Democracia Comunitária em Frei de Las Casas

15/01/2022 às 12:09
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Resumo: O artigo trata da discussão travada entre entre os freis Bartolomé de Las Casas e Juan Ginés de Sepúlveda em Valladolid/Espanha, onde buscou-se fundamentos para a guerra, dita santa, travada pelos colonizadores espanhóis em detrimento aos povos originários, tendo como ponto nevrálgico a teoria da escravidão natural de Aristóteles. Las Casas atuou em favor dos índios, refutando os argumentos de Sepúlveda. Ao final, buscou-se trabalhar a importância do resgate travado para a construção do ideário da Democracia Comunitária.

Palavras-chaves. Evangelização. Colonização. Escravidão Natural. Doutrinação. Ideário. Democracia Comunitária.

Resumo: El artículo trata de la discusión entre los frailes Bartolomé de Las Casas y Juan Ginés de Sepúlveda en Valladolid / España, donde se buscaron fundamentos para la guerra de los colonizadores españoles en detrimento de los pueblos originarios, teniendo como punto neurálgico la teoría de la esclavitud natural de Aristóteles. Las Casas actuó a favor de los indios, refutando los argumentos de Sepúlveda. Al final, se buscó trabajar la importancia del rescate trabado para la construcción del ideario de la Democracia Comunitaria.

Contraseñas. Evangelización. La colonización. Esclavitud Natural. Adoctrinamiento. Ideas. Democracia Comunitaria.

1.Introdução

No presente artigo tento mostrar a importância do resgate do debate travado, em 1550, entre os freis Bartolomé de Las Casas e Juan Ginés de Sepúlveda em Valladolid/Espanha, cujo ponto de fervura girou em torno do conceito de escravidão natural, com base nas premissas aristotélicas sobre o tema.

Num momento em que um movimento doutrinário pretende a substituição da democracia representativa pela democracia comunitária, invocar as teses esposadas por Las Casas, à época Bispo de Chiapas (antigo México e hoje um estado do mesmo, com uma comunidade socialista), em seu debate inflamado com Sepúlveda, não é só prudente, como pode servir de base doutrinária para a instituição de um regime político que possa ser efetivamente exercido por todos, em contraposição ao regime político hoje vigente, através da democracia participativa, que não tem cumprido satisfatoriamente com sua missão de colocar o povo nas decisões políticas.

O debate frenético entre os teólogos citados, merece ser transparecido e seu conteúdo doutrinário relido, com olhar crítico na contextualização geopolítica do século XXI, ou seja, cinco séculos após a ocorrência da discussão enveredada por Las Casas e Sepúlveda.

2. O contexto histórico

Com a procura por nova rota para as Índias fornecimento de especiarias, e num momento histórico, (também embrionário das grandes cadeias produtivas), Portugal e Espanha invadiram o continente americano (cujo fato, para a maioria dos historiadores é tratado como descobrimento das Américas), no final do século XV e início do século XVI.

Uma das mais cruéis consequências da invasão do Novo Mundo foi a escravização dos índios americanos, com fulcro na evangelização. Promoveu-se um verdadeiro massacre aos povos originários, muitas das vezes, com a dizimação de grupos inteiros, com total extermínio.

Quando não cruelmente assassinados, os povos originários eram submetidos ao sistema de encomiendas (obrigatoriedade do recolhimento de tributos). Vale dizer que o colonizador (invasor) engendrou todos os esforços no sentido de fazer dos povos originários verdadeiros servos a serviço do capitalismo mercantil, que abriu as brechas para a ascensão da classe de mercadores e talhou profundas feridas na história da humanidade.

Numa época em que não se falava em direitos humanos[1], posto que a Europa vivia sob o manto do sistema de servidão, onde seres humanos viviam sob os auspícios de seus senhores como servos ou escravos, o massacre indígena inicialmente foi tomado como natural, até que Las Casas, com respaldo no discurso do frade dominicano Antônio de Montesinos, um ferrenho indigenista que não concordando com as atrocidades cometidas, postou-se em desacordo com as ordenações escolásticas da época. Para ilustrar, vale colacionar o sermão proferido por Montesinos direcionado à comunidade local (em São Domingo, República Dominicana):

Todos vós estais em pecado mortal. Nele viveis e nele morrereis, devido à crueldade e tiranias que usais com estas gentes inocentes. Dizei-me, com que direito e baseados em que justiça, mantendes em tão cruel e horrível servidão os índios? Com que autoridade fizestes estas detestáveis guerras a estes povos que estavam em suas terras mansas e pacíficas e tão numerosas e os consumistes com mortes e destruições inauditas? Como os tendes tão oprimidos e fatigados, sem dar-lhes de comer e curá-los em suas enfermidades? Os excessivos trabalhos que lhes impondes, os faz morrer, ou melhor dizendo, vós os matais para poder arrancar e adquirir ouro cada dia... Não são eles acaso homens? Não têm almas racionais? Vós não sois obrigados a amá-los como a vós mesmos? Será que não entendeis isso? Não o podeis sentir? Tende como certo que, no estado em que vos encontrais, não tendes mais chance de vos salvardes de que os muçulmanos e turcos, que não têm fé em Jesus Cristo[2].

Apesar de ser encomendeiro, Las Casas laborou em favor dos direitos dos índios, se posicionando firmemente contrário aos argumentos que tentaram justificar a guerra contra os índios. O confronto ideário inserto no debate foi invocado por Jorge Abelardo Ramos, que denominava o sistema de produção instaurado nas Índias Americanas de capitalismo colonial. Ramos que intitulou o debate como A lenda negra (Las Casas contra o sistema espanhol) e a lenda rosa (Sepúlveda favorável), não mensurou esforços para explicar como Aristóteles quedou responsável por auxiliar os encomendeiros:

A acusação de Las Casas colocaria em questão, na metrópole, a natureza e os fins da conquista. Essa tormenta doutrinária divide os melhores espíritos espanhóis e esconde, na realidade, o mesmo antagonismo que confrontará, historicamente, as duas Espanhas.

[...] O próprio clero se divide com relação ao problema. Juan Ginés de Sepúlveda, teórico dos encomendeiros, vai de encontro à denúncia de Las Casas. Sepúlveda eleva às alturas do pensamento aristotélico o dilema sobre se os espanhóis na América deveriam ou não considerar os índios como seres humanos. Com sua reta mão colocada sobre os textos do estagirita, reformula a teoria aristotélica da escravidão natural.

[...] Apesar de ser quase uma heresia, Las Casas atreveu-se a questionar a imaculada autoridade de Aristóteles, que não era senão um pagão que estava assando no inferno[3].

Com efeito, Las Casas ousou atuar contra o sistema então vigente, posicionando-se não apenas contra as investidas de Sepúlveda, mas contra toda uma Espanha intolerante em matéria religiosa e que à época era uma das principais expoentes do período negro da Igreja Católica: a Inquisição, responsável por uma variedade de atrocidades ao desencadear perseguição contra todos que julgasse hereges.

O tema objeto do debate aqui referenciado, esteve centrado no tema da escravidão natural, o qual se acolhido, como pretendeu Sepúlveda e foi impugnado por Las Casas, justificaria a guerra contra os índios e o maior genocídio da história da humanidade. Dado que no momento histórico de sua ocorrência não existiam leis na Espanha que regulamentassem a guerra e subsequente massacre dos índios americanos, nem tampouco ferramentas jurídicas que disciplinassem qualquer direito dos povos originários, o debate teve a nítida função de doutrinar o tema. Tanto é que o rei Carlos V convocou Las Casas e Sepúlveda para debaterem seus pontos de vista em público, onde na oportunidade poderiam defender suas teses antagônicas. O local escolhido foi o Consejo Real de Índias, na cidade de Valladolid e na presença de uma comissão ad hoc de teólogos e juristas.

Não conhecemos o resultado do debate. Contudo, pelo andar da história, somos cônscios de que o objetivo almejado por Las Casas não foi posto em prática. E dois séculos depois, debates parecidos vieram permear a inferioridade dos povos latino-americanos, não mais acirrados por teólogos, mas por cientistas amparados nas ciências naturais.

Em seu livro Manual de Historia del Derecho, o Professor Doutor Ricardo Rabinovich-Berkman, primeiramente, ao se reportar sobre o direito indígena, traz a questão que envolve aliança entre Europa e China para acabar com o islamismo e assim colocar o império do cristianismo[4].

Em suas ponderações, Rabinovich traz à colação a Recopilacion de Indias (Pragmática de Promulgación) discorrendo acerca da tarefa de Solórzano de compilar as leis indianas do período, cuja compilação se dera no reinado de Carlos II (1680).

Para invocar o debate entre Las Casas e Sepúlveda, Rabinovich traça uma questão: veamos ahora si esa actitud que observamos en la ley recopilada anterior contaba com sustento doctrinario. A lei que se refere é a adotada por Carlos V, onde sinteticamente, diz respeitar as leis e costumes indígenas, desde que estes sejam cristãos. Ou seja, sem a rendição ao cristianismo, os aborígenes americanos eram tidos como bárbaros, como verdadeiras bestas humanas. O imperador espanhol tinha então a missão de promover a civilização através do cristianismo.

Para Rabinovich, a discussão al parecer, no fue uma discusión real, sino que se leyeron o presentaron separadamente ambos argumentos. Los textos, redactados em latin, recién fueron objeto de ediciones completas em la segunda mitad del siglo XX (aunque la controvérsia em sí, y las ideas esgrimidas en ella, eran bastante conocidas desde mucho antes). De resultas de la polémica, además, y probablemente por directa acción de Las Casas, los escritos respectivos de Sepúlveda fueron condenados.

Ao final do texto sobre o diálogo, Rabinovich infere a seguinte questão: encontrar-se-iam elementos jusnaturalistas no texto?

Contudo, como veremos a seguir, a discussão é aceita como real (ponto de discordância) e reveste-se de fortes elementos jusnaturalistas (o que me parece ser ponto de convergência).

Em artigo publicado na Revista da Universidade de São Paulo e intitulado: A controvérsia de Valladolid (1550): Aristóteles, os índios e a guerra justa, publicado nos anais da Revista da Universidade de São Paulo, o Professor Jorge Luis Gutiérrez, catedrático da Universidade Mackenzie e da Faculdade de Filosofia São Bento, afirma que o debate entre Las Casas e Sepúlveda existiu realmente, e teve como ponto fulcral a legitimação da escravidão natural, tema coletado do livro I, da Política, de Aristóteles e que serviria para justificar a guerra contra os índios e sua escravidão. O catedrático da Universidade Mackenzie e da Faculdade de Filosofia São Bento, assim argumenta:

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Entre os anos 1544 e 1545, Juan Ginés de Sepúlveda escreveu Democrates Alter Sive De Justis Belli Causis Apud Indios, mais conhecido como Democrates Alter. Nele utilizou, principalmente, a filosofia de Aristóteles Política, livro I para justificar a guerra contra os índios e a sua escravidão. Essa obra encontrou forte oposição no frade Bartolomé de Las Casas. Eles mantiveram uma disputa intelectual por vários anos, que teve seu ponto mais alto em Valladolid, onde, em 1550, Carlos V convocou os dois para discutir, em controvérsia pública, ante um júri composto por alguns dos melhores intelectuais da época. Ambos eram bons conhecedores das obras do filósofo grego e tentaram encontrar nele material para reforçar seus argumentos[5].

Com fundamento em suas premissas, temos que para Gutiérrez, a trama central do debate foi a perspectiva da aceitação ou não da guerra contra os índios latino-americanos e envolveu o questionamento se seriam os índios um povo livre (e por isso não poderiam ser escravizados) ou seriam escravos naturais, bárbaros por natureza e assim inferiores ao colonizador, que legitimamente poderia se valer de sua superioridade para escraviza-los e caso se rebelassem, usar da força (tortura) ou em último caso até mesmo ceifar suas vidas.

Em seu artigo, Gutiérrez retrata que Sepúlveda foi o primeiro a expor seus argumentos no famoso debate, e por três horas defendeu seu ponto de vista, com base na teoria da escravidão natural de Aristóteles e apontou quatro razões para provar que a guerra contra os índios era justa:

1) pela gravidade dos delitos cometidos pelos índios, principalmente a idolatria e outros pecados contra natura, como, por exemplo, roubos e adultério; 2) pela rudeza de seus engenhos, que os fazia bárbaros e naturalmente escravos4 , e por isso obrigados a servir aos de maior engenho e mais elegantes; 3) para facilitar a expansão da fé, pois, uma vez dominados, era mais cômoda e expedita a persuasão e pregação; 4) para impedir as injúrias que os índios faziam com outros, como, por exemplo, matá-los em sacrifícios ou para comê-los[6].

Ainda segundo Gutiérrez, após o discurso de Sepúlveda, Las Casas leu um longo texto por cinco dias, explicando que a palavra bárbaro não podia ser generalizada nem usada indistintamente, pois havia pelo menos três classes de bárbaros, nos seguintes termos:

Em seus escritos e controvérsias, Las Casas foi enfático ao afirmar que ninguém deve interpretar a doutrina de Aristóteles de que os sábios podem caçar os bárbaros como se fossem animais como uma autorização para matá-los e submetê-los a trabalhos iníquos, duros, cruéis e rígidos. Muito menos essa doutrina permite aos mais sábios procurá-los e capturá-los com essa finalidade. Las Casas afastou-se da doutrina sobre a escravidão da Política e não deixou de ressaltar que Aristóteles era um desconhecedor da verdade e caridade cristã[7].

Las Casas então obrou enfaticamente em negar a teoria da escravidão natural do filósofo estagirita, que seria contrário à teologia cristã, invocando para fundamentar sua tese, o mandamento cristão de que Amarás a teu próximo como a ti mesmo (São Mateus, 22); e A caridade não procura o que é seu, porém o que é de Jesus Cristo (Epístola aos Coríntios, 13).

Em conclusão, Gutiérrez afirma que a controvérsia de Valladolid é importante porque colocou uma agenda de discussões ainda válida para nossos dias: evangelização, invasão, povos submetidos, raças superiores, guerras religiosas e guerras santas. Todos esses são temas que podem ser encontrados em qualquer jornal de hoje.

3. Retrato geopolítico da época

No debate, de um lado Sepúlveda tentando legitimar as conquistas do Novo Mundo, as atrocidades cometidas contra seus povos originários e de outro Las Casas em defesa dos mesmos, ocorreu numa época em que a Igreja Católica sentia os reflexos da Reforma Protestante e buscava a evangelização como arcabouço para aumentar o número de fiéis e via de consequência, a manutenção do seu império escolástico (numa época em que a igreja era a maior detentora de riquezas).

Contudo, a reforma luterana ao buscar rechaçar o poderio da igreja católica, acentuou (ao contrário do que possa parecer), os privilégios das classes dominantes, fazendo crescer os movimentos nacionalistas e acentuação da xenofobia. Os ideiais da Reforma Protestante, podem ser assim sintetizados, com base em Leo Huberman[8], que citando J. S. Shapiro[9], assim vaticinou:

Enquanto os camponeses revoltados de 1525 gritavam: Cristo fez livres todos os homens, Lutero estimulava os nobres a aniquilá-los, com estas palavras: Aquele que mata um rebelde... faz o que é certo... Portanto, todos os que puderem devem punir, estrangular ou apunhalar, secreta ou publicamente... Os que perecerem nessa luta devem realmente ser considerados felizes, pois nenhuma morte mais nobre poderia ocorrer a ninguém.

Com esse sentimento xenofóbico, tentou-se justificar o sentimento do espanhol em relação aos povos originários. E os índios americanos não conheciam a língua do invasor, não compreendiam seus mandamentos. Os requerimentos eram lidos mas não compreendidos. E como não havia compreensão por parte dos ameríndios, estes eram simplesmente obrigados a servir o homem branco, sob pena de serem varridos de seus domínios pela morte. O desiderato xenofóbico dos conquistadores buscava mesmo a completa perda de identidade dos aborígenes americanos.

Não se pode olvidar que no momento da ocorrência do debate, o feudalismo encontra-se em arrefecimento de decadência, com a propulsão da mercancia. Com o capitalismo mercantil, a classe burguesa em plena ascensão, encontrava-se voraz por explorar nossos terrenos férteis em matérias primas, notadamente os da recém descoberta América, ricos em ouro e prata. E para exploração maciça dos minérios, era necessário mão-de-obra escravizada. Por força disso, nossos índios serviram como instrumento para exploração das minas e jazidas, fator preponderante para sua domesticação, através da evangelização.

Dois fatores assim contribuíram exponencialmente para a hecatombe dos povos indígenas: a necessidade da igreja em firmar seu poderio através do aumento do número de fiéis, ou seja no caso, a conversão para o catolicismo e a modificação das estruturas econômicas, com o nascedouro do capitalismo mercantilista.

Outra questão que merece ser mencionada é o reflexo dos ideais iluministas da época, que se pautavam pelo humanismo renascentista, em contraposição à arraigada cultura canônica. A filosofia humanista de Las Casas foi destacada convincentemente pelo professor gaúcho Antônio Carlos Wolkmer:

É nessa direção humanista, que não deixa de ser ardorosa e incisiva, que se apresenta Bartolomé de Las Casas, contrário não só ao processo da conquista, mas, principalmente, oponente a toda política de colonização espanhola no Novo Mundo. Reconhecido como incansável protetor e defensor dos direitos dos índios, Las Casas, crítico contumaz do Requerimento, adversário do sistema da encomienda e denunciante das práticas de genocídio com as populações ameríndias, não só influenciou a formação de uma legislação humana e protetora (particularmente as Leis Novas), como lutou pela garantia dos direitos dos índios, amenizando seu sofrimento e libertando-os das injustiças e até da escravidão[10].

4. A questão oblíqua da dominação pelo medo

No meu entender, outra questão que deve ser invocada e que transversalmente parece restar obliqua no desenrolar do famoso diálogo entre Las Casas e Sepúlveda, reside na dominação através da religião a serviço da exploração do homem pelo homem. Desde tempos imemoriais a religião tem sido usada neste sentido, ou seja, como fator de dominação.

Na Roma e Grécia antigas, a doutrinação pela religião se fazia tão presente que nenhuma ação era engendrada sem a permissão dos deuses e dos mortos. Neste contexto e para ilustrar vale trazer à colação um pouco das ideias de Fustel de Coulanges:

A religião era como um vínculo material, cadeia que mantinha o homem na escravidão. O homem tinha-a inventado e era governado por ela. Ele a temia, não ousando raciocinar, discutir, nem sequer olhá-la de frente. Deuses, heróis e ancestrais reclamavam do homem este culto material, e este o cumpria para os tornar mais amigos e ainda mais para não os ter como inimigos[11].

Na época da colonização espanhola a religião era monoteísta, em contraposição ao politeísmo dos povos indígenas. Este desiderato foi decisivo para que não houvesse espaço para aceitação de outros deuses. A implementação da hegemonia religiosa era uma vertente, notadamente como será retratado adiante, pela necessidade da Igreja Católica resguardar seu poderio econômico, ameaçado pela Reforma Protestante, que trouxe a filosofia tomista, que teve o condão de buscar harmonia entre o racionalismo aristotélico (Sepúlveda) e a tradição cristã (criticada por Las Casas).

5.A importância do tema na atualidade

A guerra ideológica encadeada por Las Casas e Sepúlveda acabou sendo retratada no mundo artístico, sob o título La Controverse de Valladolid, obra teatral do dramaturgo e roteirista francês Jean-Claude Carriére. Vale registrar que a peça foi originada do livro homônimo do mesmo autor. Registre-se que também foi transformada em filme. Uma película sensível, de linda fotografia e enredo envolvente[12].

A América Latina tem cerca de 45 milhões de indígenas em 826 comunidades que representam 8,3% da população, revela o relatório Povos Indígenas na América Latina: Progressos da Última Década e Desafios para Garantir seus Direitos[13].

Em estudo realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), através do censo realizado em 2010 e divulgado em abril/2018, aponta que no Brasil hoje existem cerca de 900 (novecentos) mil índios, divididos entre 305 etnias e que falam ao menos 274 línguas e que 57,7% vivem em terras demarcadas (exclusivamente indígenas). Estes dados fazem do Brasil um dos países com maior diversidade sociocultural do planeta[14].

Apesar do número significativo, é uma população que segue sendo afastada dos pilares da Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) instituída pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 1948 e que expressamente assevera no item 1 do seu artigo 2 que: Todo ser humano tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades estabelecidos nesta Declaração, sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição.

Apesar da previsão com força normativa para os países signatários[15], notadamente o Brasil segue com política discriminatória em relação aos povos originários. Com o avanço do capitalismo financeiro/rentista, retomado com envergadura pelo governo de Michel Temer, as populações indígenas seguem incomensuráveis riscos de aniquilação.

Hoje há receios (reais) de que o Brasil venha a sofrer nova ditadura. Neste sentido, vale dizer que a ditadura militar (1964-1985) foi responsável, de forma crudelíssima, por assassinatos de líderes indigenistas e extermínio em massa de índios. O chamado Relatório Figueiredo[16], traz detalhes sobre a perseguição indiscriminada aos índios brasileiros, sob a justificativa de expansão desenvolvimentista.

A título de ilustração, temos que frequentemente nos deparamos nos noticiários com reportagens sobre assassinatos de índios e indigenistas no Brasil[17]. Um dos casos mais cruéis, o do índio Galdino Jesus dos Santos, queimado vivo, segue sem solução e os assassinos impunes.

No Brasil, a bancada evangélica (de ideologia anglicana, baseada nos ideais da Reforma Protestante) cresce no Congresso Nacional. Senadores e deputados para defender o agronegócio, não se intimidam em aprovar leis em detrimento dos povos originários.

Destarte, os povos originários brasileiros têm aguardado com ansiedade o desfecho do julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF) acerca da constitucionalidade da demarcação de terras indígenas e quilombolas, e que versa sobre a imposição ou não do marco temporal levando em consideração a data da publicação da promulgação da Constituição Federal de 1988, ou seja, 5 de outubro de 1988.

Não se pode olvidar, omitir, ou ignorar que em terras indígenas brasileiras se encontram minerais valiosos como o nióbio, um metal raro que serve às indústrias da alta tecnologia, sendo que o Brasil detém 98% das reservas.

As políticas de proteção aos povos indígenas vêm sendo mitigadas principalmente, pelo avanço galopante do agronegócio, sendo que um de seus tentáculos, é justamente a retomada de terras produtivas, para produção em escala e atendimento das ações desenvolvidas pelas cadeias produtivas, as chamadas cadeias mundiais de suprimentos.

Ou seja, os índios brasileiros remanescentes encontram-se em virtual perigo de completa extinção. Neste contexto, surge como de extrema necessidade o resgate do debate travado entre Las Casas e Sepúlveda, vez que a questão dos direitos dos índios ainda se faz presente e tem dados passos vagarosos.

Necessário assim que se promova o estudo vagaroso das ponderações de Las Casas, com verificação da veracidade dos documentos de forma empírica. O resgate de tão importante debate, contextualizado com a realidade atual da América Latina e Caribenha, servirá não apenas como fonte histórica, mas como fornecedora de elementos que possam permitir a reparação histórica do holocausto vivenciado no século XVI e que segue com suas raízes em pleno século XXI.

6. Conclusão

O resgate do debate traçado entre Las Casas e Sepúlveda mostra-se de suma importância no contexto hodierno mundial, onde o mercado financeiro/rentista, que acentua as regras das desigualdades sociais, tem patrocinado o enxugamento de direitos. Nesta linha exegética, além dos exemplos já delineados do Brasil, lembro da escravização, de inclusive crianças, na extração do coltan - columbita-tantalita (República do Congo), da promoção de guerras para exploração de petróleo (Síria), ou ainda perseguição de políticos progressistas (Brasil e Equador, apenas para citar).

A maior hecatombe humana promovida pela colonização, com apoio da evangelização intolerante, segue com suas raízes. A evangelização que emprega técnicas escusáveis, de dominação pelo medo, segue avançando, ao contrário da evangelização mais humana, como a pregada pela Teologia da Libertação (cujos expoentes têm sido perseguidos e desrespeitados).

A ideia da inferioridade humana é uma vertente nos dias atuais, nitidamente com o avanço das ideias fascistas em países latino-americanos. E a tese da escravidão natural é justamente usada para dar fundamento a essa ideia e legitimar golpes de estado, mitigação de direitos trabalhistas, aumento das desigualdades sociais e refreamento da inclusão social, dentre outros.

Hodiernamente é nítido a invocação da religião a serviço do capitalismo financeiro e rentista. A ideia da escravidão natural é uma vertente em pleno século XXI. A ideia da inferioridade moral, social e antropológica reside entre nós, sendo a maior responsável pela escravidão humana moderna.

A hegemonia religiosa, não deixou de ser querida, tem apenas feições diferenciadas. E esta hegemonia hoje com uma aliada: a hegemonia do sistema capitalista/rentista. A servidão moderna segue deitando suas raízes no mundo globalizado, com a classe trabalhadora seguindo sendo massacrada de forma legitima. Os povos originários seguem sendo silenciosamente exterminados em plena luz do dia.

Premente se faz resgatar toda a doutrina patrocinada por Las Casas. A história não pode seguir ignorando o desfecho do debate. É necessário a verificação de veracidade de todos os termos do mesmo, seu conteúdo histórico é valoroso e pode seguir de parâmetro para invocação de leis de reparação em favor dos povos originários.

Num momento em que o mundo inteiro está sentindo os avanços do capitalismo financeiro/rentista, é inevitável o reforço doutrinário para os direitos humanos. A questão de ser o índio um ser humano, portanto resguardado de todas as forças de exploração, permanece não finalizada. O índio e o quilombola permanecem no seio da sociedade (visivelmente no Brasil), como seres inferiores e portanto, não passiveis de proteção legal integral.

Reconhecidamente esforços legislativos, mesmo que timidamente, têm sido engendrados com o fito de abarcar direitos dos povos originários, como ocorreu na Colômbia, que ao editar sua Constitución Política em 1991, inovou substancialmente ao programar o respeito pela diversidade linguística em seu artigo 10: El castellano es el idioma oficial de Colombia. Las lenguas y dialectos de los grupos étnicos son también oficiales en sus territorios. La enseñanza que se imparta en las comunidades con tradiciones lingüísticas propias será bilingüe.

Todavia, a sonhada democracia comunitária, não conseguiu alavancar, mas surge como esperança e que é embasada no bem viver de toda a comunidade e que já foi inserida nas Magnas Cartas da Bolívia e do Equador. Vale destacar que busca resgatar a Abya Yala (nome indígena que designa todo o continente sul-americano, de norte a sul), em sua forma original social, que suprimida pela colonização luso-espanhola iniciada no começo do século XVI.

As ideias da implantação da democracia comunitária, no Brasil, têm sido desenvolvidas por teólogos remanescentes da Teologia da Libertação, cujo maior expoente hoje vivo e ainda ativista é Leonardo Boff, que assim delimita a ideologia da democracia comunitária, da geosocidade:

A democracia será então sócio-terrenal-planetária, a democracia da Terra. Há os que dizem: tudo isso é utopia. E de fato é. Mas uma utopia necessária. Quando tivermos superado a crise da Terra (se a superarmos) o caminho da Humanidade seria este: globalmente nos organizarmos ao redor do Bem Viver e de umaDemocracia da Terra, da Biocivilização(Sachs). Já existem sinais antecipadores deste futuro[18].

E como se trata de resgatar toda uma cultura e forma de viver que foi duramente reprimida, é salutar invocar Las Casas, com seus ideais humanitários em prol dos índios. A leitura acurada dos argumentos de Las Casas e caso sejam efetivamente comprovados, poderão fornecer elementos interessantes para a construção e do ideário da democracia comunitária e sua efetiva implementação.

BIBLIOGRAFIA

BOFF, Leonardo. Contribuição latinoamericana para uma geosociedade. Disponível em https://leonardoboff.wordpress.com/2011/08/04/contribuicao-latinoamericana-para-uma-geosociedade/. Acesso em 22/04/2018.

CAMPOS, Ana Cristina. Agência Brasil. Relatório da ONU aponta aumento do número de indígenas na América Latina: Na região, há cerca de 45 milhões de indígenas, o equivalente a 8,3%. Publicado em 22/09/2014. Disponível em http://agenciabrasil.ebc.com.br/internacional/noticia/2014-09/relatorio-da-onu-aponta-aumenta-do-numero-de-indigenas-na-america. Acesso em 22/04/2018.

COULANGES, Fustel de. A Cidade Antiga. São Paulo: Editora Martin Claret, 2002.

HUBERMAN, Leo. História da Riqueza do Homem. Rio de Janeiro: Ed. Zahar, 1985.

SHAPIRO, J. S. Social reform and the Reformation. Columbia University Press, 190.

WOLKMER, Antônio Carlos. Síntese de uma história das ideias jurídicas: da antiguidade clássica à modernidade. Florianópolis: Ed. Fundação Boiteux, 2006.

­__________ ­­­Dia do Índio': estudo revela 305 etnias e 274 línguas entre povos indígenas do Brasil. Revista eletrônica Acervo do Conhecimento Histórico. Disponível em https://achistorico.blogspot.com/2018/04/dia-do-indio-estudo-revela-305-etnias-e.html. Acesso em 21/04/2018.

_______­­___ Relatório Figueiredo. Disponível no site https://www.documentosrevelados.com.br/geral/relatorio-figueiredo-na-integra/. Acesso em 22/04/2018.

NOTAS DE RODAPÉ.

  1. Hoje conhecemos (descoberta em 1879) como primeira declaração dos direitos humanos a famosa peça de argila com os princípios de Cilindro de Ciro Ciro II, o Grande, rei persa (antigo Irã, 539 a.C.) e que, ao conquistar a Babilônia, libertou todos os escravos, permitindo que os mesmos retornassem às suas terras de origem. Cuida-se portanto, de importante documento histórico em defesa dos Direitos Humanos.

  2. Texto disponível em http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/Documentos-anteriores-%C3%A0-cria%C3%A7%C3%A3o-da-Sociedade-das-Na%C3%A7%C3%B5es-at%C3%A9-1919/frei-antonio-de-montesinos-sermao-do-4o-domingo-do-advento-de-1511.html. Acesso em 21/04/2018.

  3. RAMOS, Jorge Abelardo. História da Nação Latino-americana. 3ª ed. Florianópolis: Insular, 2014, p. 112/113.

  4. Outra questão de suma importância para ser levantada no atual cenário geopolítico mundial: a supremacia pleiteada por grupos religiosos.

  5. GUTIÉRREZ, Jorge Luis. A controvérsia de Valladolid (1550): Aristóteles, os índios e a guerra justa. REVISTA USP. São Paulo: Revista USP, março/abril/maio 2014, n. 101, p. 223-235. Disponível no link https://www.revistas.usp.br/revusp/article/download/87829/90750. Acesso em 15.jan.2022.

  6. Idem.

  7. Idem.

  8. HUBERMAN, Leo. História da Riqueza do Homem. Rio de Janeiro, Zahar Editores S.A., 1985, p. 90-91.

  9. SHAPIRO, J. S. Social reform and the Reformation. Columbia University Press, 190, p. 78.

  10. WOLKMER, Antônio Carlos. Síntese de uma história das ideias jurídicas: da antiguidade clássica à modernidade. Florianópolis: Ed. Fundação Boiteux, 2006, p. 86.

  11. COULANGES, Fustel de. A Cidade Antiga. São Paulo: Editora Martin Claret, 2002, p. 185.

  12. O filme pode ser assistido através do Canal Youtube, que pode ser acessado através do link que pode ser assistido através do canal Youtube, através do link https://www.youtube.com/watch?v=1SukXDBBx8A.

  13. CAMPOS, Ana Cristina. Agência Brasil. Relatório da ONU aponta aumento do número de indígenas na América Latina: Na região, há cerca de 45 milhões de indígenas, o equivalente a 8,3%. Publicado em 22/09/2014. Disponível em http://agenciabrasil.ebc.com.br/internacional/noticia/2014-09/relatorio-da-onu-aponta-aumenta-do-numero-de-indigenas-na-america. Acesso em 22/04/2018.

  14. 'Dia do Índio': estudo revela 305 etnias e 274 línguas entre povos indígenas do Brasil. Revista eletrônica Acervo do Conhecimento Histórico. Disponível em https://achistorico.blogspot.com/2018/04/dia-do-indio-estudo-revela-305-etnias-e.html. Acesso em 21/04/2018.

  15. Nota: no Brasil os tratados e convenções que versam sobre direitos humanos têm força de norma com status constitucional.

  16. Texto integral disponível no site https://www.documentosrevelados.com.br/geral/relatorio-figueiredo-na-integra/. Acesso em 22/04/2018.

  17. Um exemplo pode ser conferido através do link https://www.socioambiental.org/pt-br/noticias-socioambientais/assassinato-de-lideranca-indigena-marcondes-nambla-e-tragico-inicio-para-2018.

  18. BOFF, Leonardo. Contribuição latinoamericana para uma geosociedade. Artigo publicado em 04. Ago.2011, no portal que recolhe artigos e a obra do teólogo, filósofo, escritor e professor Leonardo Boff. Disponível em

    https://leonardoboff.wordpress.com/2011/08/04/contribuicao-latinoamericana-para-uma-geosociedade/. Acesso em 15.jan.2022.

Sobre a autora
Rosana Colen Moreno

Rosana Cólen Moreno. Procuradora do Estado de Alagoas. Membro da Confederação Latino-americana de trabalhadores estatais (CLATE). Especialista em previdência pública pela Damásio Educacional e em direitos humanos pela PUC/RS (em finalização). Autora do livro Manual de Gestão dos Regimes Próprios de Previdência Social: foco na prevenção e combate à corrupção, publicado pela LTr. Coordenadora da Comissão Internacional Avaliadora instituída pelo Conselho Latino-americano de Ciências Sociais (CLACSO-UNESCO) e denominada “Desigualdades, Exclusão e Crises de Sustentabilidade dos Sistemas Previdenciários da América Latina e Caribe. Educadora, Professora, Instrutora, Palestrante, Consultora. Participante do programa de doutorado em Direito Constitucional pela Universidad de Buenos Aires – UBA. Especialista em Regimes Próprios de Previdência (Damásio Educacional). Autora do livro: Manual de Gestão dos Regimes Próprios de Previdência Social: foco na prevenção e combate à corrupção.

Informações sobre o texto

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