1. INTRODUÇÃO
"Todo contato deixa uma marca; somente o fracasso humano em encontrá-la, estudá-la e compreendê-la pode diminuir o seu valor"1. Quer pela entonação instigante, quer pela pertinência temática, nada é mais apropriado do que as palavras de Paul Leland Kirk, saudoso cientista forense estadunidense do século passado, para inaugurar esta breve explanação sobre a Papiloscopia à luz do Direito.
Estruturada sob os postulados da perenidade, da imutabilidade e da variabilidade2, a Papiloscopia é definida como a ciência que se dedica ao estudo das impressões papilares - que são as marcas deixadas em determinadas superfícies pela ponta dos dedos, palma das mãos ou planta dos pés - com o propósito de promover a identificação humana.
Apesar de a importância da Papiloscopia ainda escapar à compreensão de grande parte da população, o que talvez possa ser explicado pelo fato de o sigilo das investigações criminais atingir em larga medida a atividade papiloscópica, episódios recentes repuseram em destaque esse antigo território da ciência.
Conforme veiculado pela imprensa, profissionais de Papiloscopia encontraram as impressões digitais do ex-ministro Geddel Vieira Lima em malas com vultosas quantias de dinheiro3. Pouco tempo depois, foram localizados fragmentos papilares em cápsulas de munição deixadas no local em que se assassinou a vereadora carioca Marielle Franco4. Mais recentemente, restou identificado, também pelo uso da técnica papiloscópica, Lázaro Barbosa Sousa, apontado como autor de pelo menos trinta e oito crimes, incluindo o homicídio de quatro pessoas de uma mesma família no Distrito Federal5, que terminou morto após confronto com a polícia.
Noticiados à exaustão, esses acontecimentos foram acompanhados de ligeiras explicações acerca da mecânica papiloscópica. Sob essa perspectiva, aproveita-se para descortinar ainda mais a referida ciência, mediante rápido passeio por preceitos legais e normativos que se coligam com a Papiloscopia, a fim de permitir uma melhor compreensão do contexto jurídico em que se encontra inserida.
2. A PAPILOSCOPIA E O DIREITO
2.1. ÂMBITO CÍVEL
No âmbito cível, a Papiloscopia possibilita identificar as pessoas e atribuir a cada uma delas seus respectivos direitos e obrigações. Não é demais lembrar que a particularização dos indivíduos, a um só tempo, prestigia a dignidade da pessoa humana e permite efetivar toda gama de tutelas da cidadania.
A par disso, tem-se que a identificação civil é comprovada pela carteira de identidade, carteira de trabalho, carteira profissional, passaporte, carteira de identificação funcional (vide Lei nº 6.206/75) ou outro documento público apto a promover a identificação, consoante teor do artigo 2º, da Lei nº 12.037/09.
Dentre esses documentos, cabe realçar que a carteira de identidade é expedida com base no processo papiloscópico, de acordo com o disposto no artigo 8º, da Lei nº 7.116/83, regulamentada pelo Decreto nº 10.977/22, que estabeleceu o Cadastro de Pessoa Física (CPF) como único número de identificação. Contudo, ainda há documentos de identificação emitidos com escora em métodos pouco confiáveis (e.g., carteira de trabalho, modelo antigo), o que pode abalar a segurança da identificação.
Buscando aprimorar o sistema de identificação no país, a Lei nº 9.454/97 instituiu o Registro de Identidade Civil, pelo qual cada cidadão brasileiro, com base na técnica papiloscópica, será identificado por número único em suas relações com os órgãos governamentais e com as entidades privadas. A implementação do Registro de Identidade Civil, porém, está suspensa por tempo indeterminado.
Posteriormente, a Lei nº 13.444/17 estabeleceu outro mecanismo de identificação, intitulado de Identificação Civil Nacional, a ser alicerçado na base de dados biométricos da Justiça Eleitoral, na base de dados do Sistema Nacional de Informações de Registro Civil e da Central Nacional de Informações do Registro Civil, bem como na base de dados dos institutos de identificação. Referido sistema criou o Documento Nacional de Identidade, entretanto, também não há prazo para que seja implementado.
Cumpre distinguir que o Registro de Identidade Civil – RIC é voltado para a identificação em sua essência, partindo de bases estaduais, atreladas no mais das vezes aos institutos de identificação, ao passo que a Identificação Civil Nacional – ICN consiste em sistema de gerenciamento e consulta de dados, com base centralizada no Tribunal Superior Eleitoral.
Outra novidade acerca do sistema de identificação no Brasil está prevista no Provimento nº 66/18 do Conselho Nacional de Justiça - CNJ, que se coaduna com a Lei nº 13.484/17 e permite que as serventias de Registro Civil das Pessoas Naturais, mediante convênio com os órgãos públicos, prestem serviços relacionados à identificação humana, mediante a emissão de carteira de identidade, cadastro de pessoa física, passaporte, dentre outros documentos.
A propósito, a Papiloscopia também escuda a Lei nº 6.015/73, que regra os registros públicos, a qual, em seu artigo 37, § 1º, assevera que, se o usuário da serventia não puder assinar, haverá a coleta de sua impressão digital. Depois, em seu artigo 70, item 10, estabelece que será coletada a impressão digital do nubente que não souber assinar. Já em seu artigo 81, define que, em determinadas hipóteses, sendo o morto desconhecido, será feita a coleta de sua impressão digital. Mais adiante, em seu artigo 221, § 1º, impõe que o contrato será registrado com a impressão digital, se o interessado for analfabeto ou não puder assinar.
É mister destacar, ainda, que o Provimento CNJ nº 88/19, pensado para o combate à lavagem de dinheiro, estabelece em seu artigo 9º, § 1º, III, "h", que os usuários de cartórios extrajudiciais, bem como seus representantes e procuradores, serão identificados por biometria, especialmente impressões digitais e fotografia.
A preocupação com a segurança da identificação é igualmente observada em outros textos legais. A título de exemplo, o Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei nº 8.069/90, em seu artigo 10, impõe aos hospitais a identificação de todo recém-nascido pelo registro de sua impressão plantar e digital, bem como da impressão digital da genitora. Já a Lei nº 13.445/17, que trata da migração, em seu artigo 19, exige a identificação biométrica dos imigrantes.
Repise-se que o método papiloscópico proporciona segurança extrema aos cidadãos e ao Estado, diferindo-se de métodos que se assentam em bases precárias e facilitam o uso indevido da qualificação alheia.
Sob esse enfoque, cabe sublinhar que o uso da identificação biométrica, arrimada na ciência e na tecnologia6, tem se difundido com ligeireza na sociedade.
Dentro dessa ordem de ideias, o Decreto nº 63.299/18, do Estado de São Paulo, instituiu o Sistema Estadual de Coleta e Identificação Biométrica Eletrônica, destinado à identificação pessoal de usuários de serviços públicos de órgãos e entidades da Administração Pública, necessária à expedição de documentos e instrução de processos e de procedimentos administrativos. A coleta das impressões digitais é realizada na emissão da carteira de identidade e da carteira nacional de habilitação.
De passagem, embora não se ignore o teor do artigo 4º, III, "a", da Lei nº 13.709/18, que consubstancia a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais, impende anotar que o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor tem manifestado enorme preocupação com a proteção dos dados privados dos cidadãos7, atento ao disposto no artigo 6º, III, da Lei nº 12.527/11, que regula o acesso à informação, até para que não ocorra no Brasil o que se observou na Índia, no tocante ao comércio clandestino de dados biométricos8.
Ressalte-se, também, que a identificação biométrica tem sido aplicada nas eleições, com o fim de impedir que um eleitor se faça passar por outro. Nesse particular, a Resolução nº 23.335/11 do Tribunal Superior Eleitoral dispõe sobre a identificação dos eleitores pelos dados biométricos.
No mais, não se pode olvidar que a identificação biométrica também tem sido exigida em prédios públicos e privados, até mesmo como condição para ingresso em suas dependências. Entretanto, o artigo 2º, § 2º, da Lei nº 5.553/68 preceitua tão somente que, quando for indispensável a apresentação de documento de identificação para a entrada em tais edificações, será admitida a anotação dos dados pessoais, desde que o documento seja devolvido ao identificado logo em seguida.
2.2. ÂMBITO CRIMINAL
No âmbito criminal, a Papiloscopia detém enorme vocação para o combate à impunidade, uma vez que permite desvendar crimes, sobretudo aqueles de autoria desconhecida. E mais, por emprestar absoluta segurança à identificação humana, inviabiliza o uso espúrio da qualificação alheia, bem como contribui para que sejam evitados lapsos por parte de agentes estatais, tais como prisões e solturas indevidas.
À similitude de outros ramos do Direito, também é possível recolher na área criminal normas que dialogam com a ciência papiloscópica.
Hospedado no topo da pirâmide jurídica, o artigo 5º, LVIII, da Constituição Federal, que determinou a superação da Súmula 568/STF, assegura que o civilmente identificado não será submetido à identificação criminal, exceto nos casos previstos em lei.
Regulamentando referido comando constitucional, a Lei nº 12.037/09, em seu artigo 3º, define que a identificação criminal, que inclui o processo papiloscópico, será efetuada quando: a um, o documento apresentado contiver rasura, indício de falsificação ou não bastar para que seja identificado o indiciado; a dois, o indiciado portar distintos documentos de identidade, com dados colidentes; a três, a identificação criminal for essencial às investigações; a quatro, constar de registros policiais o uso de diferentes qualificações; a cinco, o estado de conservação, a distância temporal ou local da expedição do documento obstar a identificação.
A mesma Lei nº 12.037/09, após alteração promovida pela Lei nº 13.964/19, passou a autorizar, em seu artigo 7º-C, a criação do Banco Nacional Multibiométrico e de Impressões Digitais, cujo objetivo é armazenar dados biométricos e impressões digitais para subsidiar, fundamentalmente, investigações criminais, sendo admitido, inclusive, coletar registros biométricos da íris, face e voz dos presos.
É de rigor salientar, também, que o artigo 313, parágrafo único, do Código de Processo Penal, com o fim de assegurar a aplicação da lei penal, admite a prisão preventiva quando houver dúvida sobre a identidade civil do indivíduo ou quando este não fornecer elementos suficientes para esclarecê-la, desde que se esteja diante de crime para o qual a lei comine pena privativa de liberdade.
Prosseguindo no bojo do Código de Processo Penal, calha aludir aos artigos 159 e 160, que disciplinam as perícias, incluídas as de natureza papiloscópica, que se prestam a identificar, coletar e analisar vestígios de crimes, sempre em consonância com as balizas científicas.
Já rumando para as linhas finais, não é sem propósito assinalar que, no Estado de São Paulo, consoante disposto no artigo 10, do Regimento Interno Padrão das Unidades Prisionais, instituído pela Resolução nº 144/10 da Secretaria da Administração Penitenciária - SAP, o preso será submetido à identificação papiloscópica tão logo ingresse no sistema prisional.
3. CONCLUSÃO
Tendo por eixo central as normas jurídicas vigentes, este artigo buscou organizar conhecimentos e ampliar perspectivas acerca da Papiloscopia, demonstrando que a referida ciência está providencialmente entranhada nos textos legais e normativos, por conferir maior segurança à sociedade e às relações jurídicas. Ninguém há de duvidar que a elevada frequência com que é evocada pelo ordenamento jurídico decorre da confiabilidade e da efetividade de seus métodos. Com isso, a Papiloscopia presta inestimável contributo ao sistema de Justiça, constituindo arma altamente eficaz no combate à impunidade.
NOTAS
1 Trecho, em livre tradução, extraído da obra Crime Investigation. Physical Evidence and the Police Laboratory. Interscience Publishers. New York, USA. 1953, p. 04.
2 Conforme o magistério de Álvaro Placeres de Araújo, "perenidade: é assim designada a existência dos desenhos digitais desde o sexto mês de vida fetal, até a putrefação cadavérica; imutabilidade: é a propriedade do desenho digital não mudar desde o sexto mês de vida intrauterina, até a putrefação cadavérica; variabilidade: os desenhos digitais variam de dedo para dedo e de pessoa para pessoa". (Manual de Dactiloscopia. São Paulo: Coletânea Acácio Nogueira, 1957, pp. 121-122).
3 O Globo. "Papiloscopia pega ex-ministro e desperta curiosidade sobre a ciência". Disponível em: <https://oglobo.globo.com/cultura/papiloscopia-pega-ex-ministro-desperta-curiosidade-sobre-ciencia-22223294>. Acesso em: 18 out. 2021.
4 R7. "Caso Marielle: polícia identifica fragmento de digital em cápsulas". Disponível em: <https://noticias.r7.com/rio-de-janeiro/caso-marielle-policia-identifica-fragmento-de-digital-em-capsulas-11042018>. Acesso em: 15 out. 2021.
5 Correio Braziliense. "Lázaro foi identificado como autor de assassinatos no DF em menos de 2 horas. Disponível em: <https://www.correiobraziliense.com.br/cidades-df/2021/06/4931970-lazaro-foi-identificado-como-autor-de-assassinatos-no-df-em-menos-de-2-horas.html>. Acesso em: 18 out. 2021.
6 Inova Unicamp. "Voltado para identificação biométrica, tecnologia testa a vivacidade de impressões digitais". Disponível em: <https://www.inova.unicamp.br/noticia/4017/>. Acesso em: 28 set. 2021.
7 Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor - IDEC. "Sistema biométrico paulista pode deixar dados de usuários vulneráveis". Disponível em: <https://idec.org.br/noticia/sistema-biometrico-paulista-pode-deixar-dados-de-usuarios-vulneraveis>. Acesso em: 21 set. 2021.
8 Jornal Público. "Base de dados biométricos da Índia está à venda na Internet". Disponível em: <https://www.publico.pt/2018/01/04/mundo/noticia/india-investiga-violacao-de-base-de-dados-de-identificacao-nacional-1798123>. Acesso em: 18 out. 2021.