O tema da emendatio libelli no processo penal tem sido objeto de nossas reflexões já há alguns anos e continua a merecer atenção, especialmente porque há a perspectiva de um novo Código de Processo Penal, cujo Projeto atualmente tramita na Câmara dos Deputados como PL 8.045/2010.[1]
Aponta-se que a exigência de que se fizesse já na inicial acusatória a classificação do fato imputado isto é, a indicação do dispositivo penal incriminador em que a conduta em tese se enquadra, é conquista do século passado, porquanto antes reinava a imprecisão na definição dos tipos penais. Na experiência jurídica brasileira, constituiu inovação do CPP/1941 a imposição de que a classificação seja feita na denúncia ou na queixa, eis que a legislação anterior somente requeria, no momento da deflagração da persecução criminal em juízo, a descrição do fato e a indicação dos motivos que fundamentavam a imputação, sendo a classificação aposta em fase posterior, na decisão de pronúncia, que encaminhava o feito a julgamento.[2]
Apesar de tal exigência, reconhece-se que a classificação trazida na peça vestibular não vincula o órgão julgador, que, por meio da emendatio libelli, prevista no art. 383 do CPP/1941, entendendo que a definição jurídica apontada na exordial está equivocada, pode dar outra ao fato imputado e provado, ainda que, em consequência, tenha que aplicar sanção penal mais gravosa. Frise-se que, neste caso, a instrução processual não revela nenhum dado inédito, que não esteja contido na imputação. Por conseguinte, há perfeita identidade entre o fato narrado e o efetivamente apurado, modificando-se apenas a sua tipificação.
A emendatio libelli, portanto, na síntese de Vicente Greco Filho, consiste na correção da classificação do delito sobre o mesmo fato constante da denúncia ou queixa e tem aplicação tanto na ação penal de iniciativa pública quanto na de iniciativa privada.[3]
Nos magistérios de Tourinho Filho e de Mirabete, tratar-se-ia de uma simples corrigenda da peça acusatória, que encontraria sua ratio no postulado jura novit curia, alegadamente vigente no processo penal pátrio, segundo o qual o magistrado conhece o Direito e deve declará-lo no caso concreto submetido à sua apreciação, não ficando, pois, cerceado pela capitulação legal invocada pelo acusador ao oferecer a proemial. Narra mihi factum, dabo tibi jus, diz o conhecido e repetido adágio.[4]
Como decorrência dessa premissa, costuma-se afirmar na doutrina e na jurisprudência que o réu, no processo penal condenatório, defende-se do fato imputado, e não de seu enquadramento típico, que de resto é provisório até o trânsito em julgado da sentença. Tal posicionamento, como elucidado por Antonio Scarance Fernandes, teve origem na força da tradição e na resistência de juristas e tribunais à então nova disciplina instituída pelo CPP/1941 quanto à necessidade da classificação já na denúncia ou na queixa, vindo a ganhar inúmeros adeptos ao longo do tempo.[5]
Outrossim, a compreensão majoritária do art. 383 do CPP/1941 se orienta no sentido de seu cabimento no momento da prolação da sentença e com dispensa da prévia manifestação da acusação e da defesa.
Com efeito, sustenta-se que, via de regra, antes da sentença, em especial na fase de admissibilidade da acusação, não dispõe o órgão julgador do poder de retificar a capitulação legal declinada pelo Ministério Público ou pelo querelante. Só lhe compete fazê-lo, pois, quando do julgamento definitivo da pretensão deduzida, salvo em raras situações, v.g., havendo aditamento à peça vestibular ou para resolver questões processuais incidentais, mormente relativas à competência, ao procedimento adequado ou a medidas cautelares pessoais.
Por outro lado, exara-se que não há necessidade de abertura de vista às partes para que se pronunciem a respeito da emendatio libelli, sob o argumento de que o contraditório e a ampla defesa não são violados, ante a inocorrência de alteração do fato reportado na peça acusatória, debatido à saciedade até o fim da instrução processual.
Finalmente, o art. 617 do CPP/1941 admite a emendatio libelli também em grau recursal, podendo o tribunal dar ao fato imputado e provado definição jurídica diferente da consignada na denúncia ou na queixa ou mesmo na sentença condenatória. A parte final do dispositivo ressalva que a corte não está autorizada a agravar a pena imposta quando somente o réu houver apelado da sentença. Trata-se da proibição da reformatio in pejus.
Note-se que, nos moldes do que ocorre em primeira instância, não se costuma cogitar da necessidade de manifestação das partes antes da emendatio libelli em grau recursal.
Em nossa visão, a irrefletida acolhida da afirmação de que o réu se defende do fato imputado, e não de sua tipificação legal, e de que ao juiz (ou ao tribunal) cabe, por ocasião da sentença (ou do acórdão), corrigi-la sem precisar colher as manifestações das partes, constitui sem dúvida um senso comum teórico dos juristas.
Por senso comum teórico dos juristas se deve entender o conjunto de crenças, mitos, representações e hábitos significativos na interpretação/aplicação do Direito, o já-dito-desde-sempre, admitido como verdade e incontrastável pelos discursos dogmáticos ordinários.
Na lição de Luis Alberto Warat, os processos significativos do direito apresentam-se como um conjunto heterogêneo de hábitos semiológicos de referência (senso comum teórico) e de discursos organizados a partir de ditos hábitos. Ou seja, os primeiros operam como um código para as enunciações jurídicas. Metaforicamente, caracteriza-se o senso comum teórico como a voz off do direito, como uma caravana de ecos legitimadores de um conjunto de crenças, a partir das quais se pode dispensar o aprofundamento das condições e das relações que tais crenças mitificam.[6]
A identificação do senso comum teórico conduz a um ceticismo quanto à cientificidade da teoria jurídica tradicional e faz passar a vislumbrá-la como um discurso prescritivo e não apenas descritivo, uma doxa (opinião) mais que uma episteme (ciência), bem como suscita indagações acerca das condições sociais, políticas e históricas dos discursos jurídicos e do seu poder de criar significações, isto é, de curvar e condicionar os significados dos preceitos normativos.
Assim, pode-se dizer que o saber jurídico é um verdadeiro poder simbólico que integra a estrutura coercitiva do Direito e permite a elaboração e a articulação das significações não manifestas, ocultas e ideológicas. Poder simbólico, na conceituação de Pierre Bordieu, é o poder invisível que só pode ser exercido com a cumplicidade daqueles que não querem saber que lhe estão sujeitos ou mesmo que o exercem.[7]
Novamente de acordo com Warat, o senso comum teórico resulta de um movimento dialético que se inicia com certos hábitos significativos (uma doxa), prossegue com a busca de conceitos que os encampem e justifiquem (uma episteme construída mediante processos pretensamente lógicos depuradores do primeiro momento) e se conclui com a reincorporação dos conceitos nos hábitos significativos. Esta última etapa, adverte o autor, caracteriza-se pelo emprego da episteme como doxa, recomeçando a cena dialética mostrada.[8]
Para Lenio Streck, o sentido comum teórico coisifica o mundo e compensa as lacunas da ciência jurídica. Ele interioriza ideologicamente convenções linguísticas acerca do Direito e da sociedade; refere-se à produção, à circulação e à consumação das verdades nas diversas práticas de enunciação e de escritura do Direito, designando o conjunto das representações, crenças e ficções que influenciam, despercebidamente, os operadores do Direito. Traduz-se em uma paralinguagem, situada depois dos significantes e dos sistemas de significação dominantes, que ele serve de forma sutil, para estabelecer a realidade jurídica dominante. É o local dos segredos.[9]
A postura clássica sobre a emendatio libelli, na observação de Aury Lopes Jr., demonstra um errôneo e ingênuo reducionismo do caráter complexo que exibe o processo penal em tempos atuais, atrelado a uma concepção simplista dele e repetido sem maiores aprofundamentos desde um passado remoto, incompatível com o seu nível de evolução e com os cânones constitucionais contemporâneos.[10]
Certamente, um exame mais acurado da fenomenologia processual penal revela e traz à tona a realidade escamoteada pelo discurso fácil da dogmática tradicional sobre a (falta de) importância da classificação da infração penal trazida antes da sentença condenatória e sobre a emendatio libelli.
Com efeito, a tipificação penal inicial impacta sobremaneira a configuração concreta de todos os chamados institutos ou temas fundamentais do Direito Processual Penal, quais sejam, o processo, a jurisdição, a ação e a defesa.
Quanto ao processo, forçoso ressaltar, primeiramente, que o pensamento mais moderno, que encontra em Elio Fazzalari seu precursor, tem refutado sua natureza de relação jurídica e reabilitado no seu conceito a noção de procedimento, compreendido como sucessão de atos normativamente disciplinados, vinculados reciprocamente e ordenados à preparação de um provimento imperativo, somado ao contraditório, percebido como garantia de participação nessa preparação, em situação de simétrica paridade, dos interessados, isto é, daqueles que serão atingidos em suas esferas jurídicas pelo aludido provimento. Processo, portanto, é uma espécie de procedimento, justamente aquela realizada em contraditório.[11]
Pedro Manoel Abreu muito bem resume esse renovado panorama doutrinário: "O processo, nessa conjuntura, não pode ser visualizado apenas como relação jurídica, mas como uma expressão relevante para a democracia, e por essa razão deve ser legítimo. Deve se legitimar pela participação. Deve ser legítimo, adequado à tutela dos direitos e aos direitos fundamentais e, além disso, deve produzir uma decisão legítima. A identificação do processo como procedimento em contraditório entre as partes, emergente de uma estrutura normativa, suplanta a concepção de processo como relação jurídica. O contraditório é vislumbrado como oportunidade de participação paritária. É garantia de simétrica igualdade de participação dos destinatários do provimento na fase procedimental de sua preparação. Nesse viés, a possibilidade garantida de participação em simétrica igualdade não se concilia definitivamente com vínculo de sujeição. A concepção mais contemporânea de processo, portanto, não o distingue de procedimento através de um critério teleológico, tampouco o compreende como relação jurídica ou o procedimento como mera forma."[12]
Destacada a revalorização do procedimento na ideia de processo, cumpre enfatizar que o enquadramento penal declinado na denúncia ou na queixa tem o condão de determinar qual esquema procedimental será seguido durante a persecução criminal em juízo, quer-se dizer, quais atos processuais deverão ou não ser praticados, conforme a sua previsão normativa. De acordo com Antonio Scarance Fernandes, reconhece-se hoje um direito fundamental ao procedimento que, em sua manifestação concreta, desdobra-se no direito ao tipo de procedimento ou às formas alternativas de simplificação e no direito à integralidade estrutural e temporal e à ordem do procedimento.[13]
Assim, a depender da qualificação legal atribuída prefacialmente ao fato imputado, poderá ser adotado o rito comum (ordinário, sumário ou sumaríssimo) ou algum procedimento especial, influindo por conseguinte nos poderes e faculdades desfrutados pelas partes no seu iter, notadamente pelo réu.
A classificação da conduta também é imprescindível para a análise do cabimento ou não de institutos da justiça penal negocial, tais como a composição civil extintiva da punibilidade (arts. 72 a 75 da Lei 9.099/1995), a transação penal (art. 76 da Lei 9.099/1995), a suspensão condicional do processo (art. 89 da Lei 9.099/1995) ou o acordo de não persecução penal (art. 28-A do CPP/1941). A adequação típica inicial, como resta evidente, permite ou obsta o emprego dessas medidas, que representam soluções consensuais alternativas e simplificadoras para a persecução criminal, em cotejo com os binômios arquivamento/ação penal e condenação/absolvição.
Ademais, a classificação da infração ostenta inegável relevância na decretação, manutenção, conversão ou revogação das medidas cautelares constritivas pessoais, como se pode notar da disciplina dos arts. 282 e seguintes do Estatuto Instrumental. Sobreleva, por suas consequências no status libertatis do imputado, o enquadramento típico formalizado na fase investigatória da persecução penal ou no limiar da etapa judicial-cognitiva, quando puder autorizar a decretação de prisão cautelar ou impedir a concessão de liberdade provisória, com ou sem fiança, ou a substituição do encarceramento por medidas cautelares alternativas.
No que tange à jurisdição, e mais propriamente à divisão técnica do seu exercício entre os diversos órgãos julgadores, é a partir da natureza da infração, e portanto da subsunção legal introdutória, que muitas vezes se define a competência, seja ela constitucional ou legal, firmada em razão da matéria (ratione materiae) ou territorialmente (ratione loci).
Também são nítidos os reflexos da adequação típica na denominada fase pré-processual, preparatória da acusação, e no que toca à ação penal.
Na dependência dela, será cabível a instauração de termo circunstanciado, se verificada uma infração penal considerada de menor potencial ofensivo (art. 69 da Lei 9.099/1995), ou se fará necessária a deflagração de inquérito policial, nos demais casos (art. 5º do CPP/1941).
Também se mostrará imprescindível para definir a titularidade ativa da ação penal, isto é, se de iniciativa pública ou privada, e, na primeira hipótese, a exigência ou não de algum especial requisito para autorizar o seu exercício pelo Ministério Público, ou seja, das comumente chamadas condições específicas de procedibilidade.
Finalmente, a tipicidade do fato, para muitos, consubstancia a própria possibilidade jurídica do pedido em sede processual penal ou, de qualquer modo, liga-se inexoravelmente à justa causa para a ação penal, sendo portanto imprescindível a subsunção da conduta a um tipo legal incriminador.
Na segunda e última parte deste texto, abordaremos a repercussão da classificação do fato imputado no instituto processual fundamental da defesa e concluiremos nossas principais observações sobre a emendatio libelli.
[1] O presente texto, que se divide em duas partes, consiste em versão resumida, revisada e atualizada de artigo de nossa autoria intitulado Emendatio libelli e sentido comum teórico dos juristas, publicado originalmente na Revista Brasileira de Ciências Criminais, v. 108, p. 387-415, mai. 2014, e depois na Coleção Doutrinas Essenciais: Direito Penal e Processo Penal, Org.: Gustavo Badaró, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015. v. 6.
[2] Cf. FERNANDES, Antonio Scarance. A reação defensiva à imputação. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 213-214.
[3] GRECO FILHO, Vicente. Manual de processo penal. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 1998. p. 327.
[4] Cf. TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo penal. 18. ed. São Paulo: Saraiva, 1997. v. 4. p. 232-233; e MIRABETE, Julio Fabbrini. Código de processo penal interpretado. 10. ed. São Paulo: Atlas, 2003. p. 981-982.
[5] Cf. FERNANDES, Antonio Scarance. A reação defensiva à imputação, cit., p. 214-215.
[6] WARAT, Luis Alberto. Saber crítico e senso comum teórico dos juristas. In: WARAT, Luis Alberto. Epistemologia e ensino do direito: o sonho acabou. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2004. p. 31-32.
[7] BORDIEU, Pierre. O poder simbólico. Tradução de Fernando Tomaz. Lisboa: DIFEL; Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989. p. 7-8.
[8] WARAT, Luis Alberto. Saber crítico e senso comum teórico dos juristas, cit., p. 31.
[9] STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do direito. 7. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007. p. 67.
[10] LOPES JR., Aury. Direito processual penal: e sua conformidade constitucional. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. v. 2. p. 379.
[11] FAZZALARI, Elio. Istituzioni di diritto processuale. 8. ed. Padova: CEDAM, 1996. p. 73-88.
[12] ABREU, Pedro Manoel. O processo jurisdicional como um locus da democracia participativa e da cidadania inclusiva. 2008. 544 f. Tese (Doutorado em Direito) Curso de Pós-Graduação em Direito, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2008. p. 427-428.
[13] FERNANDES, Antonio Scarance. Teoria geral do procedimento e o procedimento no processo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. p. 63-70.