra-se o direito à livre associação sindical, como reposta do advento do Welfare State, no pós Segunda Guerra Mundial, que fortaleceu o estado e ampliou as políticas de justiça distributiva.

Ao explicar o nascedouro e estruturação do sistema sindical, para combater os abusos sociais e frente à negação do reconhecimento dos direitos trabalhistas e sociais, Ruy Pedroza faz a seguinte advertência:

Contra esse ordenamento desigual, os trabalhadores resolveram unir-se, formando sindicatos. E o fizeram, apesar da repressão violenta e da resistência encarniçada do Estado e do patronato, iniciando a epopeia de um aprendizado longo e difícil, todavia ainda não concluído. O espírito generoso que inspirou a ação sindical desde a sua origem tem sido o de lutar pelo respeito à dignidade da pessoa que trabalha, por sua segurança social e por uma sociedade que assegure a todos o desenvolvimento pleno de sua personalidade[10].

Dentre as muitas conquistas sindicais, deste o nascedouro com a Revolução Industrial, está a proteção securitária contra os riscos de enfermidade, velhice e morte. Portanto, não há que se falar em proteção social olvidando-se dos meios para o alcance desta proteção, que como repisado, envolve o direito à saúde, na concepção moderna adotada pela Organização Mundial da Saúde.

Uma das piores investidas do atual governo brasileiro é a chamada Lei da Terceirização, que a despeito de sufragar direitos trabalhistas, inclui os profissionais da saúde no rol das funções terceirizáveis o que de súbito (e não progressivamente) fará com que as categorias desses trabalhadores sejam ainda mais desvalorizadas, o que consequentemente, com insatisfação, tornará os serviços de saúde ainda mais vulneráveis, concorrendo para o caos.

A escolha pela instituição do estado mínimo, que não se ocupa das políticas sociais, renegando-as para o grande mercado financeiro, tratando a proteção social como fator de lucro e não como deve ser cobertura para os eventos de doença, invalidez e morte, exigem posicionamento e ingerência maiores por parte do sindicalismo hodierno, de forma a conter os avanços da política ultraneoliberal, que oprime trabalhadores.

O relatório Sindicatos e Pleno Emprego;, de 1951, concebida pela Confederação Sueca de Sindicatos, segue essa linha de ilação, ao se direcionar pelas recomendações do relatório de Beveridge, com políticas de pleno emprego e solidariedade salarial (o que induz a solidariedade social). Neste contexto, vale colacionar a seguinte análise:

A tese de que as políticas sociais têm efeitos econômicos negligenciados estimulou a formulação da doutrina do desenvolvimento social (Midgley e Tang, 2001). Os dois princípios centrais dessa doutrina são: (i) as políticas econômicas devem perseguir o bem-estar de toda população; e (ii) o bem-estar social deve se orientar para os chamados investimentos sociais políticas econômicas, isso requereria uma reorientação na direção da promoção direta de bem-estar; do ponto de vista das políticas sociais, uma reorientação na direção de políticas que acentuassem a participação econômica e o aumento das capacitações para a produtividade, ao mesmo tempo em que uma retratação da ênfase em políticas de manutenção de renda e de assistência social[11].

Se as centrais sindicais não estão cumprindo satisfatoriamente seus papéis institucionais, para a consecução destes objetivos, é hora de se reinventaram, não de serem extintas, como aventam alguns desavisados. A própria modificação nas relações trabalhistas, reclamam mudanças. Se dantes tínhamos que cuidar maciçamente dos trabalhadores nas indústrias (e de suas doenças e acidentes de trabalho característicos), hoje surge uma nova classe de trabalhadores, que operam máquinas tecnológicas e desenvolveram outros tipos de patologias (como tenossinovite - inflamação da sinóvia, o revestimento da bainha protetora que cobre os tendões, causada no mais das vezes por cansaço excessivo e esforço repetitivo), além das preocupações que no presente assombram o mundo: depressão e estresse.

A estabilidade econômica e garantia das liberdades políticas (assentadas na tríplice conceituação de justiça, democracia e paz), com base na primazia do interesse humano sobre o lucro do capital, reclamam a intervenção sindical, na medida em que o dialogo construtivo deve prevalecer sobre as ingerências legislativas autoritárias e por vezes ilegítimas. A representação através de instituições coletivas do trabalhador, é de suma importância para o restabelecimento do processo democrático, que ora se encontra fragilizado pelas políticas neoliberais.

Conclusão

A democracia deve ser considerada e adotada como sistema capaz de garantir a participação dos trabalhadores nas decisões públicas, no enfrentamento de crises, na condução do estado, o que somente se torna possível de forma efetiva, a partir da participação nos movimentos sindicais e criação de alianças que possam assegurar demandas enérgicas e estratégicas, corrigindo injustiças e afrontas a todas as formas de discriminação e tentativas de ferir a dignidade da pessoa humana.

Somente com ações positivas por parte dos sindicatos poderão ser mudados paradigmas, através da formulação de dinâmicas que propiciem a identificação dos conflitos existentes, com análise comparada entre as legislações, o que serve como subsídio para uma visão crítica e integrativa, fornecendo elementos para o fortalecimento e sustentabilidade dos sistemas de proteção social, sem ferir direitos dos trabalhadores.

Às ações dos governantes, que ora se encontram empenhados na remodelação dos estados, sob a hegemonia das elites dominantes, devem em contrapartida, serem adotadas ações de tamanho jaez que possam dar respostas rápidas e efetivas a fim de oferecer alternativas no enfrentamento das duras políticas de ajustes econômicos e políticos que impõem pesados ônus aos trabalhadores e com estabelecimento de dinâmicas que permitam desenvolvimento sustentável através do processo de integração.

Não se pode negar a importância da luta constante dos sindicatos da região, na adoção da seguridade social como fator de inclusão e igualdade social, com fundamento no princípio do bem-estar social, e não fator de lucro para empresários e banqueiros dos grandes grupos internacionais, inclusive no que se refere à intensificação das lutas de proteção às mulheres, às comunidades LGBTI (lésbicas, gays, bissexuais, transexuais e intersexuais), aos imigrantes e refugiados, trabalhadores jovens e aqueles que de alguma forma, perderam momentânea ou permanente, a capacidade laboral.

Neste diapasão, se há o descontentamento por parte de alguns no que tange à atuação dos sindicatos nos últimos anos (corrupção, desvios de recursos e finalidades, atuação ao lado e para governos neoliberais, etc.), tal fato não pode justificar simplesmente incentivar o desejo de aniquilamento das instituições representativas dos trabalhadores, uma vez que têm papel fundação fundamental na formulação e reorganização de políticas sociais voltadas para o bem-estar coletivo, como premissa para o bem-viver.

É papel dos sindicatos a tarefa de oferecer respostas rápidas às modificações sociais nefastas que vêm sendo promovidas pelos governos neoliberais em nítido detrimento aos trabalhadores. A certeza é de que a força política dos sindicatos, no mundo contemporâneo, que direciona a mobilização popular pautada na busca e permanência dos direitos sociais, é caminho preponderante para a consolidação do bem-estar social, como sistema capaz de garantir a proteção social.

O que se tem de combater (tarefa da sociedade como um todo) são os falsos sindicalistas de plantão (como o Deputado Paulinho da Força, presidente da Força Sindical, uma das principais centrais sindicais do Brasil e que atuou com e para a Odebrecht, no sentido da empresa lidar com os movimentos sindicais, recebendo vultuosas somas de dinheiro para mitigar os ditos movimentos). São esses falsos sindicalistas, que à serviço do grande capital, estão a contaminar o legitimo sindicalismo, cuja construção se deu a partir de movimentos dos trabalhadores.

Os grandes problemas pelos quais atravessam a comunidade latino-americana e caribenha, que estão a proporcionar verdadeiros retrocessos sociais, somente podem ser enfrentados com união da classe trabalhadora, com apoio dos sindicatos, que devem promover além das ações positivas e incisivas (como mobilizações) a disseminação dessa cultura, ou seja, devem os sindicalistas modernos ter também a função de serem verdadeiros educadores sociais. E tem surgido movimentos com essa lógica perspectiva. Por ora, são movimentos com certa timidez, mas que tendem a revolucionar.

Portanto, a luta sindical, tomada em acepção de uma luta coletiva e social, com a garantia de participação democrática e incentivada da classe trabalhadora, e adotando-se os sindicatos como instrumentos de razão de conquistas em prol do desenvolvimento coletivo e enraizado na redemocratização, que ora se torna necessária de forma premente, é a resposta para o enfrentamento da crise que enfrentamos ocasionada pelo mercado financeiro que valoriza o individualismo e o consumo, com patrocínio de alternativas que engordarão a linha da pobreza, onde a saúde é apenas uma sombra.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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--------- Conceito de Saúde segundo a OMS. Disponível em http://cemi.com.pt/2016/03/04/conceito-de-saúde-segundo-oms-who/. Acesso em 12.04.2017.

NOTAS DE RODAPÉ

[1] Conceito de Saúde segundo a OMS. Disponível em http://cemi.com.pt/2016/03/04/conceito-de-saúde-segundo-oms-who/. Acesso em 12.04.2017.

[2] Idem.

[3] SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. Ed. Livraria do Advogado, Porto Alegre/RS, 1998. p. 313.

[4] NOVELINO, Marcelo. Direito Constitucional. Ed. Método: São Paulo, 2012. 6ª ed. p. 634.

[5] MASSON, Nathalia. Manual de Direito Constitucional. Ed. Jus Podium: Salvador/BA, 2017. 5ª ed. p. 337.

[6] MARMELSTEIN, George. Curso de Direitos Fundamentais. Ed. Atlas: São Paulo, 2008.

[7] Vale destacar que no Brasil a seguridade social é formada por saúde, previdência e assistência social.

[8] SOARES, Laura Tavares. Os Custos Sociais do Ajuste Neoliberal na América Latina. Ed. Cortez: São Paulo, 2002. 2ª ed. p. 21 e 31.

[9] ALEXANDER, Robert J. A Organização do Trabalho na América Latina. Tradução de Rodolfo Kender. Ed. Civilização Brasileira: Rio de Janeiro, 1967. p. 13.

[10] PEDROZA, Ruy Brito de Oliveira. Movimento Sindical: Origem, Conscientização, Conquistas e Novos Desafios. Série Estudos e Pesquisas. Revista de publicação do Instituto de Promoção Social (IPROS). São Paulo, 1996. p. 9.

[11] KERSTENETZKY, Célia Lessa. O Estado do Bem-Estar Social na Idade da Razão: A Reinvençao do Estado Social no Mundo Contemporâneo. Ed. Elsevier: Rio de Janeiro, 2012. p. 52.

Sobre a autora
Rosana Colen Moreno

Rosana Cólen Moreno. Procuradora do Estado de Alagoas. Membro da Confederação Latino-americana de trabalhadores estatais (CLATE). Especialista em previdência pública pela Damásio Educacional e em direitos humanos pela PUC/RS (em finalização). Autora do livro Manual de Gestão dos Regimes Próprios de Previdência Social: foco na prevenção e combate à corrupção, publicado pela LTr. Coordenadora da Comissão Internacional Avaliadora instituída pelo Conselho Latino-americano de Ciências Sociais (CLACSO-UNESCO) e denominada “Desigualdades, Exclusão e Crises de Sustentabilidade dos Sistemas Previdenciários da América Latina e Caribe. Educadora, Professora, Instrutora, Palestrante, Consultora. Participante do programa de doutorado em Direito Constitucional pela Universidad de Buenos Aires – UBA. Especialista em Regimes Próprios de Previdência (Damásio Educacional). Autora do livro: Manual de Gestão dos Regimes Próprios de Previdência Social: foco na prevenção e combate à corrupção.

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