A utopia da paridade de armas frente ao atual sistema processual penal

31/01/2022 às 04:10

Resumo:

- O artigo analisa a aplicabilidade da paridade de armas no Sistema Processual Penal, comparando com outros ordenamentos jurídicos e exemplificando o ideal a ser atingido.
- Destaca a importância do princípio da paridade de armas para garantir a igualdade de direitos e deveres entre as partes, ressaltando sua relação com o princípio do contraditório.
- Aponta a violação da paridade de armas na investigação criminal brasileira como prejudicial ao direito à ampla defesa, destacando a falta de equilíbrio na produção de provas entre acusação e defesa.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

RESUMO: O presente artigo possui como objetivo efetuar uma análise sobre a aplicabilidade da paridade de armas no atual Sistema Processual Penal, com a finalidade de explanar as suas hipóteses de cabimento no ordenamento jurídico brasileiro enquanto garantia, bem como a hipótese de se tratar de mera utopia, um ideal ainda não alcançado. Serão efetuados comparativos com outros ordenamentos jurídicos e exemplos do ideal a ser atingido, considerando-se ainda, as diferenças entre paridade de armas e isonomia.

ABSTRACT: This article aims to analyze the applicability of parity of arms in the current Criminal Procedure System, with one of explaining how its hypotheses of fitting in the Brazilian legal system as a guarantee, as well as the hypothesis that it is a mere utopia , an ideal not yet achieved. Comparisons will be made with other legal systems and examples of the ideal to be achieved, also considering the differences between arms parity and isonomy.

Palavras-chave Direito Processual Penal. Princípio da Paridade de Armas. Devido Processo Legal. Isonomia.

INTRODUÇÃO

O presente artigo possui o condão de contribuir para o estudo e a formação de conhecimentos jurídicos, que auxiliarão de forma indelével o entendimento da paridade de armas no processo penal, bem como efetuar o devido esclarecimento entre as nuances entre paridade de armas e o príncipio da isonomia.

O método a ser empregado neste artigo será indutivo, pois partirá de uma situação geral já existente para uma específica, que é a pesquisa ora formulada. E a metodologia a ser utilizada será exclusivamente a consulta bibliográfica com uma ampla revisão literária para embasar a proposta maior deste estudo: a verificação se há ou não a aplicabilidade do Princípio da Paridade de armas no Processo Penal, notadamente, sobre o contexto do inquérito policial, da ação penal e da fase de recurso.

As considerações obtidas com a realização da pesquisa e as análises das referências utilizadas na elaboração do presente artigo permitirá afirmar se há ou não a aplicabilidade na esfera penal da paridade de armas.

Por fim, serão apresentadas as Considerações Finais obtidas com a realização dessa pesquisa e as respectivas referências bibliográficas utilizadas em tal.

DA DEFINIÇÃO DE PARIDADE DE ARMAS, PRINCÍPIOS RELACIONADOS BEM COMO A SUA IMPORTÂNCIA NO ORDENAMENTO JURÍDICO

Se entende de forma genérica o princípio da paridade de armas, a garantia de que as partes devem ver assegurada a igualdade de direitos e deveres, de ônus, sanções processuais, garantias e possibilidade de defesa dos seus argumentos, conforme previsto no artigo 7°, do Código de Processo Civil1. É utilizado no processo penal por meio da aplicação do artigo 3°, do CPP, que dispõem que a lei processual penal admite interpretação extensiva e aplicação analógica, bem como o suplemento dos princípios gerais de direito. Trata-se de princípio decorrente do princípio do contraditório.

A jurisprudência, a doutrina e a lei por vezes utilizam a analogia para se referir ao princípio da igualdade no processo difundindo a expressão paridade de armas ou igualdade de armas necessárias para o bom combate ou litigância processual entre adversários, como uma forma de explicar a necessidade de que as partes, do início ao fim, tenham as mesmas condições, possibilidades e oportunidades para que possam obter uma decisão justa do órgão judicial. Tais jargões jurídicos, atualmente não se encontram mais em total sintonia com o princípio da consensualidade como escopo do processo.

Segundo Rosmar Rodrigues Alencar:

(...) Nós não possuímos uma legislação defensiva, de maneira que o Estado (que deve se reger pela lei) age discriscionariamente e a particular, que não tem legislação permanente, não pode, rigorosamente investigar porque inexiste um princípio legal, a não ser uma legislação com base no Princípio dos maiores (prevalencia da liberdade), mas não possuímos nenhum amparo legal.

E destaca ainda que:

É plenamente importante, se definir o papel do Juiz, do Miniatério Público e o papel da defesa. Ressalte-se que o Inquérito policial e as demais investigaçoes são discricionárias, de modo que esssa atividade discricionária do inquérito ;e incompatível com a acão administrativa, e considerando que o Ministério Público bem como Delegados de Polícia, são órgãoa que se vinculam a Administração, atuar discricionariamente em sede de investigação parece totalmente indevido (...) então, nós temos uma pobreza muito grande (..)

Em 16 de mar;co de 2021 o Conselho Pleno da Ordem dos Advogados do Brasil aprovou a proposição de um anteprojeto de lei com 24 propostas que alteram parte da legislação processual penal.

Com o objetivo de garantir maior amplitude ao direito de defesa e às prerrogativas da advocacia, em uma tentativa de fazer vigorar a tão discutida e distante paridade de armas no cenário processual. Embora a proposição não se restrinja à advocacia criminal, é sobre esse aspecto que se verifica um pequeno avanço na discussão.

Importante consignar, de plano, que a paridade de armas não é novidade no ordenamento jurídico, tampouco se cuida de criação brasileira. Em realidade, funciona como conditio sine qua non para um processo verdadeiramente democrático, na realidade a discussão do presente artigo é o de justamente efetuar uma crítica sobre o fato de que um tema de indubitável importancia, ainda possua ttão parca aplicabilidade, fazendo com que este pareça apenas uma mera utopia que até a atualidade não fomos capazes de atingir em sua plenitude.

Carlos Alberto Carbone destaca que:

(...) por este principio se quiere que el Estado litigante esté em pie de igualdad, pero que a más de abarcar la igualdad de armas respecto a las mismas posibilidades de contradecir, ofrecer prueba, recurrir, etcétera, supone también contemplar la igualdad de recursos estructurales y materiales.

Nas palavras de Eugenio Pacelli:

(...) o princípio do contraditório exige a garantia de participação em simétrica paridade. Ele diz ainda que o contraditório, além de garantir o direito à informação de qualquer fato ou alegação contrária ao interesse das partes e o direito à reação a ambos também garante que a oportunidade da resposta possa se realizar na mesma intensidade e extensão.

Sendo assim, extrai-se dos comentários de Pacelli que o princípio da paridade de armas está intrinsecamente ligado ao princípio do contraditório. É certo que a inobservância do princípio do contraditório é causa de nulidade absoluta no processo. Logo, se o princípio da paridade de armas for violado é possível sustentar que também haverá causa de nulidade absoluta em razão da inevitável violação ao princípio do contraditório, já que estão interligados.

Para ilustrar, imagine-se uma situação em que após o Ministério Público dar um parecer sobre uma ação penal o juiz não abre prazo para que a defesa do acusado se manifeste. Nesse caso, ambos os princípios foram violados. O princípio da paridade de armas foi violado porque o Ministério Público teve a oportunidade de apresentar um parecer e a defesa não teve a garantia de apresentar seu ponto de vista sobre o tema. E o princípio do contraditório não foi observado porque não houve direito de resposta do réu para uma alegação feita pela acusação.

O princípio da ampla defesa está previsto no artigo 5°, LV, da CRFB/1988 e traz a obrigatoriedade do Estado em garantir ao acusado a possibilidade de se defender de todas as acusações proferidas contra ele. O princípio abrange a autodefesa e a defesa técnica.

Quando se fala em defesa técnica, nota-se que o réu possui a prerrogativa de ser representado por advogado constituído, advogado dativo nomeado ou defensor público. O réu necessita de um profissional habilitado para realizar sua defesa técnica. Ademais, é necessário que esse profissional efetivamente cumpra seu papel como defensor. Não se admite uma defesa técnica apenas formal.

Pela vertente da autodefesa, o acusado possui direito ao interrogatório e a estar presente no momento da audiência. Esse princípio é relativizado quando a vítima solicita que seu depoimento não seja feito na frente do réu. Contudo, para que o direito de ambas as partes fosse garantido, seria recomendável o depoimento da vítima fosse feito por videoconferência.

Essa hipótese já foi prevista no Código de Processo Penal, que preceitua a possibilidade de inquirição da vítima ou da testemunha por videoconferência e, somente na impossibilidade dessa forma, determina-se a retirada do réu, prosseguindo na inquirição, com a presença do seu defensor. O CPP traz também a possibilidade de interrogatório do réu feito por videoconferência.

Todavia, essa não costumava ser a solução adotada pela maioria dos Tribunais. Alguns doutrinadores entendem que os depoimentos prestados sem a presença do acusado violam o princípio da ampla defesa e o da paridade de armas.

Certo é, que o defensor do réu continuará na sala durante os depoimentos. Entretanto, não estar presente neste momento dificulta a autodefesa do réu, já que ele não saberá o que já foi dito em audiência no momento de seu interrogatório, que ocorrerá logo em seguida. Só o acusado pode perceber se algum detalhe falado pela vítima não se trata da pura verdade, para, assim dar sua versão no momento oportuno, ou, até mesmo, alertar seu defensor para que faça as perguntas certas.

Essa situação, ao violar a autodefesa, também gera reflexos negativos nos princípios do contraditório e da paridade de armas a que teria direito o réu.

O princípio da igualdade tem por base o artigo 5°, da CRFB/1.988, segundo o qual todos são iguais perante a lei.

Ada Pellegrini Grinover9 assim afirmava:

(...) a igualdade tem uma dimensão estática e outra dinâmica. Na dimensão estática, o axioma de que todos são iguais perante a Lei parece configurar (...) mera ficção jurídica, no sentido de que é evidente que todos são desiguais, mas essa patente desigualdade é recusada pelo legislador. Na dimensão dinâmica, porém, verifica-se caber ao Estado suprir as desigualdades para transformá-las em igualdade real

Esse princípio também está extremamente ligado ao princípio da paridade de armas. Na verdade, em alguns pontos eles até se confundem. Alguns doutrinadores brasileiros preferem tratá-los conjuntamente. O princípio da paridade de armas depende muito da igualdade dada às partes durante a tramitação do processo.

No processo penal, o juiz tem o papel de sempre observar a garantia do princípio. Se as partes não receberem tratamento isonômico, o processo estará eivado de vício. Há muitas críticas no que diz respeito à possibilidade de produção probatória de ofício pelo juiz.

Aqui, entram em conflitos os princípios da igualdade, atrelado ao princípio da paridade de armas, e o princípio da busca pela verdade real. Apesar das críticas, existe a possibilidade de que o juiz ordene, de ofício, a produção de provas consideradas urgentes e relevantes, mesmo antes de iniciada a ação penal, conforme dispõe o artigo 156, do CPP. Ocorre que a função de solicitar provas urgentes antes de iniciada a ação penal deveria ser da acusação.

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Nas palavras de Eugenio Pacelli:

(...) com efeito, a igualdade das partes somente será alcançada quando não se permitir mais ao juiz uma atuação substitutiva da função ministerial, não só no que respeita ao oferecimento da acusação, mas também no que se refere ao ônus processual de demonstrar a veracidade das imputações feitas ao acusado.

Percebe-se uma crítica a uma situação recorrente no Judiciário Brasileiro, na qual tanto o juiz quanto o representante do Ministério Público demonstram interesse na condenação do réu.

Em muitos casos é possível identificar a ausência de imparcialidade do juiz, mas como isso costuma ocorrer de maneira sutil, e também em decorrência do clamor social por justiça, não há reconhecimento de nulidade nesses casos. Pacelli1 conclui dizendo que não se quer nenhum juiz inerte, mas apenas o fim do juiz investigador e acusador, de tempos, aliás, já superados.

Não há como se falar em violação ao princípio do contraditório, da ampla defesa ou da igualdade, todos intrinsicamente ligados ao princípio da paridade de armas, conforme demonstrado, sem falar em violação do devido processo legal. Sendo assim, sustenta-se que a violação ao princípio da paridade de armas no processo penal deve ser considerada causa de nulidade do processo ou dos atos processuais relacionados, em razão da violação indireta à garantia do devido processo legal.

DA INEXISTÊNCIA DE AMPLA DEFESA NO PROCESSO EM RAZÃO DA AUSÊ̂NCIA DE PARIDADE DE ARMAS NA INVESTIGAÇÃO CRIMINAL

Na investigação criminal brasileira, pelo Código de Processo Penal, vigora o sistema inquisitivo. Segundo o delegado de polícia civil Eujecio Coutrim Lima Filho, em seu artigo intitulado Natureza inquisitivo-constitucional do Inquérito Policial: o objetivo dessa fase é buscar elementos de justa causa para embasar a ação penal.. Contudo, seria extremamente mais justo e até mesmo mais natural que o inquérito policial tivesse como objetivo buscar a verdade dos fatos.

Quando a polícia judiciária investiga buscando elementos probatórios que justifiquem a propositura de ação penal, na maioria das vezes, deixa de visualizar fatos e provas importantes que beneficiariam o acusado, não por terem o objetivo de prejudicá-lo, mas por estarem com o pensamento voltado para a condenação.

Inclua-se a isso os casos em que os advogados tentam produzir o mínimo de provas, mas não são ouvidos, durante o inquérito policial.

Dessa forma, é indubitável que a violação ao princípio da paridade de armas gera prejuízos no direito do acusado à ampla defesa, uma vez que este, algumas vezes, acaba sendo injustamente processado, apenas pela falta de produção de algumas provas na fase investigatória.

Apesar de não haver ato ilícito na instauração de ação penal contra inocente, na prática, a pessoa acusada sofre inúmeros prejuízos e desgastes, considerando o enorme preconceito que recebe da sociedade, podendo vir a ter problemas na família, no trabalho e no convívio social. Até que se prove que o acusado é inocente, os prejuízos já foram causados.

Ademais, após constatada a inocência, a notícia não é difundida da mesma forma que a notícia da instauração da ação penal, de forma que inexiste restauração da imagem do acusado perante a sociedade.

No sistema processual penal brasileiro, a defesa não tem a possibilidade de buscar a verdade pelos mesmos meios de prova de que a acusação dispõe. A acusação, em investigação preliminar, busca provas por meio de interceptação telefônica, oitiva de testemunhas com possibilidade de condução coercitiva, quebra de sigilo fiscal e/ou bancário, busca e apreensão de documentos e objetos, entre outros. Enquanto isso, o advogado de defesa ou o defensor público fica de mãos atadas, apenas aguardando a instauração da ação penal para ter a oportunidade de exercer a defesa a partir deste momento, em que é viabilizado o contraditório.

É diferente do que ocorre em outros países, como nos Estados Unidos da América e na Itália, nos quais existe a possibilidade de investigação criminal defensiva que deve ser promovida por advogados e defensores públicos em favor do acusado. Nesses países, de acordo com Guilherme Kuhn:

A investigação criminal defensiva é uma realidade, ou melhor: trata-se de um imperativo, de uma obrigação do advogado do suspeito, consistente na necessidade de empreender esforços para garantir a melhor defesa possível ou ao menos para evitar uma defesa negligente e/ou omissa.

Se a acusação tivesse mais oportunidades de buscar meios de prova, possivelmente haveria uma diminuição drástica na quantidade de instauração de ações penais contra acusados que posteriormente se mostram inocentes, ou, até mesmo, de condenações injustas que frequentemente ocorrem.

Além de não ter tantas oportunidades quanto a acusação, existe uma espécie de costume de inércia por parte da defesa no país. Os advogados e defensores públicos não possuem o hábito da investigação criminal defensiva. Na fase de inquérito preliminar, os defensores e advogados costumam apenas zelar pela integridade física do acusado, mas não buscam provas que possam provar a inocência dos clientes. Isso é extremamente prejudicial não só para o acusado, mas também para a imagem do Poder Judiciário.

Somada à falta de atitude por parte da defesa, está a dificuldade prática de se modificar a cultura atual e implantar a investigação criminal defensiva no país. Alguns meios de prova poderiam ser obtidos com certa facilidade pela defesa. Mas em alguns casos, somente a autoridade policial ou judicial consegue ter acesso aos meios de prova, como, por exemplo, quebra de sigilo bancário e fiscal, interceptação telefônica, busca e apreensão em determinados locais, etc.

Não se pretende defender no presente artigo que o acesso a tais meios de prova deva ser liberado aos advogados e defensores públicos, uma vez que isso traria transtornos à ordem pública e a vida privada dos demais jurisdicionados. No entanto, para que houvesse paridade de armas na investigação criminal, deveria haver, no mínimo, uma participação ativa da defesa nesta fase, possibilitando a sugestão de produção de provas, uma vez que a polícia judiciária deveria estar em busca da verdade dos fatos e não em busca de uma justa causa para a instauração da ação penal.

Diante do exposto, mostram-se claros os prejuízos trazidos pela violação ao princípio da paridade de armas, ainda que seja no momento da investigação preliminar, gerando, consequentemente, violação aos princípios da ampla defesa, do contraditório e, por vezes, até da dignidade da pessoa humana.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Considerando-se a parca paridade de armas no Sistema Processual Penal entre advogados e demais autoridades, há apenas uma forna de se encerrar tal artigo (ainda que haja muito que se discutir sobre o tema, que embora antigo, reside entre as sombras do judiciário).

Atualmente, até a Defensoria Pública se inclui entre os defensores ferrenhos da paridade de armas (uma utopia que parece inatingível em nosso Sistema Judiciário).

Não devia ser assim. Contudo, a competitividade entre o Ministério Público e a Defensoria Pública em ocasiões específicas é clara. Não se pode dizer, por óbvio, reduzir o cotidiano no qual as duas instituições se relacionam a uma animosidade eventual. A atuação conjunta de ambos proporciona bons frutos à sociedade e ao Estado Democrático de Direito. Mas, como acontece com todas as relações em que há muita proximidade, pode ocorrer um desejo mal disfarçado, uma disputa por uma supremacia que, na verdade, inexiste.

Inexiste pois, as duas instituições estão alocadas no mesmo capítulo do texto Constituição. O que demonstra, para dizer o mínimo, paridade e equivalência.

Inobstante isso, dezenas de ações diretas de inconstitucionalidade foram propostas pelo Procurador Geral da República em face das Leis Complementares que regem as Defensorias Estaduais com um fundamento principal: a possibilidade de requisição aos órgãos públicos desequilibra a relação processual, "notadamente na produção de provas, ao conferirem poderes exacerbados a apenas uma das partes, o que ofende o princípio da isonomia, do qual decorre o preceito da paridade de armas".

O STF, no julgamento da ADIn 230/RJ se pronunciou no sentido:

(...) de ser inconstitucional a requisição por defensores públicos a autoridade pública, a seus agentes e a entidade particular de certidões, exames, perícias, vistorias, diligências, processos, documentos, informações, esclarecimentos e providências, necessários ao exercício de suas atribuições: exacerbação das prerrogativas asseguradas aos demais advogados".1 O entendimento de que "advogado requer, quem requisita é quem exerce a função judicante ou a condição de advogado da sociedade, que é o papel do ministério Público, este, entretanto, com os limites legalmente estabelecidos" está expressamente consignado no acórdão da ADIn 230.

De acordo com a definição dada por de Plácido e Silva::

A requisição é a exigência legal ou a ordem emanada da autoridade para que se cumpra, para que se faça ou para que se preste o que é exigido, ordenado ou pedido"2. Sobre a acepção de autoridade, o vocábulo "designa a própria pessoa que tem em suas mãos a soma desses poderes ou exerce uma função pública, (...) assinala a competência funcional (...)

Com uma simples interpretação sistemática, fica claro que, na medida em que o concurso público é exigência para as duas carreiras, que têm suas atribuições delineadas na Constituição, amoldam-se como autoridades. Dessa forma, a ressalva feita pelo Supremo no julgamento da ADIn supra citada, é infundada.

A história do Direito autoriza a tese de que o ministério Público possui maior tradição do que a Defensoria Pública.

Ainda que existam múltiplas possibilidades para explicar como se originou o órgão ministerial, é plausível que a Instituição tenha surgido atrelada à individualização da função judicante, que transitou da figura exclusiva do soberano para ser conduzida por agentes especializados, os magistrados. Com essa separação e especialização do ofício, tornou-se imperiosa a fiscalização para tutelar os interesses do monarca ou, em alguns casos excepcionais, o próprio interesse social.

As Ordenações Afonsinas, de 1.447, faziam referência, no Título VIII do Livro I, a um agente cuja atividade funcional era basicamente a de assegurar o acesso a` justiça, dispondo sobre ele do seguinte modo: "veja, e procure bem todos os feitos da justiça, e das viúvas, e dos órfãos, e miseráveis pessoas que aa Nossa Corte vierem". Percebe-se aqui, fazendo uso de uma analogia com as atribuições atuais da Defensoria, que quem fazia as vezes de agente ministerial, nessa época, cumulava as funções de custus vulnerabilis também.

O mesmo aconteceu quando a lei 2.040/1871, conhecida como Lei do Ventre Livre, conferiu aos Promotores Públicos a função de velar pelo registro e proteção dos filhos libertos dos escravos.7

A Constituição Republicana de 1891 dispunha, na seção "Do Poder Judiciário", sobre a escolha do Procurador-Geral da República dentre Ministros do STF (art. 58, § 2º), sistema adotado até 1934, e, em seu art. 81, § 1º, conferia atribuição a tal agente para a propositura de revisão criminal em favor do réu. Outra vez, a adição de uma atribuição que, na atualidade é típica dos defensores e advogados.

Analisando a questão sob o prisma histórico, é como se a Defensoria Pública, corporificada na atuação e nas prerrogativas de seus membros, estivesse chegando agora e "quisesse sentar na janelinha". O próprio fenômeno das ondas de acesso à justiça é relativamente recente. Fato é que a historicidade recente da Defensoria Pública não é justificativa para o crescente esvaziamento de suas atribuições institucionais.

Trazendo alguns elementos do conceito de justiça formulado por Eduardo Bittar em sua obra Introdução ao Estudo do Direito:

(...) percebe-se que a contribuição histórica do parquet para a administração da justiça foi assimétrica e desproporcional, ante o acúmulo de funções sem muitos critérios definidos.

Considerando que ela permeia um dos objetivos da República e tomando como norte seus fundamentos, pode-se conceituar justiça como um fenômeno histórico-social e portanto, mutável. Histórico, porque além de uma perspectiva temporal, contextualiza-se com determinados modos de produção que se alteram periodicamente.

O nosso modo de produção atual é capitalista. O que organiza a exploração no modo de produção capitalista é o vínculo contratual, precipuamente. Essa relação de equivalência estabelece a forma e a subjetividade jurídica. As pessoas, dentro do capitalismo, comportam-se como se fossem todas iguais (perante a lei, para os fins do Direito). Presume-se ainda a liberdade, defendendo-se a propriedade privada. O capitalismo torna os desiguais iguais não com o advento da igualdade material, mas sim, no momento do contrato.

Comparando a Constituição brasileira com a portuguesa fica clara a opção ideológica. A Constituição do Brasil ficou distante dessa veia revolucionária que estava explícita na Constituição de Portugal.

Com efeito, enquanto aquela claramente apontava para a transformação do modo de produção do Estado português, esta - embora isso significasse um expressivo avanço - limitou-se a apontar para a transformação do modelo de Estado (Estado Democrático de Direito), restringindo-se, no plano econômico, a estabelecer as bases (núcleo político) de um Estado Social (Welfare State).

Em síntese, a CRFB/1988 não contém, ao contrário do que continha na sua origem, a portuguesa, uma função normativo-revolucionária; mesmo assim ela incorpora um conjunto de objetivos que devem pautar e marcar toda a ação política do Estado, em todos os seus ambientes - executivo, legislativo e judiciário.

Ou seja: o caráter compromissório do constitucionalismo vem expresso em sua opção finalística, a qual deve ser obtida pela persecução dos objetivos que indicam os fins da ação estatal, delimitando formal e substancialmente as decisões políticas. Além do mais, o estabelecimento de um conteúdo finalístico na Constituição de 1988 funciona como um critério da atividade hermenêutica de desvelamento do conteúdo constitucional, pelo qual todo e qualquer interprete deverá observar, navegando nas águas cristalinas da opção constituinte.

O advento do Estado Democrático de Direito, traz o "jurídico" como cerne precípuo do Estado, enfatizando sua natureza fundamental para o direito de acesso à Justiça, que "implica a garantia de uma proteção eficaz e temporalmente adequada.

Refletindo sobre as implicações de uma nova ordem social, Lenio Streck argumenta que uma Constituição nova exige novos modos de análise: no mínimo, uma nova teoria das fontes, uma nova teoria da norma, uma nova teoria hermenêutica.

Em 1988, o Brasil recebeu uma nova Constituição, rica em direitos fundamentais, com a agregação de um vasto catálogo de direitos sociais. A pergunta que se colocava era: de que modo podemos olhar o novo com os olhos do novo?

Afinal, nossa tradição jurídica estava assentada em um modelo liberal-individualista (que opera com os conceitos oriundos das experiências da formação do direito privado germânico e francês), em que não havia lugar para direitos de segunda e terceira dimensões. Do mesmo modo, não havia uma teoria constitucional adequada às demandas de um novo paradigma jurídico.

Realizadas as considerações teóricas e históricas pertinentes, passa-se ao texto constitucional propriamente dito

Segundo o artigo 127 da CRFB/1988:

(...) o Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado". A seu turno, o artigo 133 dispõe: "o advogado é indispensável à administração da justiça". Por fim, logo em seguida o artigo 134 assevera que "a Defensoria Pública é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado.

Tem-se aqui, uma situação interessante. Tanto Ministério Público quanto Defensoria Público são considerados essenciais a função jurisdicional do Estado, expressão sinônima de Poder Judiciário. Logo, poder-se-ia, distingui-los somente em atribuições específicas e não no seu núcleo, enquanto função essencial.

Em que pese a Suprema Corte alegue ser inadmissível o caráter de advogados maiores aos Defensores Públicos, a verdade é que se trata de uma espécie qualificada, sui generis, de advogado. Advogado público, remunerado pelo Estado (salaried staff model direto), que inclusive está dispensado de mandato na sua atuação.

Com isso, revelam-se três situações possíveis:

Admite-se a especialização advocatícia da Defensoria Pública, autorizando o exercício da requisição para a realização das incumbências a seu cargo, nos termos do texto constitucional, emendando-se a constituição, se preciso, para que conste de modo expresso essa possibilidade.

Amplia-se a possibilidade de requisição aos advogados particulares, com emenda à constituição para que não reste dúvidas. A prerrogativa de requisição seria expressa e alcançaria todas as classes: promotores, defensores e advogados. Em que pese os advogados privados não se adequarem ao conceito de autoridade e não estarem investidos de cargo público, essa hipótese me parece mais adequada, uma vez que colocaria todos os atores processuais em posições equidistantes.

Outro cenário. Veda-se a requisição aos advogados e defensores, colocando em risco a duração razoável do processo, o contraditório e a ampla defesa efetivos e, permite-se que apenas o ministério Público possa fazer uso dessa diligência.

E para o princípio da paridade de armas, faz-se vista grossa, afinal, nada como fingir que algo existe, e assim vivemos sob a Utopia da Paridade de Armas, distante de se tornar realidade prática

REFERÊNCIAS BIBLIGRÁFICAS

ALENCAR, Rosmar Rodrigues. Disponícel em <https://youtu.be/t44Mm4uJT-w> acesso em 08 de dezembro de 2021;

BRASI, Código de Processo Civil, disponível em <https://www.google.com.br/url?sa=t&rct=j&q=&esrc=s&source=web&cd=&cad=rja&uact=8&ved=2ahUKEwiM65mkiuL0AhW-ELkGHXQPD74QFnoECCAQAQ&url=http%3A%2F%2Fwww.planalto.gov.br%2Fccivil_03%2F_ato2015-2018%2F2015%2Flei%2Fl13105.htm&usg=AOvVaw0_roKvtqKwen0jPEO7UfbN>, acesso em 12 de dezembro de 2021;

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CARBONE, Carlos. Principios y problemas del proceso penal adversarial. Santa Fé: Rubinzal-Culzoni, 2019. p. 49-50;

FERREIRA, 2007, p.448 apud CANOTILHO, 2003, p.499. FERREIRA, Francisco Martins. Acesso à justiça e processo judicial na perspectiva do estado democrático de direito e à luz dos princípios constitucionais do processo.

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LIMA FILHO, Eujecio Coutrim. Natureza inquisitivo-constitucional do Inquérito Policial. Disponível em: <https://canalcienciascriminais.com.br/natureza-inquerito-policial/> Acesso em: 15 de dezembro de 2021.

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Sobre a autora
Renata Ramos Toigo

Advogada (OAB/AL 16.465). Especialista em Direito Penal e Processo Penal.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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