A NECESSIDADE DE CONTEMPLAR PRINCÍPIOS: A NÃO OBSERVÂNCIA DE INDUZ A QUEBRA DO CONTRATO SOCIAL

28/01/2022 às 12:17
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A NECESSIDADE DE CONTEMPLAR PRINCÍPIOS: A NÃO OBSERVÂNCIA DE INDUZ A QUEBRA DO CONTRATO SOCIAL

Muitas propostas de modificação ao texto constitucional têm sido promovidas ultimamente, indo de encontro à intenção do legislador originário, que preocupou-se em inserir no corpo da Constituição Federal de 1988, princípios que se encontram implícitos (p. ex. os que estão no rol dos direitos sociais) e que estão sendo inobservados, justamente porque não se apresentam de forma expressa e direta. Com a visibilidade dos princípios não restam dúvidas interpretativas, o que proporciona ao aplicador do direito maior segurança e ao trabalhador a concretização da vontade do constituinte originário.

No campo do combate às desigualdades sociais, especificamente no que concerne à atuação da previdência social, temos que no seu núcleo substancial, se insere a reposição de renda daqueles que perderam a capacidade laborativa (aposentadoria, invalidez, doença) ou que dependiam economicamente do ex-segurado (pensão por morte e ausência). No entanto, o princípio-mor da reposição de renda, vem sendo mitigado sistematicamente.

Não se cuida de interferir na adoção da escolha das políticas governamentais, no entanto, devemos lembrar que os compromissos políticos que são frutos da árvore plantada pelo contrato social formado em 1988, por ocasião da edição da Constituição Federal de 1988, devem alcançar a maioria da população e não apenas servir a interessantes de uma classe dominante. As leis devem ser dirigidas a todos, pois têm natureza de abstratividade e não voltadas a uma minoria. Decisões políticas devem ouvir, na medida do possível e sustentável, os anseios do povo, garantindo dessa forma, a ordem institucional.

O cenário hodierno brasileiro na seara das decisões políticas está a reclamar um rigor hermenêutico, vez que de forma costumeira, tem-se buscado, sem esforço interpretativo, averiguar normas constitucionais de forma restritiva sem buscar o sentido teleológico da Carta Republicana de 1988, maculando assim, mesmo que de forma indireta, direitos fundamentais e sociais, com respaldo no positivismo restrito em primeira análise.

A necessidade da inserção dos princípios urge a partir da premissa de que princípio é o alvorecer da existência, é o começo do todo, servindo de raiz, de base para decisões. O conjunto de princípios (que não devem ser analisados isoladamente) induz à própria ideia do sistema, e quando bem empregados, trazem justiça social.

Princípios devem ser sentidos como parte indissolúvel do todo político. São como o cérebro da estrutura, que após o mecanismo de sinapse, passam a atuar coordenando todo o organismo, pensando na solução de problemas, relevantemente na área social. Nenhum corpo vivo se mantém sem seu centro nevrálgico. Neste contexto, princípios são as diretrizes agudas e conexas do organismo organizacional e operacional. Conjuntamente analisados e tomados, diagnosticam doenças e curam-nas, expurgando patologias cancerosas que em função diametralmente oposta, destroem o sistema, colocando em risco a própria existência do Estado Democrático de Direito, aniquilando assim a justiça social. 

Princípios devem ter um diálogo permanente entre si, emprestando-se mutuamente. Governantes e seus assessores, em matéria de direitos fundamentais e sociais, devem ter sensibilidade e conhecimento principiológico, que deve ser a base do sistema constitucional republicano e democrático. Devem ser cônscios de que é o cérebro quem comanda a constituição corporal (apesar de muitos acharem que é o próprio umbigo!). É o pensamento que coordena a razão. E esse pensamento deve ser do homem probo, íntegro, justo,honesto, virtuoso, tal como Platão se referia em seu discurso socrático A Politeia.

A cognição do sistema como um todo, parte do pensamento empírico lockeano, ou seja, a origem das ideias no sentido a partir da demanda experimental. Adotamos a concepção de que é necessário sentir o sistema, sua razão de sua existência. Sem essa concepção, tudo não passa de meros atos sem conteúdo finalístico, como de fato temos experimentado. A lucidez deve ser determinante para os atos políticos. O grande poeta russo Maiakovski nos adverte em prosa que: cada um ao nascer, traz sua dose de amor, mas os empregos, o dinheiro, tudo isso, nos ressaca o solo do coração. (Vladimir Maiakovski, Comumente é Assim).

Transparecer princípios assume feição importante na medida em que atos políticos podem ser atacados via direta, sem complexos questionamentos. Os direitos constitucionais que se encontram insculpidos no nos artigos 5º e 6º da Magna Carta de 1988, não têm sido cumpridos no que tange ao caráter teleológico.

Ocorre que os princípios que ali vêm elencados são tentáculos da justiça social protetora da dignidade da pessoa humana e por assim ser, devem ser reverenciados e acompanhados de ações políticas concretas que visam ao atendimento do fim social. No entanto, têm sido limitados, mitigados e infringidos. Exemplos gritantes, dentre outros, estão na reforma trabalhista, na reforma da previdência, na inserção do limite de gastos.

A diretriz de justiça social da nossa Carta Maior não tem sido observada na medida em que o positivismo isolado e sem conteúdo interpretativo sistemático tem servido como escusa para o ataque à direitos fundamentais e sociais.

Não se pode olvidar que a Constituição Federal de 1988 tem ideologias desenvolvimentistas no campo social que devem ser respeitadas. A Carta Maior é direcionada povo, e ao povo devem ser dirigidos seus comandos. O corpo ideológico da Constituição Federal traz um plexo de direitos a serem observados, sem o qual, há completa inversão da ordem política e social.

O olhar da Constituição Federal traz expressa a ideologia do Bem-estar Social, posicionando-se inclusive, de forma expressa e taxativa, sobre a erradicação da pobreza e a promoção do desenvolvimento da nação. A Magna Carta não pode ser vista exclusivamente sob a ótica neoliberal, como tem sido proclamado e o parlamento atuado. O papel do Estado nas políticas sociais numa posição ativa, não pode seguir descumprindo as diretrizes traçadas pela ordem constitucional instalada em 1988, fruto da Assembleia Nacional Constituinte.

Analisando meritoriamente a questão, a especialista em saúde pública, em planejamento da saúde e doutora em economia, a Professora Laura Soares, se posiciona no sentido de que as reformas sociais devem ser projetadas não apenas de forma emergencial (como vem sendo feito), mas, sobretudo, para atingir toda a sociedade numa perspectiva de longo prazo. Para ela, que acredita no desenvolvimento econômico com base na igualdade distributiva de renda:

Para os países onde não existia um Estado de Bem-Estar Social constituído, as políticas de ajuste vieram mais pelo lado econômico abertura comercial, deslocalização de indústrias e atividades e desemprego do que pelo lado da distribuição de aparelhos de política social. Uma vez que estes não existiam, dependendo da intensidade do ajuste, vários países foram obrigados a fazer programas sociais de caráter emergencial, focalizados, contando com a solidariedade comunitária. Em todos os casos, porém, essas políticas foram manifestamente insuficientes para diminuir a desigualdade social e a pobreza preexistentes e, sobretudo, agravadas pelo próprio ajuste.

Nos casos em que já existiam políticas sociais universais (Previdência Social, Saúde, Educação Básica), o desmonte dessas políticas agravou consideravelmente as condições sociais, já de per si precárias, em particular no caso dos países da periferia capitalista.

[...] mesmo reconhecendo as gritantes evidências do fracasso social do ajuste, os organismos internacionais mascaram a impossibilidade de que, a persistir a mesma política econômica, esse fracasso possa ser revestido, impondo uma visão de que os problemas sociais hoje existentes são apenas um problema de administração do ajuste, culpabilizando, mais uma vez, os Estados Nacionais de serem incompetentes na gestão econômica e social. É nessa perspectiva que se situam as recomendações recorrentes da necessidade de reformas, baixo o argumento de que elas ou ainda não foram realizadas ou foram mal implementadas nos países latino-americanos[1]. (Os grifos são originais).

Não é demais afirmar que matéria de direitos fundamentais e sociais não comporta retrocessos sob nenhuma hipótese e argumentação. Sob a ótica constitucional, as políticas públicas sociais devem ser implementadas para resguardar direitos humanos, de forma a atingir o seu fim maior, que é, como dito, a busca de justiça social.

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Princípios devem conversar entre si, de forma a se alcançar justiça social, sempre atendendo ao princípio maior que rege toda a Administração Pública, qualquer que seja sua área de atuação: o interesse público primário, que é a razão de existência do Estado Democrático de Direito, que numa tradução simples, é o governo atuando pelo povo e para o povo de forma a alcançar o ideal de justiça social. Nesta visão social, são postulados, cânones, dogmas fundamentais que devem ser seguidos pelos governantes em prol dos governados e não de uma classe minoritária. São portanto, a viga mestra que conduz o Estado.

É de Miguel Reale a máxima de que princípios são verdades fundantes. E como tal, inauguram uma ordem jurídica, que somente com o rompimento podem deixar de ser observados e aplicados. No seu preâmbulo a Constituição Federal de 1988, ao dispor sobre uma nova ordem jurídica, traz ínsitos princípios a serem adotados, de forma a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais.

Os direitos fundamentais e sociais têm posição elevada no corpo constitucional. Dentre os mesmos, se insere o direito à previdência social, que determina ao governante - aquele que guia as ações políticas do Estado, a incumbência de atuar no sentido de que seja garantida existência digna para todos os indivíduos. E no território afeto à seguridade social, essa existência digna supõe a capacidade de reposição de renda. Essas premissas não podem ser tomadas como simples ilações, como romantismo dos poetas. Como já acentuado, são comandos normativos e como tal, exigem respeito ilimitado à sua observância e concretização para a construção de uma sociedade livre, democrática, soberana, justa e igualitária.

A quebra do Contrato Social

Em 1988, através da Assembleia Nacional Constituinte, o Brasil inaugura um novo panorama social, com a edição da Constituição Federal de 1988, após rompimento com o sistema ditatorial instaurado em 1964 com o golpe militar. Com a finalidade de elaborar uma Constituição Federal de cunho democrático, a ANC teve um papel decisório na formalização e estruturação de um novo contrato social com a sociedade brasileira, que passou a direcionar o poder central na manutenção da ordem social então instaurada. Os compromissos políticos então jurados, frutos do contrato social, devem ser direcionados ao bem-estar coletivo e não ao atendimento da elite dominante.

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Neste contexto, as reformas estruturantes da Constituição Federal devem ser promovidas com estrita observância ao pacto original, devendo qualquer normatização posterior atender aos anseios do povo, os titulares da contratualidade firmada com os governantes, de forma que se garanta a ordem institucional e política vigente.

Em linhas gerais, o contrato social é o cerne da democracia, na medida em que, o povo no almejo da positivação das leis, em substituição ao estado natural das coisas, elege seus governantes, reconhecendo o poder de autoridade, para com eles firmar um pacto de governabilidade e realmente represente os anseios do povo, garantindo a igualdade entre todos os governados.

Rousseau, analisando a soma de forças para vencer a resistência e preservar a harmonia, ou seja, possibilitar que a sociedade defenda e proteja o coletivo, o que somente pode ser resolvido com o contrato social, assim destacou:

A natureza do ato determina de tal sorte as cláusulas do contrato, que a menor modificação as tornaria vãs e nulas; de modo que, não tendo sido talvez nunca em forma anunciadas, são por toda a parte as mesmas, por toda a parte admitidas tacitamente e reconhecidas, até que, violado o pacto social, cada um torne a entrar em seus primitivos direitos e retome a liberdade individual, perdendo a liberdade de convenção, à qual sacrificou a primeira.

[...]

Digo, portanto, que, não sendo a soberania mais que o exercício da vontade geral, não pode nunca alienar-se; e o soberano, que é unicamente um ser coletivo, só pó si mesmo se pode representar. É dado transmitir o poder, não a vontade[2]. (Grifei).

A par das ilações rousseaunianas, que destaca a liberdade natural (individualismo) a favor da liberdade civil (coletivismo), verifica-se, hodiernamente a quebra sistemática e incisiva do pacto social, o que tem levado à inconfiabilidade nas instituições públicas e a instabilidade das políticas públicas, notadamente na seara social. Com fulcro na premissa, urge a necessidade de se retomar o campo da ordem social, onde a autoridade do governante deve atuar para a promoção de justiça social de forma igualitária e solidária.

O Contrato Social celebrado na CF/88 deve ser retomado como o pacto entre os indivíduos e o governo, onde a autoridade deste é reconhecida para servir ao povo, não a uma minoria determinada. O pacto social, no Estado Democrático de Direito é firmado através do voto popular, isto quer dizer que, qualquer governo que não seja estabelecido através da vontade popular, não é fruto de um contrato social, o que o torna ilegítimo e suas ações devem ser tomadas como arbitrárias e teratológicas.

Sem o contrato social, a ordem normativa imposta ao alvedrio do povo, traz como consequência que o regime político assim instaurado não pode ser estabelecido. Ao reverso, são os elementos frutos do contrato social que devem ser observados pelo governante para a condução das políticas públicas, de acordo com o pactuado com a sociedade que lhe deu poderes para a condução dos processos.

Seguindo a linha filosófica de Rousseau, pelo contrato social somado à figura da representatividade legislativa, temos que é o povo o agente responsável pelo processo de elaboração das leis, nisso consistindo a liberdade de dar-lhes cumprimento. O pacto legítimo, que é decorrente de um governo legítimo, legitima as políticas públicas e a proposição de reformas legislativas. É a soberania do povo, a vontade coletiva, a condição primária para o exercício da democracia, que ao contrário de reprimir, liberta. E é neste sentido que hoje verificamos a instauração de um Poder Absolutista no Brasil, onde a vontade popular cede lugar para interesses escusos do neoliberalismo. E a submissão do povo, sem vontade, caracteriza-se como escravidão, na medida em que seus direitos são violados a serviço do capital.

Não é, portanto, falacioso afirmar que estamos vivenciando hoje no cenário político e jurídico brasileiro, o rompimento com o contrato social celebrado em 1988 através da Constituição Federal, com a quebra de garantias constitucionais, a derrocada de direitos fundamentais e a inobservância irrestrita e ilimitada de direitos sociais. A onda neoliberal, que é direcionada unicamente ao lucro, tende a intensificar o tratamento de seres humanos como coisas, e não sujeitos de direitos. Isto porque, o sistema capitalista financeiro e hegemônico, que é marcado pela especulação financeira e pela bolsa de valores, tem engendrado ações para privatização dos sistemas de proteção à saúde, previdência e assistência, com apoio do governo neoliberal instalado no Brasil.

As chamadas reformas modernizadoras estão a impor pesados sacrifícios à classe trabalhadora e se constituem em desafio para entidades que atuam em sua proteção, como os sindicatos, uma vez que as reformas nos termos como foram e estão sendo propostas, têm o objetivo de liquidar conquistas, como o ingresso no serviço público através de concurso público, terceirização de serviços e mitigação de direitos trabalhistas (estabilidade no emprego, férias, 13º salário, etc.), o que proporciona, sem sombra de dúvidas, a multiplicação de empregos informais, que via de consequência, subtraem as políticas de amparo social.

Nesta linha elucubrativa, temos que a política neoliberal, foi e continua sendo a responsável pela virtual minimização do papel do estado na persecução de políticas públicas que possam garantir o sistema securitário com base no princípio do bem-estar social, haja vista a transferência maciça de recursos públicos para o setor privado da economia, privilegiando o capital estrangeiro. A submissão de governos ao capitalismo financeiro, que resulta na transferência para centros de decisões situados no plano externo, ou seja, do poder decisório sobre políticas econômicas, nelas compreendidas as de natureza sociais, está a deliberar sobre a edição desenfreada de normas que significam verdadeiros retrocessos sociais, em oposição às conquistas angariadas pelos trabalhadores.

Repúdios veementes merecem as formas como estão sendo trabalhados ajustes fiscais, com a consequente redução do tamanho do Estado, abertura comercial ilimitada, privatizações de estatais que geram lucros, fim das restrições ao capital internacional, abertura financeira, desregulamentação das leis trabalhistas e desestruturação dos sistemas implantados com vistas à proteção social. Essas ações promovem diminuição da inclusão social e em contramão, o avanço das desigualdades sociais e de práticas discriminatórias (racismo, xenofobia, homofobia e misoginia).

Somente políticas voltadas ao bem-estar coletivo como valor supremo, são capazes de garantir um sistema justo, igualitário e solidário e um verdadeiro Estado Democrático de Direito, bem como observar o contrato social celebrado com o povo.

  1. SOARES, Laura Tavares. Os Custos Sociais do Ajuste Neoliberal na América Latina. São Paulo: Cortez, 2002. 2ª ed. p. 21 e 31.

  2. ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do Contrato Social. São Paulo: Martin Claret, 2000. p. 31 e 39.

Sobre a autora
Rosana Colen Moreno

Rosana Cólen Moreno. Procuradora do Estado de Alagoas. Membro da Confederação Latino-americana de trabalhadores estatais (CLATE). Especialista em previdência pública pela Damásio Educacional e em direitos humanos pela PUC/RS (em finalização). Autora do livro Manual de Gestão dos Regimes Próprios de Previdência Social: foco na prevenção e combate à corrupção, publicado pela LTr. Coordenadora da Comissão Internacional Avaliadora instituída pelo Conselho Latino-americano de Ciências Sociais (CLACSO-UNESCO) e denominada “Desigualdades, Exclusão e Crises de Sustentabilidade dos Sistemas Previdenciários da América Latina e Caribe. Educadora, Professora, Instrutora, Palestrante, Consultora. Participante do programa de doutorado em Direito Constitucional pela Universidad de Buenos Aires – UBA. Especialista em Regimes Próprios de Previdência (Damásio Educacional). Autora do livro: Manual de Gestão dos Regimes Próprios de Previdência Social: foco na prevenção e combate à corrupção.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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