A demarcação de terras indígenas é uma garantia constitucional?

15/01/2022 às 11:12
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Resumo: O presente artigo analisa a questão da demarcação das terras indígenas no Brasil, como garantia constitucional e com base na decisão do Supremo Tribunal Federal proferida na Petição nº 3388, proveniente de uma Ação Popular e que definiu como marco temporal a edição da Constituição Federal de 1988. Averigua, além da legitimidade da decisão, o viés político da mesma, concluindo de forma negativa, tendo em vista que o sistema de produção capitalista parece exercer influência nas decisões do STF e que pode ser diretiva no julgamento do marco temporal para demarcações de terras indígenas.

Palavras-chave: Indígenas. Demarcação de terras. Garantias Constitucionais. Supremo Tribunal Federal. Sistema de produção capitalista. Destino.

Resumen: El presente artículo analiza la cuestión de la demarcación de las tierras indígenas en Brasil, como garantía constitucional y con base en la decisión del Supremo Tribunal Federal dictada en la Petición nº 3388, proveniente de una Acción Popular y que definió como marco temporal la edición de la Constitución Federal de 1988. Averigua, además de la legitimidad de la decisión, el sesgo político de la misma, concluyendo de forma negativa, teniendo enque el sistema de producción capitalista parece ejercer influencia en las decisiones del STF.

Palabras clave: Indígenas. Demarcación de tierras. Garantías Constitucionales. Supremo Tribunal Federal. Sistema de producción capitalista. Destino.

1. Introdução

Desde a época da invasão portuguesa no Brasil (que nos livros de história consta como descobrimento), no início do século XVI, as comunidades tradicionais brasileiras vêm sofrendo todas auguras possíveis, incluindo genocídios e chacinas. Um dos maiores ataques, foi e continua sendo, o desapossamento dos índios de suas terras, notadamente em busca de riquezas nelas existentes.

Corroborando com a assertiva, Gilles Perrault, fazendo análise contundente acerca dos males perpetrados pelo sistema capitalista, assinalou que os índios das Américas foram vítimas do maior genocídio da história da humanidade. Para satisfazer a fome de riqueza dos europeus, os povos indígenas das Américas foram exterminados [...]. Este genocídio prossegue ainda hoje sob formas frequentemente muito diferentes[1]. De acordo com Perrault, quando da invasão portuguesa, o Brasil era povoado por cerca de 3 milhões de índios. Em 1940 o número foi reduzido para 500 mil e em 1950, para não mais de 150 mil. (PERRAULT, ob. citada:385).

A chacina generalizada contra os povos nativos só não foi pior devido ao trabalho incansável do Frei Bartolomé de las Casas, que não poupou esforços em proteger os aborígenes ameríndios, primordialmente em seu famoso debate escolástico com Juan Ginés de Sepúlveda, em Valladolid, no século XVI.

Conforme análise de Antônio Carlos Wolkmer, a força doutrinária da mensagem do incansável bispo de Chiapas e o valor de sua obra, expressam um projeto de convivência pacífica, entre todos os povos, com respeito ao absoluto pela diversidade de raças, religiões e culturas, o que faz dele (Las Casas) o precursor do conceito moderno de pluralismo racial, cultural, político, religioso e jurídico. (WOLKMER, 2006:86-87).

É o sistema de produção capitalista em detrimento dos indígenas, que originariamente ocupam territórios visados pela mão invisível do mercado financeiro, na expressão cunhada por Adam Smith e que continua com sua perversidade em busca do lucro. Os povos aborígenes, desde a incursão dos europeus em outras regiões do globo terrestre e em face do imperialismo, têm sido desapossados de seus territórios, de forma ilegítima.

Rosa Luxemburgo no seu estudo sobre a acumulação capitalista, sustentou que esse sistema não pode sobreviver sem as economias não-capitalistas: ele sé é capaz de avançar seguindo os próprios princípios enquanto existirem terras virgens abertas à expansão e à exploração embora, ao conquista-las e explorá-las, ele as prive de sua virgindade pré-capitalisa, exaurindo assim as fontes de sua própria alimentação.(BAUMAN, 2009:8).

François Chesnais, em seu artigo Não só uma crise econômica e financeira, uma crise de civilização, afirma categoricamente referindo ao sistema de produção capitalista, que o mesmo não é simplesmente um sistema econômico. É também ou, hoje em dia, acima de tudo um sistema de dominação social em proveito de burguesias oligárquicas e oligarquias burocrático-capitalistas, hierarquizadas em nível mundial. (CATANI et. al., 2011:189).

Uma reflexão que busca compreender a situação de um determinado grupo indígena no que diz respeito a seu território contemporâneo deve, necessariamente, partir de elementos materiais de maneira a compreender sua conformação enquanto um processo histórico. (ALKMIN, 2017:91).

Contudo, as agressões continuam sendo perpetradas por causa da ganância do homem branco, impulsionada pela mão invisível do mercado financeiro. Episódios de expulsão dos índios de suas terras tradicionais e consequentemente da privação de seus meios naturais de produção, seguem acontecendo. Mais de 500 (quinhentos) anos se passaram da invasão portuguesa, no entanto, até hoje a luta do aborígene brasileiro se mantém pelo direito à permanência em suas terras.

2. Garantias constitucionais

A primeira afirmação que merece ser destacada é acerca da titularidade da garantia constitucional, que pertence ao povo, titular do direito a ser garantido. Outra característica é o sentido dual, que se refere à proteção ou defesa. Neste contexto, o constitucionalista brasileiro Paulo Bonavides destaca que existe a garantia sempre em face de um interesse que demanda proteção e de um perigo que se deve conjurar. E com ênfase na garantia como meio de defesa, Bonavides destaca que A garantia meio de defesa se coloca então diante do direito, mas com este não se deve confundir. (BONAVIDES, 2016: 537-538).

Já para o constitucionalista argentino Raúl Gustavo Ferreyra,

Con idênticajerarquia que las garantias del derecho de la constituición, la esencia misma de las garantias constitucionales o garantías de los derechos constitucionales queda constituida por la técnica jurídica especializada para dotar de efectividad a los derechos y/o al normal desenvolvimiento de la vida institucional. Desde otro ángulo, pueden ser caracterizadas como las herramientas de naturaleza reactiva y defensista que se ofrecen a los ciudadanos para que, en cada caso singular o general en que se repute producida una vulneración o amenaza de lesión de un derecho fundamental o del estatuto de los poderes, puedan acudir a ellas y obtener la preservación del derecho o el restablecimiento del equilibrio de los poderes[2].

Todavia, esse entendimento parece não ser adotado no âmbito do Supremo Tribunal Federal.

Existe todo um aparato normativo de proteção e defesa aos direitos indígenas como bloco de constitucionalidade, a começar pela Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que dedica várias disposições, com especial atenção, à relação dos povos indígenas e tribais com seus territórios, reconhecendo o direito de propriedade (aqui inclusos os recursos naturais que neles se encontram).

Para corroborar com a assertiva, vale colacionar o disposto no artigo 14 da referida Convenção (numeração no original):

1. Os direitos de propriedade e posse de terras tradicionalmente ocupadas pelos povos interessados deverão ser reconhecidos. Além disso, quando justificado, medidas deverão ser tomadas para salvaguardar o direito dos povos interessados de usar terras não exclusivamente ocupadas por eles às quais tenham tido acesso tradicionalmente para desenvolver atividades tradicionais e de subsistência. Nesse contexto, a situação de povos nômades e agricultores itinerantes deverá ser objeto de uma atenção particular.

2. Os governos tomarão as medidas necessárias para identificar terras tradicionalmente ocupadas pelos povos interessados e garantir a efetiva proteção de seus direitos de propriedade e posse.

3. Procedimentos adequados deverão ser estabelecidos no âmbito do sistema jurídico nacional para solucionar controvérsias decorrentes de reivindicações por terras apresentadas pelos povos interessados[3].

A Convenção/OIT n° 169, fora inicialmente abarcada pelo Brasil através do Decreto n° 5.051, de 19 de abril de 2004. Contudo, foi revogado pelo Decreto n° 10.088, de 5 de novembro de 2019, que Consolida atos normativos editados pelo Poder Executivo Federal que dispõem sobre a promulgação de convenções e recomendações da Organização Internacional do Trabalho - OIT ratificadas pela República Federativa do Brasil.

Neste sentido, passou a integrar o rol dos atos normativos elencados pelo Decreto n° 10.088, de 2019. Para clarificação, vale trazer à colação o disposto no Art. 1º c/c Art. 2º, LXXII, do referido decreto:

Art. 1º  Este Decreto consolida, na forma de seus anexos, os atos normativos editados pelo Poder Executivo federal que dispõem sobre a promulgação de convenções e recomendações da Organização Internacional do Trabalho - OIT ratificadas pela República Federativa do Brasil e em vigor, em observância ao disposto na Lei Complementar nº 95, de 26 de fevereiro de 1998, e no Decreto nº 9.191, de 1º de novembro de 2017

Art. 2º  As convenções e recomendações da OIT, aprovadas pelo Congresso Nacional, promulgadas por ato do Poder Executivo federal e consolidadas por este Decreto estão reproduzidas integralmente nos Anexos, em ordem cronológica de promulgação, da seguinte forma:

[...]

LXXII - Anexo LXXII - Convenção nº 169 da OIT sobre Povos Indígenas e Tribais (adotada em Genebra, em 27 de junho de 1989; aprovada pelo Decreto Legislativo nº 143, de 20 de junho de 2002; depositado o instrumento de ratificação junto ao Diretor Executivo da OIT em 25 de julho de 2002; entrada em vigor internacional em 5 de setembro de 1991, e, para o Brasil, em 25 de julho de 2003, nos termos de seu art. 38; e promulgada em 19 de abril de 2004); [...].

Em 1973, foi editada no Brasil a Lei nº 6.001, denominada como o Estatuto do Índio Estatuto do Índio e regulamentada pelo Decreto 1.775, de 1996 (declarados constitucionais pelo Supremo Tribunal Federal). Registre-se que a lei sob comento foi sancionada no período de ditadura militar (1964-1985). A aludida lei regulamentou a situação jurídica dos índios ou silvícolas (sem se posicionar em relação à semântica) e das comunidades indígenas, com o propósito de preservar a sua cultura e integrá-los, progressiva e harmoniosamente, à comunhão nacional, apesar de expressamente dizer que os usos, costumes e tradições seriam resguardados.

Com relação às terras indígenas, a nova legislação no inciso IX, do artigo , categoricamente asseverou garantir aos índios e comunidades indígenas, nos termos da Constituição, a posse permanente das terras que habitam, reconhecendo-lhes o direito ao usufruto exclusivo das riquezas naturais e de todas as utilidades naquelas terras existentes.

Irônica e contrariamente ao ditame legal, o então Presidente General Emilio Garrastazu Médici, instituiu à época, o Plano de Integral Nacional (PIN), que dentre outros, previa a colonização da Amazônia (permitiu a construção da Transamazônica, que quedou inacabada, apesar dos enormes recursos públicos gastos). Ou seja, para a nova política de interiorização do país, os indígenas continuariam a ser um empecilho para o progresso.

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Neste diapasão, vale contextualizar novamente com Perrault, que nunca crítica contundente e verídica, deixou registrado que:

Estatuto do Índio nega aos indígenas a possibilidade de escolha em relação ao seu futuro. O artigo 60 do Estatuto fala de desenvolvimento psíquico mais do que de desenvolvimento cultural e considera o índio um homem ainda não desenvolvido, ou seja, uma criança! E de fato, ação o considera um homem?

Estatuto do Índio não reconhece a propriedade da terra pelo índio (que se mantém um bem do Estado Federal). Os artigos 34, 35 e 36 do título 3 permitem a deportação de populações indígenas inteiras por simples decreto do presidente da República por diversos motivos, entre os quais a segurança nacional e o desenvolvimento da região no mais elevado interesse nacional.[4]

Em 2013, foi encontrado o Relatório Figueiredo[5], de 1968 e que trata das atrocidades cometidas pelo regime de exceção aos povos nativos brasileiros no período. De acordo com o Relatório mencionado (desaparecido por quarenta e cinco anos e ressurgido em 2013) foram cometidos assassinatos, torturas e uma série de crueldades contra os povos indígenas brasileiros, por latifundiários e até mesmo por funcionários do extinto Serviço de Proteção ao Índio SPI (substituído pela Fundação Nacional do Índio FUNAI) durante o período de exceção política.

Após o período de redemocratização no Brasil, que culminou com a instalação da Assembleia Nacional Constituinte em 1987, cujos trabalhos, sob a presidência do saudoso Deputado Ulisses Guimarães, resultaram na Constituição Federal de 1988, a chamada Constituição Cidadã, que inovou em matéria de direitos e garantias constitucionais. Sobre as comunidades tradicionais, a Constituição de 1988, passou a disciplinar a questão de suas terras tradicionalmente ocupadas, dizendo textualmente que compete à União (unidade federada de grau superior), as suas demarcações.[6]

Não se pode olvidar que a garantia constitucional da demarcação de terras indígenas vai além do direito de propriedade. Neste diapasão, o professor argentino Ricardo Rabinovich-Berkman nos adverte que:

En la actualidad, las comunidades aborígenes sudamericanas (o lo que de ellas queda) bregan por su derecho colectivo a la identidad. Quieren recuperar la memoria, recordé de dónde vienen, tal vez para intuir mejor hacia dónde van. Recuperándose trabajosa y estoicamente de postergaciones y desprecios, buscan con afán sus raíces culturales, para entenderse mejor a sí mesmas. Para recobrar su autoestima, y satisfacer su legítimo deseo de continuidad, necesitan de la verdad, no de halagos ni de politizaciones[7].

Contudo, apesar do bloco de constitucionalidade (de forma cristalina), os ataques aos territórios indígenas continuam, perpetrados notadamente pelo agronegócio, por pecuaristas e extrativistas (inclusive extração de madeiras para construção de rodovias, pastagens e afins), muitas das vezes com apoio considerável de organizações internacionais, inclusive donos de grandes cadeias produtivas interessados na extração e posse dos recursos naturais que ali podem ser encontrados (p. ex. o nióbio, de grande valor comercial)[8]. A questão da demarcação das terras indígenas no Brasil continua a gerar polêmicas, impetrações judiciais e lutas armadas contra as comunidades indígenas.

3. A demarcação de terras indígenas no âmbito do Supremo Tribunal Federal o marco temporal

A matéria afeta à interpretação das normas constitucionais é tema constante na doutrina constitucionalista. Segundo a cátedra do constitucionalista argentino Raúl Gustavo Ferreyra, citando Roberto Vernengo, interpretar

el sistema constitucional es, en primer término, leer su texto asignando sentidos a las disposiciones que lo integran. Sin embargo, un texto constitucional puede ser entendido no sólo porque se conoce su vocabulario sino, y sobre todo, porque se domina la gramática del lenguaje constitucional empleado, básicamente, el que confiere reconocimiento a los derechos y garantías y programa la distribución, asignaciones de potestades y correlativos controles de las funciones estatales[9].

Apesar da cristalinidade dos dispositivos da Constituição Federal, os mesmos foram motivo de questionamentos no âmbito do Supremo Tribunal Federal (STF), que foi impulsionado para definir acerca do marco temporal da delimitação das terras indígenas. Em 20.04.2005, foi impetrada Petição, tombada sob o número 3388[10], proveniente de uma Ação Popular,questionando portaria do Ministério da Justiça (homologada pelo então Presidente Lula), que declarou em 1998, a posse permanente indígena na Reserva Raposa Serra do Sol.

A definição do Supremo Tribunal Federal veio em 2009, quando se estabeleceu a legitimidade da posse dos indígenas e saída imediata da reserva daqueles que não o fossem. O usufruto das terras delimitadas, com seus recursos naturais, seria então exclusivamente das comunidades tradicionais.

Conquanto tenha havido e sido firmada a questão da delimitação das terras na Reserva Raposa Serra do Sol, outro ponto abordado e definido pelo STF o marco temporal. Na ocasião firmou-se o entendimento de que os indígenas teriam direito aos seus territórios a partir da Constituição Federal de 1988, ou seja, se estivem ocupando-os na data da promulgação da Carta Maior.

A tese do marco temporal, evidencia que o direito natural das comunidades indígenas foi naufragado, evidenciando que na realidade, cuidou-se de uma decisão política, atendendo aos apelos ruralistas.

Ocorre que somente foi reconhecido o direito dos povos aborígenes que se encontravam em seus territórios na data de promulgação da Constituição Federal de 1988 o marco temporal. Entretanto, o Supremo Tribunal Federal olvidou-se que antes do marco temporal estabelecido, comunidades indígenas foram desapossadas de seus territórios e com a nova decisão, o retorno aos mesmos fica impedido. A decisão assim, legitima as expulsões e violação dos direitos.

A tese elaborada e firmada ainda nega o direito de acesso ao Poder Judiciário por parte dos aborígenes que foram arrancados de seus territórios.

Em sede de Embargos Declaratórios (quando há obscuridade, omissão ou contradição em uma sentença judicial) em 2013, o STF delineou que a decisão proferida não possui efeitos vinculantes, nos seguintes termos e postos na ementa, da qual colacionamos uma parte:

4.A decisão proferida em ação popular é desprovida de força vinculante, em sentido técnico. Nesses termos, os fundamentos adotados pela Corte não se estendem, de forma automática, a outros processos em que se discuta matéria similar. Sem prejuízo disso, o acórdão embargado ostenta a força moral e persuasiva de uma decisão da mais alta Corte do País, do que decorre um elevado ônus argumentativo nos casos em se cogite da superação de suas razões[11].

Instada a se pronunciar, a Advocacia Geral da União (AGU) se posicionou, em longo e fundamentado parecer (PARECER N. 001/2017/GAB/CGU/AGU), reforçando a tese adotada pelo STF. No núcleo do aludido parecer, ficou consubstanciado, no que diz respeito às garantias constitucionais atinentes à propriedade dos territórios indígenas que

A definição jurisprudencial das denominadas "salvaguardas institucionais" às terras indígenas é o resultado de um longo e reflexivo trabalho de um colegiado de magistrados que, ciente de sua difícil missão institucional, procurou compreender as múltiplas perspectivas sociais apresentadas no caso, inclusive mediante visitas in loco à terra indígena, e assim equacionar todas as questões jurídicas envolvidas, com o claro e consciente objetivo de estabelecer um marco constitucional para a proteção dos direitos dos índios à suas terras. Um quadro jurídico-constitucional que, ao oferecer uma resposta para o caso concreto, ao mesmo tempo representaria, com inegável conteúdo propedêutico, o parâmetro normativo geral para garantir a segurança jurídica e a efetividade dos direitos indígenas em futuros processos de demarcação. Uma decisão que, como ressaltou o Ministro Gilmar Mendes, deveria também "estar voltada para o futuro", deixando "fundadas as bases jurídicas para o contínuo reconhecimento aos povos indígenas das terras que tradicionalmente ocupam"[12].

Apesar da negatória da decisão exarada possuir efeitos vinculantes, a Advocacia Geral da União se manifestou no sentido de que os órgãos da Administração Pública Federal, direta e indireta, deverão observar as seguintes condições, dentre as quais:

(I) o usufruto das riquezas do solo, dos rios e dos lagos existentes nas terras indígenas (art. 231§ 2º, da Constituição Federal) pode ser relativizado sempre que houver, como dispõe o art. 231§ 6º, da Constituição, relevante interesse público da União, na forma de lei complementar; (II) o usufruto dos índios não abrange o aproveitamento de recursos hídricos e potenciais energéticos, que dependerá sempre de autorização do Congresso Nacional; (III) o usufruto dos índios não abrange a pesquisa e lavra das riquezas minerais, que dependerá sempre de autorização do Congresso Nacional, assegurando-se-lhes a participação nos resultados da lavra, na forma da lei; (IV) o usufruto dos índios não abrange a garimpagem nem a faiscação, devendo, se for o caso, ser obtida a permissão de lavra garimpeira; (V) o usufruto dos índios não se sobrepõe ao interesse da política de defesa nacional; a instalação de bases, unidades e postos militares e demais intervenções militares, a expansão estratégica da malha viária, a exploração de alternativas energéticas de cunho estratégico e o resguardo das riquezas de cunho estratégico, a critério dos órgãos competentes (Ministério da Defesa e Conselho de Defesa Nacional), serão implementados independentemente de consulta às comunidades indígenas envolvidas ou à FUNAI; (VI) a atuação das Forças Armadas e da Polícia Federal na área indígena, no âmbito de suas atribuições, fica assegurada e se dará independentemente de consulta às comunidades indígenas envolvidas ou à FUNAI; (VII) o usufruto dos índios não impede a instalação, pela União Federal, de equipamentos públicos, redes de comunicação, estradas e vias de transporte, além das construções necessárias à prestação de serviços públicos pela União, especialmente os de saúde e educação; [...].

Ou seja, com base na decisão do STF e parecer da AGU, as garantias constitucionais referentes à propriedade indígena encontram-se exponencialmente fragilizadas, podendo a União ingressar nos territórios (como acima disposto).

E as demarcações de terras indígenas estão sendo travadas no Brasil, sendo que a última ocorreu ainda na gestão da presidenta Dilma Rousseff.

Não se pode olvidar que está tramitando no Supremo Tribunal Federal a questão envolvendo o marco temporal, sendo que, por esse critério, os indígenas somente poderão reivindicar a demarcação de suas terras antes da Constituição Federal de 1988 (Vide RE 1.017.365), ou seja, as que já eram ocupadas antes da promulgação da Carta Política que se deu em 5 de outubro de 1988 (nesse mesmo sentido o PL 490/2007).

Assim, o sistema de produção capitalista que parece exercer influência nas decisões do STF, pode ser diretiva no julgamento do marco temporal para demarcações de terras indígenas.

4. Conclusão

O direito à demarcação de terras para assegurar os territórios das comunidades tradicionais brasileiras é uma prerrogativa ditada pelo Estado, no sentido de garantir o direito indígena à terra originalmente ocupada. A demarcação serve de fundamento para legitimar o direito, bem como impedir ocupações ilegítimas perpetradas por terceiros.

Ou seja, além de ser uma garantia constitucional para preservação do direito previsto, é a maneira de contornar a completa extinção dos povos originários não só no Brasil, mas também na América Latina e Caribenha. A demarcação é instrumento hábil para salvaguardar a memória dos nossos ancestrais pré-colombianos e acautelar a soberania das comunidades tradicionais.

No entanto, no atual contexto político-econômico brasileiro, o que temos são cortes superiores de justiça laborando para a mão invisível do mercado financeiro/rentista, de forma que, se não houver consciência, em curto espaço de tempo, não mais teremos representantes autênticos dos seres humanos que habitavam o continente antes da chegada do europeu.

O porta-voz dos yanomanis, grupo indígena que vive no Estado de Roraima, e que tem resistido à mão invisível, nos dá um recado valioso:

Os antigos brancos desenharam o que chamam de suas leis em peles de papel, mas para eles parece que não passam de mentiras! Na verdade, eles só escutam as palavras da mercadoria. Os brancos, com suas mentes fincadas nas mercadorias, não querem saber de nada. Continuam a estragar a terra em todos os lugares onde vivem, mesmo debaixo das cidades onde moram! Nunca passa pela cabeça deles que se maltratarem demais, ela vai acabar revertendo ao caos. Eu nasci na floresta, e por isso prefiro viver nela[13].

Esses índios querem continuar sendo índios. Essa é a verdade. No entanto, parece que as instituições de proteção e defesa dos seus direitos não estão respeitando essa vontade, ao reverso, estando a serviço da mão invisível do mercado, seguem com suas políticas de invasão aos territórios indígenas, que por direito natural, pertencem exclusivamente a eles. Portanto, é lamentável o comportamento da mais alta instância de justiça brasileira, o que faz pensar que o sistema de produção capitalista exerce influência nas decisões do STF. Para continuarem a ser índios, precisam do respeito à soberania dos seus territórios, até mesmo de forma plurinacional.

BIBLIOGRAFIA

ALKMIN, Fábio M: Por uma geografia da autonomia.A experiencia de autonomia territorial zapatista em Chiapas. São Paulo,Humanitas, 2017.

BAUMAN, Zygmunt:Capitalismo Parasitário. Rio de Janeiro, ZAHAR, 2009.

CATANI, Afrânio Mendes et al:IstvánMészáros e os desafios do tempo histórico. São Paulo,Boitempo, 2011.

FERREYRA, Raúl Gustavo: Reforma Constitucional y Control de Constitucionalidad. Ediar, Buenos Aires, 2014.

KOPENAWA, Davi e ALBERT, Bruce: A queda do céu.Palavras de um xamã yanomani. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.

PERRAULT, Gilles: O livro negro do capitalismo. Título original em francês: Le livre noirducapitalisme. Tradução de Ana Maria Duarte et all. Rio de janeiro, Record, 1999.

RABINOVICH-BERKMAN, Ricardo D.: Principios Generales del Derecho Latinoamericano. Astrea, Ciudad de Buenos Aires, 3ª reimpresión, 2017.

WOLKMER, Antônio Carlos:Síntese de uma História das Ideias Jurídicas.Da Antiguidade Clássica à Modernidade. Florianópolis, Fundação Boitteux, 2006.

_____________Relatório Figueiredo. Disponível no link http://www.ecolnews.com.br/Relatorio_Figueiredo_um_documento_historico_que_relata_a_%20viol%C3%AAncia_contra_os_indios.htm

______________ Relatório Violência contra os povos indígenas no Brasil dados de 2015. Disponível através do link https://cimi.org.br/pub/relatorio/Relatorio-violencia-contra-povos-indigenas_2015-Cimi.pdf

­­­­­­­­­­­­­­­­­­­________________ Supremo Tribunal Federal. Petição nº 3388http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=2288693

_________________ Supremo Tribunal Federal. Embargos declaratórios.http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=5214423

________________ Parecer da Advocacia Geral da União. Disponível no linkhttps://www.conjur.com.br/dl/parecer-agu-raposa-serra-sol.pdf

NOTAS DE RODAPÉ

[1]PERRAULT, Gilles: O livro negro do capitalismo. Título original em francês: Le livre noirducapitalisme. Tradução de Ana Maria Duarte et all. Rio de janeiro, Record, 1999, pp. 385-387.

[2] FERREYRA, Raúl Gustavo: Reforma Constitucional y Control de Constitucionalidad. Ediar, Buenos Aires, 2014, pp. 85-86.

[3] Disponível no link: http://portal.iphan.gov.br/uploads/ckfinder/arquivos/Convencao_169_OIT.pdf

[4] PERRAULT, ob. citada, 387.

[5]O Relatório Figueiredo, que contém mais de 7.000 páginas, pode ser obtido na íntegra através do link: http://www.ecolnews.com.br/Relatorio_Figueiredo_um_documento_historico_que_relata_a_%20viol%C3%AAncia_contra_os_indios.htm

[6] Neste sentido, confere a redação dada aos artigos 213 e 214 da CF/88:

Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.

§ 1º São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.

§ 2º As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes.

§ 3º O aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os potenciais energéticos, a pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras indígenas só podem ser efetivados com autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas, ficando-lhes assegurada participação nos resultados da lavra, na forma da lei.

§ 4º As terras de que trata este artigo são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis.

§ 5º É vedada a remoção dos grupos indígenas de suas terras, salvo, "ad referendum" do Congresso Nacional, em caso de catástrofe ou epidemia que ponha em risco sua população, ou no interesse da soberania do País, após deliberação do Congresso Nacional, garantido, em qualquer hipótese, o retorno imediato logo que cesse o risco.

§ 6º São nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este artigo, ou a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes, ressalvado relevante interesse público da União, segundo o que dispuser lei complementar, não gerando a nulidade e a extinção direito a indenização ou a ações contra a União, salvo, na forma da lei, quanto às benfeitorias derivadas da ocupação de boa-fé.

§ 7º Não se aplica às terras indígenas o disposto no art. 174, § 3º e § 4º.

Art. 232. Os índios, suas comunidades e organizações são partes legítimas para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses, intervindo o Ministério Público em todos os atos do processo.

[7] RABINOVICH-BERKMAN, Ricardo D.: Principios Generales del Derecho Latinoamericano. Astrea, Ciudad de Buenos Aires, 3ª reimpresión, 2017, p. 2019.

[8] Neste sentido, ver o Relatório Violência contra os povos indígenas no Brasil dados de 2015, uma publicação do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), organismo vinculado à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), cuja coordenação da pesquisa é da investigadora Lúcia Helena Rangel e que pode ser obtido através do link https://cimi.org.br/pub/relatorio/Relatorio-violencia-contra-povos-indigenas_2015-Cimi.pdf

[9] FERREYRA, ob. citada, pp. 90-91.

[10]Que pode ser obtida, na íntegra, com suas decisões, na página do STF e através do link http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=2288693

[11] A decisão completa em sede de embargos declaratórios pode ser obtida através do link http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=5214423

[12] O parecer completo pode ser visto através do link https://www.conjur.com.br/dl/parecer-agu-raposa-serra-sol.pdf

[13]KOPENAWA, Davi e ALBERT, Bruce. A queda do céu: palavras de um xamã yanomani. São Paulo: Companhia das Letras, 2015. P. 435-437.

Sobre a autora
Rosana Colen Moreno

Rosana Cólen Moreno. Procuradora do Estado de Alagoas. Membro da Confederação Latino-americana de trabalhadores estatais (CLATE). Especialista em previdência pública pela Damásio Educacional e em direitos humanos pela PUC/RS (em finalização). Autora do livro Manual de Gestão dos Regimes Próprios de Previdência Social: foco na prevenção e combate à corrupção, publicado pela LTr. Coordenadora da Comissão Internacional Avaliadora instituída pelo Conselho Latino-americano de Ciências Sociais (CLACSO-UNESCO) e denominada “Desigualdades, Exclusão e Crises de Sustentabilidade dos Sistemas Previdenciários da América Latina e Caribe. Educadora, Professora, Instrutora, Palestrante, Consultora. Participante do programa de doutorado em Direito Constitucional pela Universidad de Buenos Aires – UBA. Especialista em Regimes Próprios de Previdência (Damásio Educacional). Autora do livro: Manual de Gestão dos Regimes Próprios de Previdência Social: foco na prevenção e combate à corrupção.

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