INTRODUÇÃO E CRÍTICA AO MODELO GARANTISTA CLÁSSICO DO DIREITO PENAL

28/01/2022 às 10:18
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Ricardo Cesar Franco

Defensor Público do Estado de São Paulo

Mestre em Filosofia do Direito pela PUC/SP

RESUMO

O presente artigo tem como finalidade analisar o modelo garantista clássico, tendo como pano de fundo a reforma humanista do direito e, por conseguinte, a transição operada na legislação penal e processual penal no final do século XVIII, que definiu os contornos da justiça criminal moderna.

Para tanto, empregou-se como fonte de informações as obras de Michel FOUCAULT, Luigi FERRAJOLI, Luiz Flávio GOMES, MONTESQUIEU, dentre outros autores contemporâneos.

ABSTRACT

This article aims to analyze the classic guarantee model, with the backdrop of humanist reform of criminal law and, therefore, the transition operated in criminal procedural legislation at the end of the eighteenth century, which defined the contours of modern criminal justice.

For this, it was employed as a source of information the works of Michel Foucault, Luigi Ferrajoli, Luiz Flávio Gomes, Montesquieu and other contemporary authors.

PALAVRAS-CHAVES

Garantismo, Direito Penal, Direito Processual Penal, Reforma Humanista do Direito Penal, Reformadores, Estrita Legalidade.

INTRODUÇÃO

Funda-se, o modelo garantista de perfil moderno ou clássico[1], na delimitação do poder punitivo estatal perante as normas de direito penal e processual penal e a operacionalidade dos referidos institutos segundo o funcionamento dos órgãos vinculados à distribuição da justiça[2]. Fundado[3] sob bases humanistas[4] heterogêneas[5], a operação do modelo clássico se dá, em síntese, pelo reconhecimento do conteúdo ideal dos princípios da legalidade estrita, materialidade e da lesividade aos bens jurídicos tutelados, da responsabilização em matéria penal, sob a ótica do direito penal material (garantias penais relativos à definição legislativa ao delito), e da presunção de inocência e do contraditório, sob a ótica da operação do processo penal em juízo (garantias processuais relativos à comprovação jurisdicional do ilícito penalmente relevante)[6]. A Conjunção dos referidos princípios, debalde a heterogeneidade de suas fontes, constituiu um sistema unitário, o qual, segundo FERRAJOLI, perfaz

antes de tudo, um esquema epistemológico de identificação do desvio penal, orientado a assegurar, a respeito de outros modelos de direito penal historicamente concebidos e realizados, o máximo grau de racionalidade e confiabilidade do juízo e, portanto, de limitação do poder punitivo e de tutela da pessoa contra a arbitrariedade[7].

Embora o modelo acima relatado se sujeita a críticas teóricas por conta do longo período desde o qual sua adoção foi inicialmente observada, não se pode excluí-lo, de plano, do debate acadêmico em vista de sua relevância para a compreensão da ciência[8] do direito penal democrático.

OPERACIONALIDADE DO SISTEMA GARANTISTA CLÁSSICO : LEGALIDADE ESTRITA NULLUM CRIMEN, NULLA POENA SINE LEGE

Trata-se, inegavelmente, o princípio da legalidade, de uma das mais patentes características legadas ao direito penal pelo nascente Estado moderno em meados do século XVIII[9]. No período em que se observa a transformação de uma sociedade sancionatória para uma sociedade disciplinar[10], na transição entre o final da Idade Média para a Idade das Luzes[11], os canais de produção das normas jurídicas, que se encontravam então esparsos em uma série de figuras de autoridade, passaram a quase exclusivamente redundar na produção legislativa estatal, especificamente relacionadas à função típica do Poder Legislativo como inicialmente preconizado por Montesquieu[12].

Em um primeiro momento, a reforma[13] promoveu a redução das fontes do direito e, mais especificamente, do direito penal para uma concepção positivista legalista extremada, que ainda reverbera na ideologia da produção da legislativa e na interpretação da lei pelo órgãos relacionados à aplicação do direito, cuja reação política imediata resultou no reconhecimento de uma garantia humana fundamental mediante a vinculação do princípio em comento à infalibilidade do legislador, cuja vontade, conforme a lição de Luiz Flávio GOMES, restou sacralizada:

A sacralização do legislador foi a causa principal, sem dúvida, da eclosão do mais nefasto e pernicioso legalismo, na medida em que difundiu a ideia de que a lei é a suprema e (praticamente) única fonte do Direito, o que significa que os juízes podem e devem resolver todos os conflitos com base (quase que exclusivamente) nela[14].

A passagem acima indicada, relevante para a compreensão dos fenômenos enunciados por FOUCAULT, representa o ponto fundamental para a sucessão do modelo sancionador para o disciplinador, mediante a promessa de mudança do modo de operacionalização do direito penal[15], segundo o qual somente se poderia, a partir de então, compreender dada conduta humana como criminosa se e somente se prevista pelo ordenamento normativo local. A reforma do direito penal operado pela historicamente pelo idealismo dos percussores da Escola Clássica, retirou dos ordenamentos jurídicos imediatamente afetados os suplícios, as penas degradantes e a tortura como forma de se obter a rainha das provas, a confissão, para a possibilidade de aprisionamento na execução penal[16].

Não se tratou de uma maneira de se punir menos em comparação ao modelo anterior[17], mas a gestão de maneiras de se punir melhor[18] o comportamento humano considerado desviante[19], aplicando-lhe dadas disciplinas para que sua reação redundasse em ações ou abstenções consideradas mais úteis à sociedade. Em verdade, se se considerar as modificações observadas pelas consequências da adoção do princípio da estrita legalidade, pode-se afirmar que se verificou uma excessiva expansão do direito penal[20].

O referido fenômeno passou a ser classificado juridicamente, a partir da reforma humanista do direito penal no final do século XVIII, mediante a expressão reserva legal ou da estrita legalidade[21], a qual, com o correr do tempo, fora imbuída de carga principiológica reitora das atividades legislativa e judicial[22].

No âmbito legislativo, a reserva de lei pressupõe uma limitação ao corpo legislativo local, segundo a qual a norma abstrata não deverá pressupor como objeto da sanção de direito penal determinada figura humana (indivíduo ou grupo de indivíduos), mas, sim, fatos atribuíveis à conduta das pessoas. Nesse sentido, a lição de FERRAJOLI[23] indica que

o princípio da estrita legalidade não admite normas constitutivas, mas somente normas regulamentares do desvio punível: portanto, não se admite normas que criem ou constituem ipso jure as situações de desvio sem nada prescrever, mas somente regras de comportamento que estabelecem uma proibição, quer dizer, uma modalidade deôntica, cujo conteúdo não pode ser mais do que uma ação, a respeito da qual seja aleticamente possível tanto a omissão, imputável à culpa ou responsabilidade de seu autor.

Em síntese, o limite primário que o princípio da reserva de lei impõe ao legislador que crimes são (somente) os fatos passíveis de demonstração empírica atribuível à conduta humana (comissiva ou omissiva a capacidade de compreensão do fato, em si, vale dizer, as condições subjetivas do ser humano que realizar a conduta descrita pela lei penal não desqualificada o princípio em comento, pois objeto de análise em momento posterior ao da produção legislativa), independentemente de um resultado naturalístico efetivamente observável.

O autor italiano, ainda, conclui que, diante das conclusões acima verificadas, a lei não pode qualificar como penalmente relevante qualquer hipótese indeterminada de desvio, mas somente comportamentos empíricos determinados, identificados exatamente como tais e, por sua vez, aditados à culpabilidade do sujeito[24]. O conteúdo jurídico do princípio da reserva legal, assim, revela-se mais amplo do que aquele compreendido aprioristicamente pelo senso comum, na medida em que se impõe, desde os passos iniciais em sede legislativa, que as condutas ou fatos compreendidos como desvios penalmente relevantes sejam reduzidos a sentenças objetivas de maneira a permitir que eventual imputação possa ser empiricamente demonstrada e redarguida empiricamente pelo imputado.

Ao vedar que o ser humano seja objeto do direito penal por conta de sua ontologia, senão condutas gerais e abstratas, os reformistas buscaram aplicar ao direito penal o prelado da isonomia dos cidadãos (igualdade perante a lei), excluindo-se do vasto poder concedido ao legislador (sacralizado) naquela oportunidade a indevida generalização de discriminações[25]. Ademais, eventual pensamento que permaneça no íntimo do indivíduo não poderá ser considerado, diante do princípio em estudo, fato criminoso. Faz-se necessário que o pensamento seja exarado pela pessoa e se amolde à conduta penalmente relevante para que se possa conceber a existência de um fato criminoso, empiricamente verificável mediante a instrumento judicial adequado.

Os limites impostos pelo princípio da reserva de legal ao Poder Judiciário, por sua vez, encontram paralelos com aqueles atribuídos ao legislador: as duas condições que inicialmente se apresentam quando da operacionalidade do regime de processo penal em juízo, a verificabilidade e a refutabilidade[26] dos fatos atribuídos ao processado. O órgão julgador, diante de uma acusação, deverá, seguindo as regras de distribuição do ônus probatório, conhecer dos fatos narrados pelo órgão acusatório e os reconhecer como criminoso diante da norma penal em vigor. É vedado ao juiz constituir tais fatos no âmbito do processo, devendo, por sua vez, diante do corolário do sistema acusatório, avaliar as provas produzidas pelas partes conforme a legislação local[27].

Daí se afirmar que uma justiça penal imparcial visa a realização, mediante o prisma fundamental dos valores de verdade e de falsidade[28], espécies que redundam no gênero certeza[29], cuja operação no âmbito do processo funciona como índice para a resolução do processo, seja para afirmar a tese acusatória, com a conseguinte condenação do imputado, seja para afastá-la, reconhecendo a negativa diante das provas apresentadas pela defesa ou tão somente não se atingindo o grau de certeza necessário para procedência da ação. A incerteza ou, mais precisamente, a ausência de certeza, milita em favor do acusado, que não poderá ter contra si uma condenação criminal lastreada em elementos de prova acusatória insuficientes ou deficientes. A barreira da dúvida razoável se torna intransponível para a justiça reformada, de perfil não autoritário.

Nesse sentido, a operação judicial que se realiza tendo como prisma a certeza (excluindo-se-lhe à vista de eventual incerteza, tendo como limite a dúvida razoável) realizar-se-á através de avaliação empírica, atividade predominantemente indutiva do juiz, a partir da análise dos fatos à luz da legislação posta (processual e material penal), requisitos sem os quais restará prejudicado eventual resultado desfavorável à defesa.

CRÍTICA AO MODELO GARANTISTA CLÁSSICO

Conforme as conclusões de FERRAJOLI, o modelo garantista penal clássico, debalde sua relevância para a inauguração da análise do crime de acordo com os primados do Estado de Direito e para sua evolução em Estado Democrático de Direito, encontra óbices realisticamente intransponíveis. Segundo o autor italiano

Todo o esquema epistemológico até aqui ilustrado e o modelo penal garantista que nele se informa têm o defeito fundamental de corresponder a um modelo limite, amplamente idealista, porque de fato nunca foi realizado nem nunca será realizável. O juiz não é um a máquina automática na qual por cima se introduzem os fatos e por baixo se retiram as sentenças, ainda que com a ajuda de um empurrão, quando os fatos não se adaptarem perfeitamente a ela. A ideia de um silogismo judicial perfeito, que permita a verificação absoluta dos fatos legalmente puníveis, corresponde () a uma ilusão metafísica: com efeito, tanto as condições de uso do termo verdadeiro quanto os critérios de aceitação de verdade no processo exigem inevitavelmente decisões dotadas de margens mais ou menos amplas de discricionariedade. Em consequência, na atividade judicial existem espaços de poder específicos e em parte insuprimíveis, que é tarefa de análise filosófica distinguir e explicar para permitir sua redução e controle. () Diante disso, por mais aperfeiçoado que esteja o sistema de garantias penais, a verificação jurídica dos pressupostos legais da pena nunca pode ser absolutamente certa e objetiva. A interpretação da lei, como hoje pacificamente se admite, nunca é uma atividade exclusivamente recognitiva, mas é sempre fruto de uma escolha prática a respeito de hipóteses interpretativas alternativas. Esta escolha, mais ou menos opinativa segundo o grau de indeterminação da previsão legal, se esgota inevitavelmente no exercício de um poder na indicação ou qualificação jurídica dos fatos julgados[30].

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Os espaços de poder[31], que irremediavelmente atuam sobre a juridição penal e permitem um exame com certa margem de discricionariedade por parte do órgão julgador, classifica a teoria garantista clássica como utópica ou, como relembra FERRAJOLI, ideal[32]. A vaga que se observa na teoria clássica não é suficiente para inabilitá-la por completo, como se fosse a reforma do direito penal setecentista mera promessa irrealizável, pois, de maneira objetiva, ela conduziu à exclusão de punições extremas como aquelas observadas no período das ordálias[33], proibiu a aplicação de punições extra legem e ultra legem[34] e cometeu ao Estado de Direito ao longo do tempo obrigações relativas à reparação dos desvios de seus agentes.

O reparo, conclui o autor em comento, é possível mediante a redefinição de técnicas legislativas e judiciais, que reduzam espaços normativos de arbítrio[35] e, por conseguinte, aponham limites à interpretação da lei e dos fatos juridicamente relevantes (excluindo-se, portanto, os irrelevantes). Poder-se-ia, ademais, sugerir a aposição de limites específicos, diretamente associados aos requisitos genéricos anteriormente pressupostos e ao espírito da teoria garantista, com a finalidade de evitar uma desarrazoada penalização na eventual possibilidade de o órgão julgador manejar os fatos ou a legislação em vigor para conduzir a decisão para um maior e injustificado agravamento da reprimenda concretamente aplicada.

CONCLUSÕES

1. No curso do século XVIII se observou o desenvolvimento do movimento filosófico conhecido como Iluminismo, que influenciou patentemente a obra dos estudiosos do direito penal que seriam chamados historicamente de reformistas.

2. A Reforma Humanista do Direito Penal acabaria por ocorrer na continuidade do referido século e, em grande parte, baseada na doutrina de pensadores como, por exemplo, Cesare BECCARIA, Jeremy BENTHAM, Pierre Louis de LACRETELLE e refletiu no Velho Continente e do Novo Mundo, modificando-se as legislações de antanho com vistas à adoção de novas formas de tratar judicialmente dos crimes e a punição dos autores de delitos.

3. FOUCAULT, em sua obra Vigiar e punir vinculara a adoção dos princípios reformistas do direito penal pelos diversos Estados nacionais no período acima indicado como um meio para a transição da sociedade punitiva que se observou até o advento do Estado moderno para a sociedade disciplinar, aquela cujas características principais visavam a constituição de um novo tipo de pessoa, menos violenta e mais útil para a nascente sociedade moderna (industrial).

4. A Escola Clássica do direito penal, norteada pelas obras dos reformadores, teve como mérito iniciar o debate de amplo espectro em relação a formas menos arbitrárias de punição e, com o tempo, oferecer as bases teóricas necessárias para que a sucessão entre os sistemas ocorresse efetivamente.

5. Os postulados apresentados pela Escola Clássica acabaram por ser questionados, embora não totalmente abolidos, e criticados como utópicos ou ideais, pois, embora a ação da justiça criminal ocorra de acordo com a lei, não se revela possível que o órgão julgador permaneça completamente isolado de influências políticas e ideológicas e o sistema pressuposto, por outro lado, permite realisticamente determinados espaços de discricionariedade por parte da autoridade.

6. Reconhece-se, como legado da teoria garantista clássica do direito penal, a abolição de penas corporais e da tortura institucionalizada como meio para se obter a confissão, além do desenvolvimento de princípios norteadores da atividade judiciária em matéria penal com vistas à realização de um processual penal equilibrado entre as partes e justo em relação ao seu resultado.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

FERRAJOLI, Luigi: Direito e razão. 3.ed. São Paulo, Revista dos Tribunais, 2010

FONSECA, Márcio Alves da: Michel Foucault e o Direito. 2.ed. São Paulo, Saraiva, 2014

FOUCAULT, Michel: A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro, Nau Editora, 2008

FOUCAULT, Michel: Vigiar e punir. Lisboa, Edições 70, 2017

FRANCO, Ricardo César: Breve apanhado sobre a produção da prova em processo penal, in Sujeito no direito. Curitiba, Editora CRV, 2012.

GOMES, Luiz Flávio: Direito penal, vol. 1 Introdução e princípios fundamentais. São Paulo, Revista dos Tribunais, 2007

HASSEMER, Winfried: Introdução aos fundamentos do direito penal. 2.ed. Porto Alegre, Sérgio Fabris Editor, 2005

MONTESQUIEU, Charles Louis de Secondat, baron de la: Do espírito das leis. 2.ed. São Paulo. Abril Cultural, 1979

SOUZA, Artur de Brito Gueiros e JAPIASSÚ, Carlos Eduardo Adriano: Curso de direito penal 1 parte geral. 2.ed. Rio de Janeiro. Forense, 2015.

  1. A rigor, a adjetivação Escola Clássica foi dada por Enrico Ferri, supostamente por deferência à geração anterior algo como consagrados penalistas. Contudo, Ferri estava sendo sarcástico, pois, na verdade, clássicos, segundo ele, significavam os velhos, os antiquados, os ultrapassados professores de direito penal (SOUZA, Artur de Brito Gueiros e JAPIASSÚ, Carlos Eduardo Adriano: Curso de direito penal 1 parte geral. 2.ed. Rio de Janeiro. Forense, 2015, p. 36).

  2. FERRAJOLI, Luigi: Direito e Razão. 3.ed. São Paulo, Revista dos Tribunais, 2010, p. 43.

  3. na época do Iluminismo, não foi como tema de um saber positivo que o homem passou a ser oposto à barbárie dos suplícios, mas antes como limite do direito: fronteira legítima do poder de punir. Não se trata daquilo que deve ser atingido para o modificar, mas daquilo que deve ser deixado intacto para o respeitar. Noli me tangere. O homem que os reformadores opuseram ao despotismo do cadafalso é também um homem-medida: não das coisas, mas do poder (FOUCAULT, Michel: Vigiar e Punir. Lisboa. Edições 70. 2017, p. 86-7).

  4. FONSECA, Márcio Alves da: Michel Foucault e o Direito. 2.ed. São Paulo, Saraiva, 2014, p. 120-127.

  5. são, em grande parte, como se sabe, fruto da tradição jurídica do iluminismo e do liberalismo. Os filões que se misturam nessa tradição, misturada no século XVIII, são muitos e distintos: as doutrinas dos direitos naturais, as teorias contratualistas, a filosofia racionalista e empirista, as doutrinas políticas da separação dos poderes e da supremacia da lei, o positivismo jurídico e as concepções utilitaristas do direito e da pena. Esses diversos filões, contudo, além de não serem filosoficamente homogêneos entre si, tampouco são univocamente liberais. Por exemplo, as filosofias utilitaristas podem fundamentar, como nas doutrinas da Escola Clássica italiana de BECCARIA e de CARRARA, uma concepção da pena como mínima aflição necessária, mas também podem informar tecnologias penais autoritárias e antigarantistas, como as da prevenção especial ou as da defesa social, orientadas ao objetivo da máxima segurança possível. E o positivismo jurídico, se por um lado está na base do princípio da estrita legalidade, por outro também permite modelos penais absolutistas, caracterizados pela ausência de limites ao poder do soberano, ao mesmo tempo em que se mostra, em todo caso, completamente neutro a respeito de todas as demais garantias penais e processuais. Sem falar das concepções contratualistas, que têm servido igualmente de base à teoria hobbesiana do Estado absoluto, à lockeana dos direitos naturais e do Estado de Direito, à fichteana do Estado pedagogo e à rousseauniana da democracia direita (FERRAJOLI, Luigi: Direito e Razão. 3.ed. São Paulo, Revista dos Tribunais, 2010, p. 37-8). FOUCAULT, ao reconhecer a influência das referidas escolas do pesamento moderno na formação do novo direito penal em meados do Século XVIII, por outro lado, assevera que a guinada promovida na era moderna sobre as maneiras jurídicas de punir o humano tem como fundamento a inauguração de uma sociedade disciplinar, voltada para, como as novas formas de disciplina do corpo e da mente, criar uma nova humanidade, mais dócil que o modelo anteriormente verificado: Gostaria que nos situássemos, agora, em fins do século XVIII e início do século XIX, no momento em que se constitui o que tentarei analisar () sob o nome de sociedade disciplinar. A formação da sociedade disciplinar pode ser caracterizada pelo aparecimento, no final do século XVIII e no início do século XIX, de dois fatos contraditórios, ou melhor, de um fato que tem dois aspectos, dois lados aparentemente contraditórios: a reforma, a reorganização do sistema judiciário e penal nos diversos países da Europa e do mundo. Esta transformação não apresenta as mesmas formas, a mesma amplitude, a mesma cronologia nos diversos países. () Em que consistem essas transformações dos sistemas penais? Por um lado em uma reelaboração teórica da lei penal. Ela pode ser encontrada em Beccaria, Bentham, Brissot e em legisladores que são os autores do 1o e do 2o Código Penal francês da época revolucionária. O princípio fundamental do sistema teórico da lei penal definido por esses autores é que o crime, no sentido penal do termo, ou, mais tecnicamente, a infração não deve ser mais nenhuma relação com a falta moral ou religiosa. A falta é uma infração à lei natural, à lei religiosa, à lei moral. O crime ou a infração penal é a ruptura com a lei, lei civil explicitamente estabelecida no interior de uma sociedade pelo lado legislativo do poder político, uma lei e que essa lei tenha sido efetivamente formulada. Antes da lei existir, não pode haver infração. Segundo esses teóricos, só podem sofrer penalidades as condutas efetivamente definidas como repreensíveis pela lei. Um segundo princípio é que estas leis positivas formuladas pelo poder político no interior de uma sociedade, para serem boas leis, não devem retranscrever em termos positivos a lei natural, a lei religiosa ou a lei moral. Uma lei penal deve simplesmente representar o que é útil para a sociedade. A lei define como repreensível o que é nocivo à sociedade, definindo assim negativamente o que é útil. O terceiro princípio se deduz naturalmente dos dois primeiros: uma definição clara e simples do crime. () Há, por conseguinte, também, uma nova definição do criminoso. O criminoso é aquele que danifica, perturba a sociedade. O criminoso é um inimigo social. () A lei penal deve ser feita de tal maneira que o dano causado pelo indivíduo à sociedade seja apagado; se isso não for possível, é preciso que o dano não possa maus ser recomeçado pelo indivíduo em questão ou por outro. A lei penal deve reparar o mal ou impedir que males semelhantes possam ser cometidos contra o corpo social. () O último ponto capital que a teoria coloca em questão ainda mais fortemente do que Beccaria é que, para assegurar o controle dos indivíduos que não é mais reação penal ao que eles fizeram, mas controle do seu comportamento no momento em que ele se esboça a instituição penal não pode mais estar inteiramente em mãos de um poder autônomo: o poder judiciário. Chega-se assim, à contestação da grande separação atribuída à Montesquieu, ou pelo menos formulada por ele, entre poder judiciário, poder executivo e poder legislativo. O controle dos indivíduos, essa espécie de controle penal punitivo dos indivíduos ao nível de suas virtualidades não pode ser efetuado pela própria justiça, mas por uma série de outros poderes laterais, à margem da justiça, como a polícia e toda uma rede de instituições de vigilância e de correção (...). É assim que, no século XIX, desenvolve-se, em torno da instituição judiciária e para lhe permitir assumir a função de controle dos indivíduos ao nível de sua periculosidade, uma gigantesca série de instituições que vão enquadrar os indivíduos ao longo de sua existência (). Toda essa rede de um poder que não é o judiciário deve desempenhar uma das funções que a justiça se atribui neste momento: função não mais de punir as infrações dos indivíduos, mas de corrigir suas virtualidades. Entramos assim na idade do que eu chamaria de ortopedia social. Trata-se de uma forma de de poder, de um tipo de sociedade que classifico de sociedade disciplinar por oposição às sociedades propriamente penais que conhecíamos anteriormente. É a idade do controle social (FOUCAULT, Michel: A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro. Nau Editora, 2008, p. 79-86). E: Embora procurassem teorizar sobre problemas dogmáticos de seus respectivos países os Clássicos não tiveram pretensões da universalidade teórica () (SOUZA, Artur de Brito Gueiros e JAPIASSÚ, Carlos Eduardo Adriano: Curso de direito penal 1 parte geral. 2.ed. Rio de Janeiro. Forense, 2015, p. 36).

  6. FERRAJOLI, Luigi: Direito e Razão. 3.ed. São Paulo, Revista dos Tribunais, 2010, p. 37. Também é interessante verificar os apontamentos realizados por SOUZA, Artur de Brito Gueiros e JAPIASSÚ, Carlos Eduardo Adriano em relação as bases traçadas por BECCARIA em sua obra Dos delitos e das penas, segundo as quais: Da sua obra podem ser extraídos, dentre outros, os seguintes postulados: (1) a soberania provém do contrato social; (2) as penas devem ser moderadas e restritas ao mínimo necessário para a convivência humana; (3) o princípio da legalidade dos crimes e das penas deve vigorar na sociedade; (4) a pena de morte, as torturas como meio de prova e os atos judiciais inquisitoriais devem ser abolidos; (5) o magistrado deve-se limitar à fiel aplicação da lei penal; as normas penais devem ser claras de a justiça penal deve ser pública; (6) os castigos devem servir à emenda do condenado e à dissuasão de seus patrícios do caminho do crime (SOUZA, Artur de Brito Gueiros e JAPIASSÚ, Carlos Eduardo Adriano: Curso de direito penal 1 parte geral. 2.ed. Rio de Janeiro. Forense, 2015, p. 32).

  7. FERRAJOLI, Luigi: Direito e Razão. 3.ed. São Paulo, Revista dos Tribunais, 2010, p. 38.

  8. Ciência do direito penal é a disciplina que tem por objeto o estudo do ordenamento jurídico penal positivo (leia-se: das normas penais). A ciência do direito penal tem como função clássica conhecer, interpretar, sistematizar e criticar o direito positivo, contemplando as normas já não do ponto de vista de sua estrutura formal externa, senão especialmente do seu conteúdo e fins que pretendem alcançar, porque o ordenamento jurídico penal objetivo da Ciência do direito penal regula fenômenos sociais e persegue fins determinados (GOMES, Luiz Flávio: Direito penal, vol. 1 Introdução e princípios fundamentais. São Paulo, 2007, p. 79).

  9. Glorificam-se os grandes reformadores- Beccaria, Servan, Dupaty, Lacretelle, Duport, Pastoret, Target, Bergasse, os redatores dos Cahiers e os Constituintes por terem imposto esta brandura ao aparelho judiciário e aos teóricos clássicos que, ainda no século XVIII, a rejeitavam com rigor argumentativo. No entanto, devemos inscrever esta reforma num processo que os historiadores descobriram recentemente graças ao estudo dos arquivos judiciais: o abrandamento da penalidade durante o século XVIII ou, de forma mais rigorosa, o duplo movimento pelo qual, durante esse período, os crimes parecem perder violência, enquanto as punições, reciprocamente, perdem parte de sua intensidade, mas a custo de múltiplas intervenções (FOUCAULT, Michel: Vigiar e Punir. Lisboa. Edições 70. 2017, p. 87-8).

  10. FONSECA, Márcio Alves da: Michel Foucault e o Direito. 2.ed. São Paulo, Saraiva, 2014, p. 163-168.

  11. Da justiça criminal, na maior parte do 2o milênio (mais precisamente até o Iluminismo, que eclodiu na segunda metade do século XVIII), encarregou-se a igreja, os senhores feudais (prepotentes e arbitrários) e os governos absolutos ou monárquicos (autoritários). Foi um direito penal extremamente cruel, desumano e não garantista, a pesar do Great Charter de João Sem Terra, de 15 de junho de 1215 (que somente valeu, quando valeu, para os nobres; dela pouco ou muito pouco usufruíram os plebeus). () O Iluminismo surgiu como reação contra o Direito e a Jurisprudência do Ancien Régime vingentes até finais do século XVIII; contra um sistema cujas leis correspondiam à única ideia da prevenção geral ou da intimidação e tomava o acusado como mero exemplo para os demais. Leis vagas e atrozes, que eram aplicadas sob a égide de um processo penal arbitrário, secreto, inquisitorial, baseado na confissão e no tormento. É lógico, por isso, que a história reservada aos ilustrados e reformistas uma missão essencial e valiosa: a crítica do antigo regime assim como o estabelecimento das bases filosóficas e políticas dos anos vindouros (GOMES, Luiz Flávio: Direito penal, vol. 1 Introdução e princípios fundamentais. São Paulo, 2007, p. 85).

  12. Acabamos de verificar que as leis da educação devem relacionar-se com o princípio de cada governo, assim como as que o legislador promulga para toda a sociedade. Esta relação das leis com este princípio fortalece todos os fundamentos do governo e esse princípio recebe daí, por sua vez, uma nova força. É assim que, nos movimentos físicos, a ação é sempre seguida de uma reação (MONTESQUIEU, Charles Louis de Secondat, baron de la: Do Espírito das Leis. 2.ed. São Paulo. Abril Cultural, 1979, p. 61).

  13. Em pouco tempo, aquela obra (Dos delitos e das penas) provocou entusiasmo por toda a Europa e suas propostas influenciaram tantos juristas quanto monarcas e legisladores. À título ilustrativo, Cataria da Rússia, nas suas Ilustrações (1767) à Comissão para a reforma das leis penais quase que transcreve as páginas de Beccaria; Leopoldo da Toscana promulga a reforma de 1786, que dele acolhe as propostas mais radicais, a principiar pela pena capital; no Reino das Duas Sicílias, foi imposta a motivação das sentenças, conservava a tortura, mas esta depressa foi abolida pela ordenança militar de 1789; Giuseppe II de Áustria (1787) abole a pena de morte (exceto para crimes militares); Frederico, o Grande, com as Allgemeines Landrecht extingue a tortura (1794) e a Revolução Francesa, na Declaração dos Direitos do Homem, em vários de seus dispositivos incorpora literalmente ideias de Beccaria (SOUZA, Artur de Brito Gueiros e JAPIASSÚ, Carlos Eduardo Adriano: Curso de direito penal 1 parte geral. 2.ed. Rio de Janeiro. Forense, 2015, p. 31).

  14. GOMES, Luiz Flávio: Direito penal, vol. 1 Introdução e princípios fundamentais. São Paulo, 2007, p. 50.

  15. Em vez de vingar, a justiça criminal deve punir. Esta necessidade de um castigo sem suplício começa por se formular como um grito no coração ou da natureza indignada: no pior dos assassinos, pelo menos uma coisa deve ser respeitada enquanto se pune: a sua humanidade (FOUCAULT, Michel: Vigiar e Punir. Lisboa. Edições 70, 2017, p. 86). E: Mas, se analisarmos de perto as razões pelas quais toda a existência, vemos que se trata, no fundo, não somente de apropriação, de extração da quantidade máxima de tempo, mas, também, de controlar, de formar, de valorizar, segundo um determinado sistema, o corpo do indivíduo. Se fizéssemos uma história do controle social do corpo, poderíamos mostrar que, até o século XVIII inclusive, o corpo dos indivíduos é essencialmente a superfície de inscrição de suplícios e de penas; o corpo era feito para ser supliciado e castigado. Já nas instâncias de controle a partir do século XIX, o corpo adquire uma significação totalmente; ele não é mais o que deve ser supliciado, mas o que deve ser formado, reformado, corrigido, o que deve adquirir aptidões, receber um certo número de qualidades, qualificar-se como corpo capaz de trabalhar. Vemos aparecer assim claramente a segunda função. A primeira função dos sequestros era de extrair o tempo, fazendo com que o tempo dos homens, o tempo de sua vida, se transformasse em tempo de trabalho. Sua segunda função consiste em fazer com que o corpo dos homens se torne força de trabalho. A função de transformação do corpo em força de trabalho responde à função de transformação do tempo em tempo de trabalho (FOUCAULT, Michel: A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro. Nau Editora, 2008, p. 119).

  16. a partir dessa análise se pode explicar o aparecimento da prisão, instituição que já lhes disse ser bastante enigmática. De que maneira a partir de uma teoria do Direito Penal, como a de Beccaria, pode-se chegar a algo tão paradoxal como a prisão? Como uma instituição tão paradoxal e tão cheia de inconvenientes pode impor-se a um Direito Penal que era, em aparência, de uma rigorosa racionalidade? Como um projeto de prisão corretiva pode impor-se à racionalidade legalista de Beccaria? Parece-me que se a prisão se impôs foi porque era, no fundo, apenas a forma concentrada, exemplar, simbólica de todas essas instituições de sequestro criadas no século XIX. De fato, a prisão é isomorfa a tudo isso (FOUCAULT, Michel: A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro. Nau Editora, 2008, p. 122).

  17. Em verdade, como leciona GOMES, Luiz Flávio, pôde-se notar um incremento no número de crimes no período imediatamente posterior à reforma do direito penal, embora o referido autor vincule tal fato ao desenvolvimento da sociedade industrial no período e a marginalização humana verificada nos nascentes centros urbanos: Seria absurdo culpar a Escola Clássica ou o liberalismo político pelo qual ela propugnava de certos problemas, como o do aumento da criminalidade, que ela não soube atenuar, mas de qualquer modo não foi ela que o criou. O aumento da criminalidade, como é sabido, deveu-se antes de tudo, ao auge do maquinismo industrial e à inadequação das estruturas socioeconômicas para tornar possível a passagem do Estado liberal ao Estado social intervencionista que a nova situação reclamava (GOMES, Direito penal, vol. 1 Introdução e princípios fundamentais. São Paulo, 2007, p. 95).

  18. FOUCAULT, Michel: Vigiar e Punir. Lisboa. Edições 70, 2017, p. 86-7.

  19. Tal história seguirá, portanto, princípios diversos daqueles em que se fundam as duas perspectivas mencionadas. No lugar de centrar o estudo das formas de punição sobre os efeitos de caráter repressivo a elas inerentes, procurará encontrar os efeitos positivos que as mesmas são capazes de produzir. No lugar de analisar os métodos de punição como consequências de regras de direito ou indicadores de processos mais gerais de poder. Em vez de considerar separadamente a história do direito penal e a história das ciências humanas, procurará perceber sua coincidência a partir da referência comum a uma tecnologia de poder. Por fim, no lugar de procurar determinar se o objeto central da justiça penal é o corpo ou a alma daquele que se pune, procurará verificar em que medida a entrada da alma no domínio de intervenção da prática judiciária se deve precisamente a um novo tipo investimento das relações de poder sobre o corpo. Na história da justiça penal escrita por Foucault trata-se, portanto, de estudar as transformações nos modos de punição a partir de um investimento político sobre o corpo, em outros termos, a partir de uma tecnologia política do corpo (FONSECA, Márcio Alves da: Michel Foucault e o Direito. 2.ed. São Paulo, Saraiva, 2014, p. 123).

  20. GOMES, Direito penal, vol. 1 Introdução e princípios fundamentais. São Paulo, 2007, p. 49.

  21. Nessa história da alma moderna em julgamento, a imagem do direito como legalidade ocupa um lugar central no momento do estudo das duas formas de punição anteriores à prisão: o suplício e as penas proporcionais aos crimes da reforma humanista. O direito que aparece nesse estudo está separado da norma, daí sua identificação primeira com a forma crua da lei. Nas formas de punição dos suplícios e das penas proporcionais, não se identifica ainda aquilo que será entendido como norma e, portanto, a imagem do direito presente em tais análises remete fundamentalmente às estruturas da legalidade. Daí estaremos diante daquela primeira imagem do direito como lei, independentemente da normalização (FONSECA, Márcio Alves da: Michel Foucault e o Direito. 2.ed. São Paulo, Saraiva, 2014, p. 123).

  22. dado o nexo que une a estrita jurisdicionalidade à estrita legalidade, na medida em que o modelo penal garantista não se satisfaz com o plano legislativo () (FERRAJOLI, Luigi: Direito e Razão. 3.ed. São Paulo, Revista dos Tribunais, 2010, p. 43).

  23. FERRAJOLI, Luigi: Direito e Razão. 3.ed. São Paulo, Revista dos Tribunais, 2010, p. 39.

  24. FERRAJOLI, Luigi: Direito e Razão. 3.ed. São Paulo, Revista dos Tribunais, 2010, p. 39.

  25. FERRAJOLI, Luigi: Direito e Razão. 3.ed. São Paulo, Revista dos Tribunais, 2010, p. 40.

  26. FERRAJOLI, Luigi: Direito e Razão. 3.ed. São Paulo, Revista dos Tribunais, 2010, p. 40.

  27. Para que estes mesmos princípios sejam satisfeito é necessário () que não só a lei, senão também o juízo penal, careçam de caráter constitutivo e tenham caráter recognotivo das normas e cognotivo dos fatos por ela regulados. Em consequência, como quer a primeira de tais concepções, o pressuposto da pena deve ser a comissão de um fato univocamente descrito e indicado como delito não apenas pela lei mas também pela hipótese da acusação, de modo que resulte suscetível de prova ou de confrontação judicial, segundo a fórmula nulla poena et nulla culpa sine judicio. Ao mesmo tempo, é preciso também que as hipóteses acusatórias, como exige a segunda condição, sejam concretamente submetidas a verificações e expostas à refutação, de modo que resultem apenas convalidadas se forem apoiadas em provas e contraprovas, segundo a máxima nullum judicium sine probatione. Compreende-se que o requisito da estrita jurisdicionalidade pressupõe logicamente o da estrita legalidade, na falta do que se dá a jurisdicionariedade simples ou em sentido amplo: na realidade, para satisfazê-lo é preciso, como escreveu Aristóteles, que leis bem dispostas determinem por si tudo quanto seja possível, deixando aos que julgam o menos possível, () mas é forçoso que aos juízes se lhes deixe a decisão sobre se algo ocorreu ou não e se é ou não , pois não é possível que isso preveja o legislador (FERRAJOLI, Luigi: Direito e Razão. 3.ed. São Paulo, Revista dos Tribunais, 2010, p. 40-1).

  28. FERRAJOLI, Luigi: Direito e Razão. 3.ed. São Paulo, Revista dos Tribunais, 2010, p. 41.

  29. O modo de como a verdade material é produzida, em princípio, sabe-se, em todo caso, que é de acordo com: a formação das hipóteses, a coleta de dados, a observação, a sistematização, o controle e a crítica. Mas como se produz a verdade forense? A formalização da busca da verdade garante a proteção da pessoa em relação à qual se procura a verdade. Ela não garante que aquilo que é encontrado tenha qualquer relação com a realidade. Depois que os princípios jurídico-processuais, os quais protegem as pessoas afetadas diante da lesão desmedida por meio da compreensão cênica, são elaborados, deve-se perguntar em razão de quais pressupostos e disposições a compreensão cênica ao lado da realidade pode obter êxito. O primeiro pressuposto de uma compreensão efetiva é o de que o processo penal é, e continua sendo, expressão de nossa cultura (empírica) e de nossa racionalidade. () não pode desviar-se do esquema cultural da sociedade em que ele vigora. () As regras desta metodologia são chamadas, entre os juristas, leis do pensamento (Denkgesetze) e uma infringência a elas tem as consequências de uma violação ao direito. As leis do pensamento asseguram a compreensão cênica e a vinculam à nossa racionalidade cultural; porém elas não levam e ainda não permitem levar o processo ao êxito (HASSEMER, Winfried: Introdução aos fundamentos do direito penal. 2.ed. Porto Alegre, Sérgio Fabris Editor, 2005, p. 214-5).

  30. FERRAJOLI, Luigi: Direito e Razão. 3.ed. São Paulo, Revista dos Tribunais, 2010, p. 42.

  31. FONSECA, Márcio Alves da: Michel Foucault e o Direito. 2.ed. São Paulo, Saraiva, 2014, p. 94-120.

  32. FERRAJOLI, Luigi: Direito e Razão. 3.ed. São Paulo, Revista dos Tribunais, 2010, p. 43.

  33. FONSECA, Márcio Alves da: Michel Foucault e o Direito. 2.ed. São Paulo, Saraiva, 2014, p. 124. Cf, também, FRANCO, Ricardo César: Breve apanhado sobre a produção da prova em processo penal, in Sujeito no Direito. Curitiba. Editora CRV, 2012.

  34. FERRAJOLI, Luigi: Direito e Razão. 3.ed. São Paulo, Revista dos Tribunais, 2010, p. 43.

  35. FERRAJOLI, Luigi: Direito e Razão. 3.ed. São Paulo, Revista dos Tribunais, 2010, p. 43.

Sobre o autor
Ricardo Cesar Franco

Defensor Público do Estado de São Paulo, nível IV, que atua perante o E. Tribunal de Justiça Militar de São Paulo. Pós-graduado em Direito Processual Coletivo. Mestre em Filosofia do Direito pela PUC/SP. Professor de Filosofia do Direito Penal e de Direito Processual Penal.

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