A proposta habermasiana para o déficit democrático europeu

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RESUMO

O presente artigo pretende analisar a proposta de Jürgen Habermas para a superação do déficit democrático da União Europeia contida na obra Era das transições, a partir da formação de esferas ou espaços públicos de alcance europeu.

Palavras-chave: Déficit democrático. União Europeia. Espaço público.

A PROPOSTA HABERMASIANA PARA O DÉFICIT DEMOCRÁTICO EUROPEU

THE HABERMASIAN PROPOSAL FOR THE EUROPEAN DEMOCRATIC DEFICIT

SUMÁRIO

1. Introdução. 2. O aspecto estrutural e o déficit democrático. 3. O pensamento habermasiano e o déficit democrático. 4. A proposta habermasiana para o déficit democrático. 5. Apreciação crítica da proposta habermasiana. 6. Conclusão. Referências.

RESUMO

O presente artigo pretende analisar a proposta de Jürgen Habermas para a superação do déficit democrático da União Europeia contida na obra Era das transições, a partir da formação de esferas ou espaços públicos de alcance europeu.

Palavras-chave: Déficit democrático. União Europeia. Espaço público.

ABSTRACT

This article aims at analyzing Jurgen Habermas' proposal for the overcoming of the democratic deficit of the European Union contained in the work Era of transitions from the formation of spheres or public spaces of European reach.

Keywords: Democratic deficit. European Union. Public space.

1 INTRODUÇÃO

O presente artigo tem por objeto a proposta de Jürgen Habermas para o déficit democrático da União Europeia contida na obra Era das transições. Assim, faz-se, desde logo, a ressalva para o recorte voltado para o pensamento do filósofo alemão sobre o tema em discussão.

A expressão déficit democrático foi empregada pela primeira vez, no final da década de 70, pelo cientista político britânico David Marquand. Em seu trabalho sobre o Parlamento Europeu (cujos membros nessa época eram ainda escolhidos indiretamente), o autor examinou as deficiências da instituição na forma de indicação dos eurodeputados e propôs que a solução residiria na adoção do sistema de eleição direta.

Essa questão específica foi superada, mas a expressão permaneceu e ganhou generalização. Segundo Mény (2003, p. 8):

[] in fact, the democratic deficit argument never raged as much it did after the election of MPEs by universal suffrage. It might have been a necessary, but not a sufficient condition to fulfill the democratic requirements expected of Europes people, media and elites.

2 O ASPECTO ESTRUTURAL E O DÉFICIT DEMOCRÁTICO

A noção de déficit democrático decorre não apenas da observação da gênese do processo de integração europeu, mas também da estrutura institucional da União Europeia.

Com efeito, constata-se a existência desse déficit desde os primeiros atos da integração regional Europeia, uma vez que seus idealizadores Monnet e Schuman estavam claramente influenciados pela teoria neofuncionalista, segundo a qual, em linhas gerais, busca-se o sucesso do funcionamento do sistema na tecnocracia e no elitismo, independentemente da participação democrática. Trata-se de uma teoria sobre a eficácia das estratégias da integração e não sobre a legitimidade desse processo, que sequer é colocada em questão nos quadros dessa teoria.

A teoria neofuncionalista previa uma transferência progressiva e automática de soberania dos Estados-membros para a Comunidade Europeia. A sucessiva integração de funções estatais e a criação de uma elite tecnocrática teriam por resultado um processo auto-sustentado, composto por etapas de integração, que levaria à criação de uma nova entidade política. Essa teoria fundava-se numa abordagem norte-americana dos anos 50 e 60 da atividade dos grupos de interesses e da eficiência da tecnocracia na decisão, que foi adaptada ao contexto de integração europeu. (FRAGA, 2001, p. 39-40).

Na verdade, a teoria neofuncionalista ajudou a colocar em movimento um processo de integração na Europa fundado em "uma combinação de tecnocratas benevolentes e grupos econômicos impulsionados por interesses próprios para construir coalizões transnacionais de apoio a políticas Europeias" (FEATHERSTONE, 1994, p. 149).

O funcionamento bem-sucedido desse processo de integração dependia da vinculação dos governos nacionais aos objetivos europeus, que se realizaria através da tecnocracia da Alta Autoridade (órgão máximo da CECA e antecessor da atual Comissão Europeia), e também da persuasão das elites e dos grupos econômicos. Daí que a participação dos cidadãos, para Monnet e Schuman, não era relevante para o sucesso da integração Europeia.

O legado dessa estratégia inicial gerou uma frágil legitimidade democrática, que se intensificou com o decurso do tempo. Nesse sentido, as reações contrárias ao Tratado de Maastricht e à unificação monetária via Euro, as altas taxas de abstenção nas eleições dos eurodeputados e a falta de interesse da opinião pública da Europa sobre as políticas comuns podem ser vistas como uma conseqüência direta da estratégia neofuncionalista.

Por outro lado, a questão do déficit democrático decorre também da estrutura institucional da União Europeia, à medida que a sua concepção carece de participação mais efetiva dos cidadãos dos Estados-membros.

Com efeito, o Conselho da União Europeia (que dispõe de poderes executivos e legislativos), a Comissão Europeia (que desempenha o papel de guardiã dos tratados, dispõe do poder de atuar contra os Estados-membros e detém o monopólio da iniciativa legislativa) e o Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias (que garante o respeito do Direito Comunitário na interpretação e aplicação de suas normas) são instituições compostas exclusivamente por técnicos e políticos designados ou nomeados pelos governos nacionais, que atuam como gestores, legisladores e julgadores no espaço comunitário, sem a obrigação de responder politicamente por suas decisões.

O Parlamento Europeu, que é o único órgão comunitário democraticamente eleito pelas populações dos Estados-membros pelo voto direto, não possui os mesmos poderes dos Parlamentos nacionais de legislar e de controlar os respectivos Executivos. Mesmo que o Tratado de Maastricht, de 1992, tenha avançado no reconhecimento do alargamento de sua função legislativa, instituindo novos domínios para legislação e o procedimento de co-decisão, o Parlamento Europeu continua destituído de capacidade decisória plena, não sendo de grande relevância sua atuação como legislador.

As atribuições do Parlamento Europeu, em matéria de política externa, são eminentemente consultivas e de supervisão, não tendo competência legal para influenciar no conteúdo dos acordos e tratados tanto na fase das negociações diretas quanto na fase da elaboração das diretivas.

Grande parte dos poderes soberanos nos domínios executivo e legislativo transferidos pelos Estados-membros à União Europeia está sendo efetivamente exercida pela Comissão Europeia, visto que é dela a titularidade da iniciativa das leis e das políticas comunitárias, cabendo às demais instituições, em muitos domínios, apenas ratificá-las. E o Conselho da União Europeia tem a prerrogativa de, no procedimento de cooperação, em votação unânime, adotar determinada decisão, a despeito do veto do Parlamento Europeu.

Há, assim, na estrutura institucional da União Europeia "um dualismo expresso por uma instituição representativa, mas sem autonomia decisória, e por agências burocráticas dotadas desta autonomia, porém sem representatividade" (FARIA, 1999, p. 308).

Não obstante tal dualismo, para que um país possa pretender aderir à União Europeia, tem-se como requisitos ser um Estado europeu e estar fundado em bases democráticas. Exige-se que o país seja democrático para pertencer ao bloco comunitário e consagra-se o respeito à democracia pluralista nos diversos tratados constitutivos. Contudo, paradoxalmente, a efetiva participação democrática não está presente na estrutura institucional de União Europeia e nas tomadas de decisões das instituições comunitárias. Essa situação é bem descrita por Giddens quando afirma que:

A União Europeia tornou-se cada vez mais importante nas vidas dos cidadãos, ao mesmo tempo em que está perdendo apoio popular. Ela é responsável por 75% da legislação econômica através de seus Estados-membros, e por 50% de toda a legislação interna. No entanto, levantamentos mostram que na maioria dos países-membros há menos entusiasmo pela União Europeia do que antes como duas ou três sociedades fazendo o movimento oposto. As razões normalmente apresentadas são a falta de democracia na União Europeia e seu distanciamento das preocupações das pessoas comuns (GIDDENS, 1999, p. 154).

É esse, pois, o déficit democrático da União Europeia, que se formou pela conjugação dos interesses dos Estados-membros, e cuja conseqüência principal é o risco do que Michele Carducci (apud NEUSTEIN; DA SILVA, 2002, p. 380) denominou autoritarismo do constitucionalismo europeu: democracias nacionais que produziram uma entidade supranacional desprovida de participação popular. Embora o constitucionalismo esteja historicamente ligado à ideologia dos governados, dos cidadãos, a integração Europeia, ao contrário, nasce como uma idéia dos governantes uma idéia autoritária, que não se identifica nos cidadãos, nem encontra respaldo popular, à medida que apenas o governo de cada Estado-membro participa da tomada de decisões.

Faltam, na União Europeia, ferramentas para criar e fortalecer vínculos entre as instituições comunitárias e os seus cidadãos e, assim, suprir o déficit democrático europeu.

Trata-se de um problema congênito de que padece a União Europeia e que foi identificado desde sua gênese, estando presente em toda sua evolução e permanecendo ainda até os dias de hoje.

3 O PENSAMENTO HABERMASIANO E O DÉFICIT DEMOCRÁTICO EUROPEU

Jürgen Habermas é um dos mais importantes filósofos da atualidade. De nacionalidade alemã, é o último expoente vivo da chamada Escola de Frankfurt. Considerado intelectual da segunda geração dessa escola, tem importantes contribuições sobre a análise das relações sociais diante do advento da técnica e dos meios de comunicação de massa. Elaborou uma teoria da comunicação como teoria crítica da sociedade a teoria do agir comunicativo que pode ser aplicada a problemas centrais do direito e da política contemporâneas.

O pensamento de Habermas sobre o déficit democrático da União Europeia presente neste artigo foi exposta na obra Era das transições, na qual o pensador elabora uma análise crítica do modelo institucional decorrente do processo de integração europeu, com enfoque nos cidadãos e sua relação com a Europa.

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Habermas aponta quatro pré-requisitos para que os cidadãos associados entre si possam regular democraticamente o seu convívio em sociedade e exercer influência política nas condições de vida dessa sociedade, a saber:

Tem que haver um aparelho político competente que auxilie na implementação de decisões obrigatórias que atingem a coletividade;

- o caráter auto-referencial da autodeterminação e da auto-influenciação política do sujeito coletivo tem que ser claramente definido, a fim de ser possível atribuir-lhe decisões coletivas com teor obrigatório ;

- tem que haver uma coletividade de cidadãos, que possa ser mobilizada em favor da participação em processos de formação pollítica da opinião e da vontade visando ao bem-estar comum ;

- tem que haver um contexto econômico e social no qual uma administração democraticamente progarmada possa produzir serviços de organização e de direcionamento legítimos. (HABERMAS, 2003, p. 105.)

É nítida a preocupação de Habermas com a legitimidade das decisões e seu cumprimento pela coletividade. Sob essa ótica, assinala que a construção democrática da integração Europeia enfrenta grandes dificuldades. O filósofo alemão sustenta existir um déficit de legitimação quando o círculo dos que participam de decisões democráticas não coincide exatamente com os círculos dos atingidos por aquelas decisões . (HABERMAS, 2003, p. 107).

Habermas destaca também que, no âmbito da União Europeia, quanto mais frequentes e importantes as matérias reguladas por meio de negociação interestatal, tanto mais decisões serão subtraídas a uma formação democrática da opinião e da vontade, que normalmente dependem de arenas nacionais (HABERMAS, 2003, p. 107).

Para Habermas:

Na União Europeia, o processo decisório predominantemente burocrático dos especalistas de Bruxelas constiui ótimo exemplo desse déficit democrático que surge com a transferência dos grêmios decisórios nacionais para as comissões interestatais, formadas por representantes de governos (HABERMAS, 2003, p. 108).

Esclarece o autor:

Segundo algumas avaliações, a implementação das decisões de Bruxelas já envolve 70% dos processos de legislação nacionais, sem que essas matérias tivessem sido expostas à discussão pública nas arenas nacionais, às quais só têm acesso os detentores de passaportes europeus. A densidade das decisões Europeias, a intransparência de seu surgimento e a falta de oportunidade para os cidadãos europeus participarem dos processos de decisão despertam desconfiança nas bases (HABERMAS, 2003, p. 136).

Para o herdeiro da Escola de Frankfurt, as diretivas Europeias afetam setenta por cento das disposições dos órgãos nacionais, porém carecem de uma discussão séria diante da opinião pública e de uma definição de objetivos nas arenas nacionais. Assim, aos olhos dos cidadãos, as instituições Europeias carecem de legitimidade, porquanto emergem distantes da base política, tal como a burocracia de Bruxelas. Para superar esse déficit democrático, Habermas aponta a formação de esferas ou espaços públicos que transcendam os limites do Estado nacional.

4 A PROPOSTA HABERMASIANA PARA O DÉFICIT DEMOCRÁTICO EUROPEU

Como reação à falta de transparência dos processos decisórios e à hegemonia exercida pela organização burocrática da União Europeia, centralizada em Bruxelas, que culminam com esse déficit democrático, fazendo com os cidadãos não disponham de meios efetivos de debater as questões comuns, não apenas na área econômica, mas também nas esferas da política e do direito, e assim influenciar os processos decisórios, Jürgen Habermas (2003) coloca a necessidade da criação de esferas ou espaços públicos de alcance europeu.

A noção de esferas ou espaços púbicos não pode ser entendida como uma instituição ou uma organização, porquanto não constitui uma estrutura normativa apta a atribuir papéis e competências específicos e funcionalmente diferenciados. Tampouco pode ser confundida com um sistema, pois, mesmo que seja possível delinear seus limites internos, caracteriza-se exteriormente por meio de horizontes abertos, permeáveis e deslocáveis.

Habermas assim define esfera ou espaço público:

Uma rede adequada para a comunicação de conteúdos, tomadas de posição e opiniões; nela os fluxos comunicacionais são filtrados e sintetizados a ponto de condensarem em opiniões públicas enfeixadas em temas específicos. Do mesmo modo que o mundo da vida tomado globalmente, a esfera pública se reproduz através do agir comunicativo, implicando apenas o domínio de uma linguagem natural; ela está em sintonia com a compreensibilidade geral da prática comunicativa cotidiana (HABERMAS, 1997, p. 92).

A esfera ou espaço público consiste, pois, numa verdadeira rede de feixes comunicacionais, de encontros e de tomadas de posição, que pressupõe a base da linguagem natural para se realizar. Designa o lugar de formação das opiniões e das vontades políticas, que garante a legitimidade do poder.

Dessa forma, pode-se afirmar que para a esfera ou espaço público convergem os debates, as dicotomias, as disputas, as divergências e as contraposições axiológicas.

Nas sociedades complexas, a esfera ou espaço público forma uma instância intermediária com a função mediadora entre a sociedade civil e o Estado, entre os cidadãos e o poder político.

Liszt Vieira destaca que, no pensamento habermasiano, a esfera ou espaço público atua como instância mediadora entre os impulsos comunicativos gerados na sociedade civil (no mundo da vida) e as instâncias que articulam, institucionalmente, as decisões políticas (parlamento, conselhos) (VIEIRA, 2001, p. 87).

Diante dos déficits de democracia, da crise de legitimação e do centralismo burocrático, a esfera ou espaço público torna-se o caminho para ampliar e aprofundar o campo político participativo em todos os espaços estruturais de interação social, revalorizando o primado da comunidade com todas as suas feições solidárias e permitindo uma libertação da sociedade civil, quer dos controles burocráticos empreendidos, quer dos imperativos econômicos impostos pelo mercado (TENDRICH, 1997, p. 156).

Nas esferas ou espaços públicos europeus, a legitimação democrática surgiria, segundo Habermas, do jogo conjunto dos processos institucionalizados de deliberação, decisão e de formação informal da opinião através dos meios de comunicação de massa nas arenas da comunicação pública (HABERMAS, 2003, p. 140).

Dessa forma, essas esferas ou espaços públicos preencheriam uma função ideal, a saber: a transformação de problemas relevantes comuns em núcleos cristalizadores de discursos, permitindo que os cidadãos se refiram simultaneamente aos mesmos temas relevantes e se posicionem em relação a temas controversos, dizendo "sim" ou "não". Essas tomadas de posição em relação a alternativas mais ou menos bem informadas e fundamentadas poderiam cristalizar-se em opiniões influentes e depositar-se, no longo prazo, em enfoques e eleições democráticas (HABERMAS, 2003, p. 140).

Destarte, os espaços públicos europeus permitiriam aos cidadãos tomarem opinião sobre os mesmos assuntos ao mesmo tempo, criando-se uma verdadeira opinião pública Europeia, no âmbito comunitário, que se projetaria nas decisões legislativas.

No entanto, essas arenas de formação pública da opinião e da vontade só existem, atualmente, no interior dos Estados nacionais. E não podemos imaginar o espaço público europeu, a ser construído, como uma projeção ampliada desse espaço público, pois ele só pode surgir quando os círculos de comunicação das arenas nacionais intactas se abrirem umas às outras (HABERMAS, 2003, p. 141).

A exigência funcional de esferas públicas políticas para uma União Europeia estruturada democraticamente, associada a um contexto comunicativo capaz de gerar uma solidariedade entre os cidadãos, só poderia ser assim concebida numa perspectiva transnacional.

Isso permitiria explicar aos cidadãos de toda a Europa as questões que são de interesse de todos, pois os meios nacionais de um país têm que assimilar apenas a substância das controvérsias deflagradas em outros países-membros e comentá-las. Então, poderão se formar, em todos os países, opiniões e contra-opiniões paralelas, tendo como matéria o mesmo tipo de objetos, informações e argumentos, sem levar em conta o lugar de onde provêm. O fato de que as comunicações que flutuam para cá e para lá tenham que passar através do filtro de traduções recíprocas não prejudica a função essencial da formação política da opinião e da vontade, que, mesmo ultrapassando fronteiras, continua sendo comum (HABERMAS, 2003, p. 142).

Pode-se assim falar numa multiplicidade de espaços públicos, que institucionalizam os processos de formação das opiniões. As tecnologias da comunicação a imprensa, o rádio, a televisão, a internet, etc. difundem diferentes discursos em diversos contextos e ajudam a criar uma rede diferenciada de espaços públicos de fronteiras permeáveis.

Nesse cenário, Habermas propõe, segundo Brunchaft (2010, p. 60):

[...] a integração do conceito de patriotismo constitucional à cultura política Europeia, tendo em vista o poder aglutinante da Constituição ao inspirar a adesão de diferentes identidades culturais. O filósofo cita a Suíça e os Estados Unidos como valiosos exemplos de sociedades que, não obstante a heterogeneidade cultural, alcançaram elevado nível de coesão política por meio de um projeto constitucional democrático.

No contexto transnacional, a perspectiva habermasiana modela o tipo de patriotismo, fundado politicamente na Constituição, quando estende à Europa um sentido de identidade constitucional aglutinante, capaz de transcender os limites de cultura, língua e etnia, bem como de opor-se ao nacionalismo xenófobo. A forma de solidariedade, restrita até então ao contexto nacional, passa a atingir uma dimensão mais ampla capaz de aglutinar os cidadãos da Europa e conduzir a um processo de formação de identidade além das fronteiras nacionais.

Assinala Habermas que a cidadania democrática só pode sustentar-se e, ainda assim, ir além de uma condição meramente legal, se vier a se traduzir nos valores do bem-estar social e do reconhecimento mútuo entre as variedades existentes de formas de vida (HABERMAS, 2000, p. 306).

Habermas defende a força do debate sobre a Constituição Europeia, assinalando que a Europa, por constituir uma comunidade política, não pode sedimentar-se na consciência de seus cidadãos apenas como uma comunidade apoiada no Euro, porquanto o acordo intergovernamental de Maastricht não possui a força simbólica de um ato de fundação política. (HABERMAS, 2003, p. 125).

O herdeiro da Escola de Frankfurt critica o posicionamento dos chamados eurocéticos, que rejeitam uma Constituição Europeia com o argumento de que não existe um demos europeu. Ou seja, o que parece faltar é o sujeito necessário de um processo constitucional, portanto o singular sujeito do porque poderia constituir-se a si mesmo como uma nação de cidadãos. (HABERMAS, 2003, p. 137).

Assinala o autor:

Esta tese de que não há um demos foi criticada por motivos empíricos e conceituais. A nação dos cidadãos do mundo não pode ser confundida como uma comunidade de destino pré-política, que sempre se caracteriza através de uma procedência, de uma linguagem e de uma história comum. Pois, com isso, não se faria jus ao caráter voluntarista de uma nação de cidadãos, cuja identidade coletiva não existe antes nem independentemente do processo democrático do qual surge. (HABERMAS, 2003, p. 137-138)

Assim, nesse contraste entre a nação de cidadãos e a nação formada por um povo, reflete-se a grande conquista do Estado nacional democrático, que conseguiu criar, por meio do status da cidadania, uma solidariedade inteiramente nova, abstrata, legalmente mediada entre os cidadãos.

5 APRECIAÇÃO CRÍTICA DA PROPOSTA HABERMASIANA

Como visto, a construção da democracia no âmbito da União Europeia enfrenta uma questão crucial: trata-se do chamado déficit democrático que decorre, sobretudo, do fato de os cidadãos não disporem de meios efetivos de debater as matérias comuns, não apenas na área econômica, mas também nas esferas da política e do direito, e assim influenciar os processos de tomada de decisão.

Para superar essa questão, Habermas (2003) propõe a formação de esferas ou espaços públicos de alcance europeu. A proposta habermasiana apresenta, contudo, alguns pontos críticos que merecem ser apontados. Não se pretende acompanhar aqui a bibliografia crítica em toda a sua amplitude, mas apenas levantar algumas questões atinentes às implicações práticas e as possibilidades de efetividade da proposta habermasiana.

Com efeito, a primeira questão crítica consiste em saber se é possível a formação de esferas ou espaços públicos transnacionais segundo o arranjo idealizado por Habermas, com a construção de uma identidade Europeia e a adoção do multiculturalismo, já que a identidade e a soberania nacionais ainda retêm muita força. Na linha dos eurocéticos, não existe um demos europeu, uma cultura política comum, uma língua comum que consinta o compartilhamento do chamado mundo da vida. No âmbito da União Europeia, em função das condições históricas e culturais reais, existem diversidades políticas, étnicas e lingüísticas. Trata-se de uma babel de cerca de vinte idiomas. Esse pluralismo parece constituir um sério obstáculo a comprometer a criação de esferas ou espaços públicos com as dimensões da Europa.

Na perspectiva de Díez-Picasso, a idéia de cidadania Europeia nos tratados constitutivos da União Europeia tem valor predominantemente simbólico. Não obstante tal fato, a cidadania Europeia é um a condição necessária, mas não suficiente para o surgimento de um povo europeu propriamente dito. (DÍEZ-PICASSO, 2002, p. 62).

Na verdade, não é fácil a tarefa de construir uma cidadania cosmopolita capaz de superar as identidades nacionais particulares. Como exposto, o problema principal quando falamos na construção de uma identidade Europeia e no papel da cidadania reside no fato de que os cidadãos não tiveram participação decisiva no processo de integração europeu. Há um conceito de cidadania desenvolvido de forma impositiva sem a mobilização efetiva dos cidadãos. A tecnocracia e o elitismo do início da integração Europeia geraram uma frágil legitimidade democrática, que se intensificou com o decorrer do tempo.

A outra questão consiste em saber se os impulsos comunicativos provenientes da sociedade civil, que passariam por essas esferas ou espaços públicos transnacionais, seriam suficientemente fortes para mobilizar os atores sociais, de modo a despertar e reorientar os processos de tomada de decisão no âmbito da União Europeia, já que, nos dias atuais, os meios de comunicação alcançam cada vez mais predominância na determinação das orientações das esferas ou espaços públicos. O próprio modo de operar da mídia na elaboração de mecanismos e estratégias de comunicação acaba por influenciar as esferas ou espaços públicos, reduzindo o nível discursivo da circulação pública dos fluxos comunicacionais.

6 CONCLUSÃO

A União Europeia, apesar de se constituir um dos mais avançados e complexos processos de integração nos dias atuais, enfrenta ainda questões que caracterizam a maior parte dos modelos políticos: democracia e legitimidade. Conciliar essas duas praxis em um sistema institucional inédito é, sem dúvida, o grande desafio.

A noção de déficit democrático decorre não apenas da observação da formação do processo de integração europeu, mas também da estrutura institucional da União Europeia. Trata-se de um problema congênito de que padece o modelo europeu e que foi identificado desde seu nascedouro, permanecendo ainda até os dias atuais.

Para Habermas, vive-se a crise do Estado nacional, em decorrência do crescente pluralismo no interior das sociedades nacionais, da forte imigração, da hegemonia de mercados e dos desafios colocados pela globalização, o que o faz perder autonomia, competência e substância democrática.

Assim, diante da perda das funções e dos espaços do Estado nacional, ameaçando os direitos e a capacidade de influência e de autodeterminação coletiva de seus cidadãos, o que parece fazer-se necessário, de um modo geral, é o desenvolvimento de possibilidades de ação política em um nível que se situe acima e entre os Estados nacionais (HABERMAS, 2000, p. 309).

Daí a proposta de formação de esferas ou espaços públicos fora da demarcação das fronteiras nacionais como superação do quadro de deficiência democrática da União Europeia. Nesse cenário, Habermas (2003) acredita que a integração social Europeia depende de um processo democraticamente estruturado, associado a um contexto comunicativo capaz de gerar uma solidariedade entre os cidadãos da Europa. Trata-se de uma alternativa atraente, mas, como salientado, apresenta pontos críticos.

Na verdade, a União Europeia requer muito mais do que mudanças na sua estrutura institucional e no seu processo decisório; antes disso, requer a tomada de ação política que lhe propicie uma legitimação material e afaste o déficit democrático existente.

Nesse sentido, o equacionamento do problema do déficit democrático é de crucial importância para que a União Europeia tenha êxito enquanto projeto de integração e de construção de um futuro para a Europa fundado na paz, na estabilidade, na segurança e no progresso.

Se o aprofundamento do processo de integração não vier acompanhado de exigências democráticas, seguramente a Europa será condenada a apenas aprimorar seus estatutos de união econômica e monetária, acrescidos aqui e ali de algumas normas e diretivas, que assegurem direitos comunitários.

A União Europeia não só deve ser capaz de negociar e executar políticas públicas comuns no espaço integrado, como seus cidadãos devem aprender a reconhecer os cidadãos que moram em outros Estados pertencentes à organização como membros da mesma comunidade política. É o grande desafio ao processo de integração política que a União Europeia enfrentará nos próximos anos: construir-se como entidade na forma de uma confederação ou federação de Estados.

O que é fundamental é a construção de uma agenda comum que discuta os objetivos do projeto de integração no âmbito da União Europeia, juntamente com a formação de uma identidade política dos cidadãos europeus, sobre bases democráticas e históricas. É dizer: a manutenção de uma Europa politicamente unida prescindirá de uma consciência de cooperação e solidariedade pela qual os europeus possam se identificar reciprocamente como cidadãos.

Nesse sentido, o espaço público europeu depende, de um lado, de contribuições vitais de atores da sociedade civil; todavia, ele necessita, além disso, da inserção numa cultura política comum (HABERMAS, 2003, p. 143).

REFERÊNCIAS

BUNCHAFT, Maria Eugenia. O patriotismo constitucional na perspectiva de Jürgen Habermas: a reconstrução da idéia de nação na filosofia política contemporânea. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.

DIÉZ-PICAZO, Luis Maria. Constitucionalismo de la Unión Europea. Madrid: Civitas, 2002.

FARIA, José Eduardo. Direito na economia globalizada. São Paulo: Malheiros, 1999.

FEATHERSTONE, Kevin. Jean Monet and the democratic deficit in the European Union. Journal of Common Market Studies, v. 32, n. 2, p. 149-170, June 1994.

FRAGA, Ana. Os parlamentos nacionais e a legitimidade da construção Europeia. Lisboa: Cosmo, 2001.

GIDDENS, Anthony. A terceira via: reflexões sobre impasse político e o futuro da social-democracia. Rio de Janeiro: Record, 1999.

HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. v. 2.

HABERMAS, Jürgen. Realizações e limites do Estado nacional europeu. In: BALAKRISNAN, Gopal (Org.). Um mapa da questão nacional. Rio de Janeiro: Contraponto, 2000.

HABERMAS, Jürgen. Era das transições. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003.

NEUSTEIN, Fernando Dantas M.; DA SILVA, Beatriz Pereira. O princípio da primazia no Direito Comunitário e o déficit democrático da União Europeia. In: PIOVESAN, Flávia (Coord.). Direitos humanos, globalização econômica e integração regional: desafios do direito constitucional internacional. São Paulo: Max Limonad, 2002. p. 367-383.

VIEIRA, Liszt. Os argonautas da cidadania: a sociedade civil na globalização. Rio de Janeiro: Record, 2001.

Sobre o autor
Amandino Teixeira Nunes Junior

Mestre em Direito pela UFMG, doutor em Direito pela UFPE, doutor em Ciência Política pela UnB, professor universitário e consultor legislativo aposentado da Câmara dos Deputados.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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