A atuação do Estado em situações de calamidade pública

24/01/2022 às 11:55

Resumo:


  • O ensaio aborda a atuação do Estado diante de desastres naturais ou humanos que causam prejuízos à sociedade.

  • Destaca a importância da repartição de competências na federação brasileira para uma atuação harmoniosa dos entes políticos.

  • Aponta a necessidade de uma atuação eficaz e colaborativa das autoridades para prevenir e responder adequadamente a situações de desastre, evitando omissões e garantindo a normalidade.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

O desastre é todo evento natural ou humano que provoca danos consideráveis aos diretamente atingidos e indiretamente à toda sociedade, restando saber quanto à eficiência da atuação estatal esperada nesses casos de rompimento da normalidade.

I - INTRODUÇÃO

Com bastante frequência somos surpreendidos com notícias de tragédias, a exemplo, do massacre do Carandiru ocorrida em 1992 na Casa de Detenção de São Paulo, da tragédia ocorrida na boate Kiss em 2013, localizada na cidade de Santa Maria, no Estado do Rio Grande do Sul, do rompimento das barragens em 2015, na cidade de Mariana, e da Mina do Córrego do Feijão, na cidade de Brumadinho em 2019, localizadas no Estado de Minas Gerais ou da pandemia Covid de 2019, eventos nos quais ocorreram um número considerável de mortes.

A questão proposta nesse ensaio é saber qual a atuação esperada do Estado nessas situações excepcionais?

Para buscar uma resposta, importa primeiramente referenciar a forma de estado federativa adotada em nosso ordenamento jurídico e sua principal característica que é a repartição de competências para, em sequência, identificar o ente político responsável pela adoção de medidas preventivas e de restabelecimento.

Em continuidade importa delimitar as expressões usualmente utilizadas em nosso ordenamento jurídico para catástrofe, tais como desastre, situação de emergência e estado de calamidade pública, estabelecendo a partir daí, a atuação estatal esperada para prevenir e restabelecer a normalidade quando da ocorrência desses eventos.

A metodologia adotada é bibliográfica realizada a partir de artigos jurídicos e doutrina, além da análise pontual da legislação e da jurisprudência nacional relacionada à temática, buscando oferecer argumentos úteis para uma melhor reflexão sobre pontos de falha em nossa engenharia constitucional para lidar com situações de rompimento da normalidade.

II FORMA DE ESTADO: FEDERAÇÃO

A forma de estado federativa foi consolidada em nosso ordenamento jurídico a partir da nossa segunda Constituição de 1891, espelhada na federação norte-americana instituída na Constituição dos EUA de 1787 ainda vigente, observando o diferencial na construção desse modelo, visto que nos EUA ocorreu a reunião de Estados independentes em uma Federação, portanto, um movimento de agregação, enquanto que no Brasil, o Estado até então unitário, com uma estrutura centralizada na União, foi desmembrado para dar origem aos Estados-membros em um movimento, denominado pela doutrina, de desagregação.

A forma foi mantida nas demais Constituições Brasileiras de 1934, 1937, 1946, 1967 e respectiva Emenda de nº 01/69, com alterações pontuais, por exemplo, na repartição de competência, no entanto, foi a nossa Constituição de 1988 que distanciou de outras federações, ao incluir expressamente o Município como integrante da federação, registrando que antes mesmo de 1988 já se reconheciam aos Municípios autonomia administrativa e financeira, mas não estava expressamente desenvolvido os pilares da autonomia política.

MOTTA (2019, p. 457) nos traz a seguinte concepção:

O Estado federado é aquele onde, no plano interno, se opta pela existência de uma ordem jurídica central e várias parciais, todas com algum grau de autonomia. Pratica-se a descentralização, não só administrativa, mas também política. Este sistema funciona como excelente forma de dosar o uso do poder, administrar diferenças regionais e forçar a composição democrática (numa espécie de sistema de freios e contrapesos, semelhante ao existente entre os poderes orgânicos, Executivo, Legislativo e Judiciário; aqui, o jogo de forças será entre a ordem central e as parciais, e destas entre si).

Em nosso atual ordenamento jurídico se reconhece três ordens jurídicas, a primeira de âmbito nacional, representada pela União, a segunda de âmbito regional, representada pelos Estados-membros e pelo Distrito Federal, e a terceira de âmbito local, representada pelos Municípios, assegurando-se a esses entes políticos a autonomia política, que lhes permite a existência de estrutura própria de governo e possibilidade de edição de normas jurídicas, a autonomia administrativa, viabilizando a organização dos serviços próprios, e a autonomia financeira que assegura a existência de recursos públicos.

Diante da complexidade da forma de estado federativa, a questão é saber como conciliar o interesse nacional com a multiplicidade de interesses regionais e locais, observando que atualmente o Brasil conta com 5.568 municípios e aí que entra um requisito essencial presente em todas as federações, qual seja, a repartição de competências que irá viabilizar a atuação harmônica dos entes políticos integrantes da federação, evitando, por exemplo, que o Estado-membro invada competências da União ou dos Municípios e vice-versa.

Há uma construção lógica na repartição de competências prevista na Constituição Federal de 1988, qual seja, a predominância de interesses, de forma que as matérias de relevância nacional ou com reflexos nas relações internacionais serão de competência da União, as matérias de relevância regional serão de competência dos Estados-membros e, por sua vez, as matérias de interesse local ficarão a cargo dos Municípios, observando que no Distrito Federal não cabe a sua divisão em Municípios e, dessa forma, esse ente federativo acumula as competências dos Estados-membros e dos Municípios.

Outro fator da repartição é o estabelecimento de competências enumeradas para a União e residuais para os Estados-membros, observando que na nossa engenharia constitucional de federação de segundo grau, aos Municípios foram conferidas competências enumeradas e, para entender, o serviço público de transporte coletivo é um ótimo exemplo, considerando que compete à União, nos termos do art. 21, XII, e, da CF, o transporte interestadual e internacional de passageiros e, lado outro, compete aos Municípios, nos termos do art. 30, V, da CF, o transporte urbano de passageiros. Não há referência ao transporte intermunicipal, de forma que a regulamentação e execução desse serviço caberá aos Estados-membros.

Ao lado de competências privativas, estabelecidas para um ente político determinado, há competências comuns, direcionadas a todos os entes políticos, a exemplo, da educação e da saúde, observando que a Constituição Federal já define a atuação de cada um dos entes políticos no que se refere a educação, competindo aos Municípios, nos termos do art. 30, VI, o programa de educação infantil e o ensino fundamental, assumindo o Estado-membro a responsabilidade do prover o ensino médio. Diferente solução a Constituição Federal estabeleceu para a saúde visto que não define a atuação de cada um dos entes políticos, ficando a cargo da legislação infraconstitucional dividir as responsabilidades[1].

A engenharia estrutural de repartição de competências fica mais complexa considerando a ideologia estatal adotada de forma que no Estado Social, há assunção de diversas obrigações por parte do Estado, exigindo uma postura ativa na implementação de direitos sociais e coletivos, de forma que quanto maior for a enumeração de direitos sociais e coletivos, maiores incumbências e obrigações surgirão para os entes federativos.

E qual a relação entre repartição de competências constitucionais e o rompimento da normalidade tais como desastres, situações emergenciais e estado de calamidade pública?

Quando estamos diante de um Estado Unitário, como forma de estado, temos apenas uma ordem jurídica que é o governo central e ainda que seja concedida autonomia as províncias e cidades, a coordenação para a atuação em casos de desastres ficará a cargo do governo central com a delegação dos atos de execução para os demais órgãos públicos.

Diferente solução se dá na federação porque se reconhece autonomia política, administrativa e financeira aos entes integrantes da federação e, dessa forma, a repartição de competência é o ponto inicial para verificar qual ou quais dos entes políticos que deverão atuar nessas situações e, de igual forma, pontuar a responsabilidade civil em casos de omissão estatal, mas, para tanto, antes é preciso delimitar as expressões jurídicas usualmente utilizadas para caracterizar essas situações excepcionais.

III DESASTRE: DELIMITANDO CONCEITOS

O art. 5º, XI da CF estabelece que a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial.

O desastre é uma das exceções em que se permite a entrada de terceiros na propriedade do indivíduo, naturalmente, para prestar socorro independentemente de autorização judicial, podendo ser conceituado como um evento natural ou humano que provoca danos diretos consideráveis aos atingidos e danos indiretos à toda sociedade.

Não há outra referência a desastre no Texto Constitucional, no entanto, uma de suas consequências é justamente o reconhecimento da calamidade pública, a qual é retratada em diversas passagens da Constituição Federal, a começar pelo art. 21, XVIII, ao estabelecer a competência da União para planejar e promover a defesa permanente contra calamidades públicas, especialmente secas e inundações.

Ainda, a calamidade pública é um dos pressupostos para a decretação pelo Presidente da República do Estado de Defesa, vide:

Art. 136. O Presidente da República pode, ouvidos o Conselho da República e o Conselho de Defesa Nacional, decretar estado de defesa para preservar ou prontamente restabelecer, em locais restritos e determinados, a ordem pública ou a paz social ameaçadas por grave e iminente instabilidade institucional ou atingidas por calamidades de grandes proporções na natureza.

O Estado de Defesa, como instrumento do sistema constitucional de crises cuja utilização é excepcional, é ainda mais delimitado pela regra, acima transcrita, visto que somente calamidades de grandes proporções permitiria a sua decretação, tratando-se de conceito jurídico indeterminado, cabendo ao interprete a densificação para fins de utilização desse instrumento.

A calamidade pública é uma das hipóteses que permite a instituição de empréstimo compulsório pela União, nos termos do art. 148, I, CF, e uma das hipóteses em que se admite a abertura de crédito extraordinário, nos termos do art. 166, §3º, CF.

A pandemia covid 19 é um exemplo recente de calamidade pública, nacionalmente declarada através do Decreto Legislativo de nº 06, de 20/03/2020, nesse momento, para fins de flexibilização de regras fiscais, conforme o art. 65 da Lei nº 101/00 (Lei de Responsabilidade Fiscal).

Ainda, a pandemia ocasionou a edição de normas pontuais para o seu enfrentamento sobrevindo a Emenda Constitucional nº 106 de 07/05/2020 que estabeleceu regime extraordinário fiscal, financeiro e de contratações para enfrentamento de calamidade pública nacional decorrente de pandemia, complementada pela Emenda Constitucional de nº 109 de 15/03/21, que alterou e incluiu regras na Constituição Federal, complementando e regulamentando a decretação de calamidade pública de âmbito nacional, contendo, principalmente, regras fiscais e tributárias, além de normas infraconstitucionais tais como a Lei 13.979 de 06/02/2020, que dispõe sobre medidas de enfrentamento, a Lei 13.982 de 02/04/2020, que tratou do auxílio emergencial e a Lei 14.010 de 10/06/2020, que tratou do Regime Jurídico Emergencial e Transitório das relações jurídicas de direito privado.

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Para além da pandemia covid, no âmbito infraconstitucional iremos encontrar, entre outras normas, referência à calamidade pública na Lei Federal nº 8.745/93, estabelecendo regras para a contratação temporária de pessoal para atender situações de calamidade pública, na Lei Nacional nº 8.666/93 e 14.133/21, que tratam da licitação de dispensável para contratações públicas nos casos de situação emergencial ou de calamidade pública.

Em síntese, da declaração e reconhecimento da calamidade pública sobrevém as seguintes consequências:

A) a viabilidade de contratação temporária de pessoal;

B) a contratação direta de bens, obras e serviços através da licitação dispensável;

C) a flexibilização de regras fiscais e orçamentárias;

D) a viabilidade de requisição de bens e serviços e a desapropriação de bens;

E) o auxílio dos demais entes políticos, principalmente, com recursos financeiros;

Tanto a situação emergencial quanto a calamidade pública são situações anormais que atinge um grupo considerável de pessoas, no entanto, há diferença normativa nessas duas situações com base na intensidade ou gravidade visto que na situação emergencial, o ente político afetado teria comprometimento parcial para resposta, enquanto que na calamidade pública a capacidade de atuação e resposta do ente político afetado estaria substancialmente comprometida, dependendo, portanto, do auxílio dos demais entes integrantes da federação, notadamente, de recursos financeiros.

Essa lógica, quanto à calamidade pública, já era prevista no art. 5º da Constituição da República de 1891, ao estabelecer que a União prestará socorros ao Estado que, em caso de calamidade pública, os solicitar, atentando que, naquela época, os municípios não integravam a federação2 e observando que tal previsão esteve presente nas Constituições posteriores, com exceção da Constrituição de 1937.

A presença da hipótese de calamidade pública, portanto, não é nova em nosso ordenamento jurídico indicando outra referência legal contida no art. 5º, c, do Decreto-Lei 3.365/41, que prevê, como utilidade pública para fins de desapropriação, o socorro público em caso de calamidade.

A regulamentação da matéria, longe de ser deficiente encontra referência histórica na Constituição da República de 1891 que já previa a calamidade pública, podendo indicar atualmente a Lei nº 12.340/10, a qual regulamenta a transferências de recursos federais para ações de prevenção e resposta em casos de desastre, e Lei nº 12.608/12, que trata, entre outros temas, da Política Nacional de Proteção e Defesa Civil, as quais encontram-se regulamentadas pelo Decreto nº 10.593/20.

O Decreto Presidencial nº 7.257/2010, regulamentador da Lei nº 12.340/11 que prevê, entre outros, a transferências de recursos federais para ações de socorro trazia definições para desastre, situação de emergência e estado de calamidade pública, no entanto, referida norma, quanto a esse ponto, foi revogada pelo Decreto Presidencial nº 10.593/20, o qual traz os referidos conceitos nos seguintes incisos do art. 2º, vide:

VII - desastre - resultado de evento adverso decorrente de ação natural ou antrópica sobre cenário vulnerável que cause danos humanos, materiais ou ambientais e prejuízos econômicos e sociais;

VIII - estado de calamidade pública - situação anormal provocada por desastre que causa danos e prejuízos que impliquem o comprometimento substancial da capacidade de resposta do Poder Público do ente federativo atingido ou que demande a adoção de medidas administrativas excepcionais para resposta e recuperação;

...

XIV - situação de emergência - situação anormal provocada por desastre que causa danos e prejuízos que impliquem o comprometimento parcial da capacidade de resposta do Poder Público do ente federativo atingido ou que demande a adoção de medidas administrativas excepcionais para resposta e recuperação.

Oportuno dizer que outras normas fazem referência, notadamente, a calamidade pública, mas o histórico precedente nos permite entender que o desastre está presente tanto nos conceitos de situação emergencial quanto de calamidade pública, de forma que a diferença entre estes reside na intensidade ou gravidade do evento.

IV A ATUAÇÃO ESTATAL EM CASOS DE CALAMIDADE PÚBLICA

Apartado os conceitos, resta refletir sobre a atuação estatal perante o desastre, não somente em forma de ação, mas, também, quanto a omissão estatal incrementa ou é causa suficiente para a ocorrência do desastre, o qual, como dito, pode ter origem em evento natural ou humano.

Tanto na situação emergencial quanto na calamidade pública, estaremos diante de um desastre, no entanto, no presente artigo haverá referência ao estado de calamidade pública em função de exigir a atuação conjunta e colaborativa dos entes políticos na prevenção e nas medidas de resposta e de restabelecimento.

Evidente que há situações que podem ser evitadas ou minimizadas, a partir de ações de prevenção, outras tantas, não tem como ser prevenidas, mas irão exigir quando de sua ocorrência, pronta resposta para reduzir os impactos negativas gerados.

Por exemplo, a chuva é um evento da natureza que, na maioria das vezes, não traz qualquer repercussão jurídica, no entanto, quando o volume de águas das chuvas provoca enchentes e inundações, tal fato impacta no direito a exigir uma resposta rápida das autoridades que, para tanto, haverá de utilizar dos instrumentos jurídicos próprios previstos em nosso ordenamento, iniciando-se pela declaração de situação emergencial ou do estado de calamidade pública.

A questão para reflexão é se há meios disponíveis, adequados e acessíveis para evitar enchentes, utilizando-se como exemplo, o Município de São Paulo que há anos vem construindo piscinões em diversos locais para tentar conter os estragos decorrentes de enchentes e inundações provocadas pelas chuvas.

Já se percebe a complexidade do problema quando se trata de eventos da natureza considerando, até porque não há imprevisibilidade não de chover, mas há quanto ao volume de águas provenientes das chuvas, observando que o Brasil foi abençoado por não possuir ainda, eventos da natureza com risco substancial de desastre, tais como, tsunamis, vulcões, furacões e terremotos.

Deixemos de lado esses eventos e voltemos para as enchentes, as quais não podem ser evitadas, mas podem ter os estragos reduzidos por uma atuação preventiva dos entes políticos, citando a necessidade de os Municípios realizarem a limpeza periódica de bueiros, observando que a omissão, neste caso, poderá acarretar a responsabilidade civil pelos danos ocasionados, indicando para ilustração julgado do Tribunal de Justiça de Minas Gerais que entendeu pela responsabilidade civil do Município de Montes Claros2, condenando ao pagamento de danos materiais e morais em decorrência de inundação de residência, ao fundamento de que:

Muito embora as fortes chuvas, de fato, constituam evento da natureza, as consequências daí advindas não são, necessariamente, inevitáveis, notadamente quando o Poder Público apesar de ter ciência dos problemas de escoamento da água pluvial permanece omisso, inclusive quanto à própria manutenção do córrego, o que contribui, significativamente, para que ocorram as enchentes no período das chuvas.

Perceba que a omissão estatal pode concorrer para o desastre, penalizando ainda mais a sociedade que além dos gastos sobrevindos da situação excepcional, terá que indenizar aqueles diretamente foram prejudicados pela referida omissão.

Outra questão é quando o desastre não provém de evento natural, mas de evento humano, cujos exemplos aqui já indicados é o massacre do Carandiru de 1992, no qual podemos discutir eventual truculência na ação policial, e a tragédia da Boate Kiss de 2013, na qual podemos refletir sobre eventual omissão na fiscalização, eventos estes nos quais houveram consideráveis perdas humanas.

Para além da necessária atuação preventiva para evitar ou minimizar as consequências de desastres, outro ponto importante é a resposta esperada do Estado na ocorrência desses eventos no que diz respeito ao auxílio dos atingidos e a normalização da situação excepcional.

Quando o desastre tem causa em evento humano, a causa pode estar relacionada a própria atuação estatal (massacre do carandiru) ou decorrer do exercício de atividades privadas (rompimento da barragem de fundão e de brumadinho), não obstante, independentemente de quem deu causa, o que se espera é uma gestão ágil de nossos governantes para minimizar os estragos sofridos pelos atingidos.

Todavia, a atuação estatal quando do rompimento da normalidade em decorrência de um desastre pode simplesmente ser omissa, pode ser ineficaz, pode ser razoável ou pode extrapolar do necessário quando envolvido interesses outros que não restaurar a normalidade dando origem a administração do caos.

A omissão estatal em dar resposta imediata e efetiva a um desastre traz como resultado o agravamento da situação, seja do ponto de vista social, porque não ampara os atingidos pelo evento, seja do ponto de vista econômico, porque tal omissão é causa de responsabilidade civil estatal.

Um exemplo resume a explicação até então fornecida:

A) Omissão na prevenção: Suponha que o órgão ambiental municipal tome conhecimento da iminência do rompimento de uma barragem localizada no território do Município, operada por uma grande empresa, no entanto, referido órgão nada faz ao entendimento de que a competência, nesse caso, seria do órgão ambiental estadual, sequer emite um comunicado de alerta a este órgão ou à população sobre a situação.

Aqui temos uma omissão na atuação preventiva, com a ausência da adoção de ações de mitigação e de prevenção, considerando que a repartição de competências constitucionais não significa a renúncia na prevenção de situações de perigo que podem impactar na sociedade, de forma que é insustentável a inércia do órgão público municipal.

Em situações de iminente perigo público é essencial que os entes federativos atuem de forma colaborativa e cooperativa, não se sustentando juridicamente, a atuação ou não atuação ao fundamento da ideia individualista e egoísta de que o problema não seria de responsabilidade local ou regional, em um jogo de empurra-empurra para a solução do problema.

B) Omissão na reparação: Imagine que ocorra o rompimento da barragem causando diversos prejuízos de ordem material, acarretando perdas de vidas humanas, poluindo o principal rio que corta a cidade, interrompendo o fornecimento de água potável, de forma que um problema que supostamente não era atribuição municipal, vai exigir a sua atuação imediata.

Aqui entra a situação de emergência ou o estado de calamidade pública, este último mais usual porque, na maioria dos desastres, o Município não tem capacidade de resposta imediata sem o auxílio financeiro dos demais entes federativos, de forma que o primeiro ponto é a decretação do estado de calamidade pública pelo Chefe do Poder Executivo, devendo constar do decreto alguns requisitos, tais como, prazo e a delimitação da área.

Decretado o estado de calamidade pública, a legislação, como já dito, permite ao gestor municipal a contratação temporária de pessoal, a contratação direta de bens, obras e serviços, a desapropriação por utilidade pública, a requisição de bens e serviços, a inobservância temporária de algumas regras fiscais.

Para fazer frente a essas despesas, o gestor municipal deve providenciar uma avaliação dos danos a ser submetida ao Estado e a União para o reconhecimento da calamidade pública, viabilizando o repasse de recursos públicos.

Ocorre que o gestor pode ser omisso na adoção das ações de restabelecimento, de recuperação e de resposta, agravando ainda mais o infortúnio dos atingidos pelo desastre, citando a inobservância de formalidades nas contratações de pessoal, de obras e de serviços ou quanto aos requisitos para edição do decreto ou da realização da avaliação de danos.

Além disso, quanto à responsabilidade dos causadores do desastre, quando identificados, nosso sistema jurídico é disfuncional, não previsto para dar respostas imediatas em situações de desastre, bastando lembrar, no episódio do massacre do Carandiru, diversos policiais chegaram a ser condenados pelas mortes dos detentos, mas o oficial que comandou a operação, inicialmente condenado, chegou a ser absolvido pelo Tribunal de Justiça de São Paulo[2].

O atraso na adoção de ações de respostas e de restabelecimento adequadas, pelo gestor municipal, pode gerar entraves quanto ao reconhecimento do estado calamitoso por parte do Estado e da União e, em consequência, atraso na liberação de recursos financeiros necessários para a retomada da normalidade, quando não o descompromisso desses gestores em auxiliar e atuar de forma colaborativa.

C) Atuação ineficiente - As autoridades podem adotar medidas de reparação e de restabelecimento sem que as mesmas sejam eficientes e eficazes justamente em vista da repartição de competências existentes em nossa federação.

Isto porque que a Constituição Federal não estabelece, de pronto, quem deve atuar para normalizar uma situação de perigo acarretando, por vezes, a judicialização desses tipos de conflitos e, para ilustrar, indicamos duas situações conhecidas que foram judicializadas.

A primeira se refere a falta de fornecimento de oxigênio para hospitais do Estado do Amazonas no auge da pandemia covid, levando ao desespero pessoas que estavam com parentes hospitalizados, situação em que o Superior Tribunal de Justiça decidiu sobre conflito de competência, vide a ementa explicativa:

CONFLITO POSITIVO DE COMPETÊNCIA. ADMINISTRATIVO. EMPRESA FORNECEDORA DE OXIGÊNIO. COVID-19. SITUAÇÃO PANDÊMICA NO ESTADO DO AMAZONAS. CALAMIDADE DA SAÚDE PÚBLICA. DECISÕES DAS ESFERAS FEDERAL E ESTADUAL CONFLITANTES. INTERESSE DA UNIÃO. COMPETÊNCIA FEDERAL. I - Trata-se de conflito positivo de competência, instaurado pela empresa White Martins Gases Industriais do Norte Ltda., sendo o Estado do Amazonas e a União posteriormente incluídos como interessados, no qual se alega a existência de ações ajuizadas nos Juízos estadual e federal com o mesmo objetivo: obtenção de oxigênio às unidades de saúde estaduais para o tratamento da excepcional situação pandêmica da COVID-19. II - Pedido fundado na alegação de que as decisões podem ser conflitantes, evidenciando até mesmo uma impossibilidade de seu cumprimento, e o evidente interesse da União no feito, uma vez que diversos órgãos públicos federais estão envolvidos no referido trâmite, e já existente uma ação civil acerca da controvérsia, no que a competência deve-se firmar no Juízo da 1ª Vara Federal do Amazonas. III - Decisões de tutela provisória prolatadas pelo Vice-Presidente desta Corte, no exercício da Presidência, a favor da competência do Juízo federal. IV - A peculiar situação do caso concreto, de fato, induz ao conhecimento do conflito positivo de competência, reclamando uma uniformidade de entendimento para o efetivo socorro àquele Estado. V - Existência de ação civil sobre a controvérsia ajuizada no Juízo federal, e evidenciada a presença de diversos órgãos de âmbito federal nos referidos trâmites. VI - Manifestação da União demonstrando interesse no presente feito, assim como nas respectivas ações com mesmo objeto. Súmula n. 150/STJ. VII - Entendimento prestigiado pelo MPF no sentido de que: " [...] não deve a Justiça local agir em dispersão da competência federal unificada para a gestão transitória da crise sanitária local, por meio do controle de atos e regulamentos administrativos das autoridades da União." VIII - Conflito conhecido e provido, confirmando as decisões liminares proferidas no sentido da competência do Juízo da 1ª Vara Federal de Manaus, com a reunião das ações aqui elencadas, assim como a determinação de que futuras ações com mesmo objeto, nele sejam ajuizadas/reunidas. (CC 177.113/AM, Rel. Ministro FRANCISCO FALCÃO, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 25/08/2021, DJe 01/09/2021)

Outro julgado paradigma do Superior Tribunal de Justiça, aqui sumariamente sintetizado, envolveu conflito de competência quanto às ações civis públicas ajuizadas na Justiça Federal e Justiça Estadual de Governador Valadares que tinham por objeto, entre outros, o fornecimento de água potável em decorrência do rompimento da barragem de fundão em 2015, localizada em Mariana-MG, cujos danos sociais afetou o Rio Doce, bem público federal visto que corta mais de Estado-membro, um dos argumentos utilizados para decidir pela competência da Justiça Federal, acrescido da atividade minerária depender de outorga da União, no entanto, outro ponto alto da discussão seria a indicação da seção ou subseção competente, observando que os danos provocados atingiram cidades de Minas Gerais e do Espirito Santo, decidindo o Tribunal Superior pela aplicação da prevenção em vista da conexão existente entre as diversas ações coletivas propostas, concentrando-se, dessa forma, as respectivas ações na competência da 12ª Vara Federal de Belo Horizonte, ressalvando no julgado que a decisão não envolvia toda e qualquer questão, de forma que questões pontuais patrimoniais ou peculiares poderiam ser propostas no foro do domicílio do autor[3].

Os julgados, acima indicados, foram utilizados para indicar, em que pese real inflação legislativa existente em nosso ordenamento jurídico, a deficiência normativa para, prontamente, simplificar as respostas necessárias e imediatas em situações de desastre e, nesse cenário, as questões pontuais são judicializadas, se perdendo na morosidade ou no ritual processualístico do nosso Poder Judiciário.

A atuação razoável é quando se adota todas as medidas essenciais para o pronto retorno da normalidade, minimizando os prejuízos ocorridos com o desastre e, por sua vez, a atuação além do necessário é quando se busca através do desastre, proveito econômico, tal como o desvio das verbas públicas destinadas as medidas de restabelecimento e reparação, ou proveito eleitoral, buscando benefício político a partir da tragédia alheia.

Para arrematar a discussão, as questões aqui tratadas podem ser transportadas para a atuação do Estado Brasileiro na adoção das medidas necessárias ao enfrentamento da pandemia covid 19 e, para tanto, reportamo-nos a TAVARES (2022, p. 776):

Desde a promulgação da Lei n. 13.979, de 6 de fevereiro de 2020, que dispôs sobre as medidas de combate à pandemia de Covid-19, a Suprema Corte brasileira passou a exercer papel preponderante na adoção de parâmetros e medidas efetivas do Brasil frente ao contexto de emergência de saúde pública.

Isso ocorreu em face da notória e reiterada conduta do Governo Federal e União no enfrentamento da Covid-19, por vezes omissiva, por vezes insuficiente, por vezes dúbia. É esse o cenário que permite compreender os números superlativos da ação do STF no combate à pandemia. De acordo com dados oficiais disponibilizados em seu próprio sítio oficial, o STF recebeu mais de 9.300 processos relacionados à pandemia de Covid-19, e emitiu, ao menos, 11.886 decisões.

Os dados se referem tão somente a judicialização ocorrida na mais alta Corte do Poder Judiciário e, portanto, não retrata ações direcionadas contra os Estados, Distrito Federal e Municípios, mas nos dão noção de que essa judicialização massiva caracteriza uma deficiência em nossa federação e evidencia a ausência de uma atuação colaborativa e cooperativa em situações de desastre.

A pandemia covid 19 não retrata uma situação de omissão preventiva, em vista da imprevisibilidade de sua causa, mas demonstra omissão nas medidas de resposta e restabelecimento decorrentes de uma multiplicidade de concausas, nos permitindo enumerar algumas delas: a) ausência de coordenação permitindo que os gestores públicos à frente dos entes políticos atuassem, cada um, à sua maneira; b) o jogo do "empurra-empurra" entre os entes políticos; c) a ausência de um planejamento eficiente de curto, médio e longo prazo para fins de restabelecer a normalidade; d) a ganância de alguns gestores em aproveitar o momento de tragédia para desviar recursos públicos; e) a briga pelo protagonismo de alguns gestores, ao invés de buscarem uma atuação conjunta, colaborativa e cooperativa para minimizar a tragédia; e) a ausência e/ou deficiência da infraestrutura existente para atendimento dos pacientes, acarretando superlotação dos serviços de saúde e, em consequência, a morte de centenas ou, quiçá, milhares de pessoas.

Não tenham dúvidas que a transposição das decisões para âmbito do Poder Judiciário, com a excessiva judicialização de questões envolvendo a pandemia covid 19, revelam a disfuncionalidade do nosso sistema jurídico e o despreparo de nossos gestores para lidar com o rompimento da normalidade, caracterizando uma permanente administração do caos.

V - CONCLUSÃO

O presente ensaio provoca a discussão sobre a atuação estatal diante de desastres, caracterizado por um evento natural ou humano que produz substanciais prejuízos aos diretamente atingidos e indiretamente para toda sociedade.

A ocorrência do desastre exige uma postura imediata das autoridades públicas para restabelecer a normalidade e, em nosso ordenamento jurídico, a Constituição Republicana de 1891 já previa o reconhecimento de calamidade pública para prestar socorro público.

Tanto o desastre quanto a calamidade pública possuem referência em nossa atual Constituição Federal de 1988, observando que a legislação infraconstitucional também faz referência a situação de emergência, a qual difere em intensidade do estado de calamidade visto que neste o ente político diretamente atingido perde substancialmente a capacidade de restabelecer a normalidade, dependendo do auxílio dos demais entes políticos.

Em situações de desastre podem ocorrer situações de omissão, tanto preventiva quanto reparadora, atuação ineficaz, atuação razoável e atuação mais do que necessária por parte dos nossos gestores, observando que a adoção de medidas tanto preventivas quanto de reparação está diretamente relacionada com a nossa forma de estado federativa.

A federação brasileira foi instituída na Constituição Republicana de 1891, seguindo o modelo da constituição norte-americana de 1787, todavia distancia deste modelo com a Constituição Federal de 1988, visto que esta inclui o Município como participante da federação, o que é denominado pela doutrina de federação de terceiro grau, registrando que a essência da federação é a repartição de competências, permitindo a atuação harmoniosa das ordens jurídicas nacional, regionais e, em nossa federação, locais dentro do mesmo espaço territorial.

A repartição de competência define quais as atribuições de cada um dos entes participantes da federação e, em nosso modelo, a Constituição Federal de 1988 enumera as competências da União e dos Municípios, de forma que a competência dos Estados é residual, observando a particularidade do Distrito Federal que acumula as competências estaduais e municipais.

Em síntese apertada, alguns casos aqui retratados servem de paradigmas para evidenciar deficiência em nossa estrutura federativa para atuação preventiva e pronta resposta estatal em situações de desastre, conclusão não relacionada a ausência de regulamentação da matéria, mas a forma com que as autoridades enfrentam respectivas situações, seja pela omissão tanto na prevenção quanto nas medidas de restabelecimento para o retorno da normalidade, pela insuficiência das medidas adotadas, pela adoção de medidas contrárias ao interesse público, mas que traz algum proveito para o gestor público de cunho econômico ou quiçá, de cunho político.

Para a nossa sorte, parafraseando o artista fica a dica de que moramos num País tropical, abençoado por Deus e bonito por natureza. Não há sinais em nossa terra brasilis de fenômenos naturais propícios a acarretar desastre, tais como, erupção vulcânica, tornados, furacões, tsunami, terremotos e tantos outros capazes de provocar verdadeiras tragédias.

Sorte nossa?

VI - REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALEXANDRINO, Marcelo e PAULO, Vicente. Direito Administrativo Descomplicado. 14ª Ed. Rio de Janeiro: Impetus. 2007

ARAÚJO, Edmir Netto D. Curso de direito administrativo. Disponível em: Minha Biblioteca, (8th edição). Editora Saraiva, 2018.

CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. Disponível em: Minha Biblioteca, (35th edição). Grupo GEN, 2021.

CARVALHO, Raquel Melo Urbano de. Curso de Direito Administrativo. Ed. Juspodvim: Salvador. 2008

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. Disponível em: Minha Biblioteca, (34th edição). Grupo GEN, 2021.

FURTADO, Lucas Rocha. Curso de Direito Administrativo. 4ª Ed. Fórum: Belo Horizonte. 2016.

HOLTHE, Leo Van. Direito Constitucional. 4ª Ed. Salvador: Juspodivm. 2008

LENZA, Pedro. ESQUEMATIZADO - DIREITO CONSTITUCIONAL. Disponível em: Minha Biblioteca, (25th edição). Editora Saraiva, 2021.

MARTINS, FLÁVIO. CURSO DE DIREITO CONSTITUCIONAL. Disponível em: Minha Biblioteca, (5th edição). Editora Saraiva, 2021.

MORAES, Alexandre de,. Direito Constitucional. Disponível em: Minha Biblioteca, (37th edição). Grupo GEN, 2021.

MOTTA, Sylvio. Direito Constitucional. Disponível em: Minha Biblioteca, (28ª edição). Grupo GEN, 2019.

TAVARES, André R. Curso de Direito Constitucional. Disponível em: Minha Biblioteca, (20th edição). Editora Saraiva, 2021.

ZIMMER JÚNIOR, Aloisio. Curso de Direito Administrativo. 3ª Ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método.

  1. A repartição de competências no que se refere ao SUS está prevista na Lei 8.080/90.

  2. Massacre do Carandiru Wikipédia, a enciclopédia livre (wikipedia.org)

  3. STJ - CC 144.922/MG, Rel. Ministra DIVA MALERBI (DESEMBARGADORA CONVOCADA TRF 3ª REGIÃO), PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 22/06/2016, DJe 09/08/2016.

Sobre o autor
Fabiano Batista Correa

Advogado, Professor de Direito Administrativo, Gestão Pública, Direito Constitucional e Direito Tributário

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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