O impacto das inovações tecnológicas disruptivas no serviço público

01/02/2022 às 10:53
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Nos últimos anos vivenciamos inovações tecnológicas que transformaram diversos setores, inclusive, impactando no formato dos serviços públicos, a exemplo, dos aplicativos de transporte utilizado, exigindo transformação e adaptação da estrutura estatal.

I - INTRODUÇÃO 

Uma questão doutrinária tormentosa é definir o que vem a ser serviços públicos visto que, ora se destaca a titularidade, ora se destaca o regime jurídico, ora se destaca a finalidade, no entanto, é comum encontrar conceitos reunindo esses pontos, de forma que o serviço público seria aquele prestado pelo Estado ou por seus delegados, sob o regime jurídico de direito público, com a finalidade de atender as necessidades essenciais ou trazer maior comodidade para a coletividade. 

A tentativa de estabelecer um conceito, de forma atemporal, para abarcar determinadas atividades se esbarra em um problema, qual seja, a oscilação da delimitação de serviços públicos a partir da ideologia estatal adotada, de forma que serviços públicos em uma ideologia liberal é diferente de sua concepção em viés de Estado Social. 

Nesse cenário sobreleva a ideia da definição de serviço público, não a partir de um conceito hermético e atemporal, mas tão somente a partir de uma opção política, de forma que será o Constituinte e/ou o Legislador que estabelecerá o que vem a ser serviço público, 

A par desse cenário é que o presente ensaio discutirá as inovações tecnológicas disruptivas, aqui entendidas como tecnologias inovadoras que vem transformando o mercado nos últimos anos, e seus impactos na prestação de serviços públicos, notadamente, nos serviços de transporte de passageiros.  

Para tanto, inicialmente pontuaremos sobre os aspectos relevantes que envolvem a prestação de serviços públicos e as formas de sua prestação, após apontaremos algumas das inovações tecnológicas disruptivas e, por fim, o impacto dessas tecnologias no serviço público utilizando, como parâmetro, o transporte de passageiros. 

A metodologia utilizada é explicativa e bibliográfica a partir de análise de artigos e doutrina, além da análise pontual da legislação e jurisprudência em torno do tema.  

II - SERVIÇOS PÚBLICOS 

Antes de tratar do serviço público, necessário estabelecer um paralelo com a forma de estado federativa adotada em nosso ordenamento jurídico com a particularidade de ser formada por três ordens jurídicas: nacional, regional e local. 

Integram, portanto, a nossa federação a União, os Estados-membros, o Distrito Federal e os Municípios nos termos do art. 1º e 18 da Constituição Federal e, como consequência, é reconhecida a autonomia política, administrativa e financeira desses entes políticos participantes da federação, observando que a autonomia administrativa significa organização da própria estrutura administrativa e dos respectivos serviços. 

Como conciliar a atuação dos entes políticos, de forma que a União não atue em matérias pertinentes aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios e vice-versa? 

A solução, essencial a toda Federação, é a repartição de competências pela qual haverá distribuição de atribuições, observando uma lógica na construção dessa engenharia constitucional que vem a ser a predominância de interesses visto que as matérias de interesse nacional ou que envolvam relações internacionais devem ser atribuídas à União, as matérias de interesse regional devem ser atribuídas aos Estados-membros, as matérias de interesse local devem ser atribuídas aos Municípios e, por sua vez, o Distrito Federal, como não comporta divisão em Municípios, acumula as atribuições inerentes aos Estados-membros e aos Municípios.  

Em nosso Texto Constitucional podemos visualizar a repartição de competências que envolvem a autonomia política (competências legislativas), as quais podem ser exclusivas (ex.: art. 22, VI e VII), privativas (ex.: parágrafo único do art. 22) ou concorrentes (ex.: art. 24), autonomia administrativa (competências administrativas), as quais podem ser exclusivas (ex.: art. 21) ou comuns (art. 24) e a autonomia financeira (competências tributárias), previstas no capítulo I do sistema tributário nacional a partir do art. 145 da CF. 

Nos interessa, mais de perto, a repartição de competências administrativas que poderá ser: exclusiva ou comum. A competência exclusiva ocorre quando somente um dos entes políticos poderá atuar sobre determinada matéria, a exemplo, da competência administrativa da União prevista no art. 21 da CF e, lado outro, a competência comum é quando todos os entes políticos devem atuar de forma conjunta e cooperativa, conforme se infere do art. 23 da CF.  

Outro fator importante é a diferença entre competências enumeradas e competências remanescentes ou residuais e, quanto ao ponto, reportamo-nos aos ensinamentos de MARTINS (2021, p. 563), vide: 

...toda Federação terá uma repartição de competências estabelecida pela Constituição. Nessa repartição, poderá ser dada maior autonomia para os entes federativos (Estados-membros), como ocorreu nos Estados Unidos da América, ou menor autonomia (como ocorreu no Brasil). Outrossim, o critério dessa repartição será estabelecido pelo Estado (que pode enumerar as competências da União, deixando aos Estados a competência residual – como, em regra, no Brasil –, ou, ao contrário, enumerar a competência dos Estados-membros, deixando ao Estado soberano a competência residual). 

  A explicação teórica pode ser visualizada a partir de um exemplo que vem a ser a do transporte público, competindo à União regulamentar e prestar, nos termos do art. XII, e, da CF, os serviços públicos de transporte interestadual e internacional de passageiros e, lado outro, compete aos Municípios, nos termos do art. 30, V, da CF, o transporte urbano de passageiros. Não há referência ao transporte intermunicipal, entre municípios, de forma que a regulamentação e execução desse serviço caberá aos Estados-membros e, por sua vez, o Distrito Federal, como não comporta divisão em Municípios, atuará tão somente com os serviços de transporte urbano de passageiros. 

Em síntese, em se tratando de repartição de competências administrativas, diretamente relacionada a prestação de serviços públicos, a Constituição Federal estabeleceu competência residual aos Estados-membros, atribuindo à titularidade dos serviços públicos que não foram enumerados nas competências da União ou dos Municípios.  

A titularidade do serviço público envolve a sua regulamentação, a sua fiscalização, aplicação de sanções e a sua prestação, prevendo assim o art. 175 da CF: 

Art. 175. Incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos. 

Parágrafo único. A lei disporá sobre: 

I - o regime das empresas concessionárias e permissionárias de serviços públicos, o caráter especial de seu contrato e de sua prorrogação, bem como as condições de caducidade, fiscalização e rescisão da concessão ou permissão; 

II - os direitos dos usuários; 

III - política tarifária; 

IV - a obrigação de manter serviço adequado. 

Registre que quando o ente político, titular do serviço público, utiliza-se de estrutura própria, através da criação, via lei, de órgãos públicos ou de entidades administrativas, estamos diante da prestação de forma indireta e, lado outro, quando há o repasse, tão somente da prestação através de contrato de concessão ou de permissão para terceiros, não integrantes da estrutura do titular do serviço, haverá a prestação de forma indireta.  

Nesse quadro, uma determinada atividade até então privada pode ser enquadrada através da Constituição ou da Lei como serviço público, atribuindo a sua titularidade a um dos entes integrantes da Federação, o qual deverá regulamentar respectivo serviço e decidir de que forma irá prestar o serviço, se através de estrutura própria, ou repassando a sua prestação, via delegação, para terceiros. 

Outra opção, constitucionalmente prevista, é a associação voluntária entre os entes políticos para a gestão associada de serviços públicos, através de consórcios e de convênios de cooperação, vide: 

Art. 241. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios disciplinarão por meio de lei os consórcios públicos e os convênios de cooperação entre os entes federados, autorizando a gestão associada de serviços públicos, bem como a transferência total ou parcial de encargos, serviços, pessoal e bens essenciais à continuidade dos serviços transferidos. 

Os consórcios públicos estão regulamentados na Lei nº 11.107/05, aplicando-se, no que couber, as suas regras aos convênios de cooperação e, dessa forma, podemos estabelecer as seguintes formas para a prestação de serviços públicos: 

A) o ente titular cria ou institui, através de lei, órgãos públicos ou entidades administrativas (autarquias, fundação pública, empresa pública ou sociedade de economia mista), podendo, no caso de criação de entidades administrativas com personalidade jurídica de direito público, repassar a própria titularidade do serviço; 

B) o ente titular repassa tão somente a prestação do serviço público para terceiros, via delegação, realizando licitação para celebração de contrato de permissão ou concessão, com fundamento na Lei nº 8.987/95, ou contratos de concessão patrocinada ou concessão administrativa, com base na Lei nº 11.079/04. 

C) o ente titular se associa aos outros entes da federação para a gestão associada dos serviços públicos, através de convênios de cooperação ou através de consórcios públicos, com fundamento na Lei nº 11.107/05. 

Há, portanto, todo um complexo normativo para, a partir do momento em que uma determinada atividade é reconhecida como serviço público, auxiliar a tomada de decisão quanto a sua forma de prestação, não havendo espaço, nesse ensaio, para enumerar e destrinchar os serviços públicos de cada um dos participantes da federação, de forma que elegemos o transporte de passageiros pela particularidade de que todos os entes políticos tem competência, como já dito, para atuar nesse setor de forma não concorrencial.  

Existem diversas questões que envolve o serviço público de transporte coletivo e transporte de passageiros, a começar pelo veículo utilizado em sua prestação e, sem objetivo de esgotar, podemos enumerar a utilização do ônibus, da van, do avião, do trem, do metrô, do táxi, da balsa e, por fim, da moto.  

A moto é um exemplo interessante porque até alguns anos atrás não era utilizada como veículo de transporte de passageiros, de forma que não havia regulamentação do mototáxi, surgindo essa modalidade na informalidade e, em consequência, a discussão à época é se tal modalidade seria uma atividade privada, de livre iniciativa, ou se seria um serviço público, observando que, para tanto, haveria de ser primeiramente regulamentada e, neste ponto, quem teria competência para regulamentar tal serviço? 

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Por se tratar de meio de transporte individual de passageiro utilizado, regra geral, dentro da cidade, diversos Municípios passaram a regulamentar o mototáxi gerando, à época, representações de inconstitucionalidade perante os respectivos Tribunais de Justiça, vide um dos julgados: 

Inconstitucionalidade - Ação direta - Lei que regulamenta o serviço de transporte individual por meio de motocicletas - mototáxi. Não é inconstitucional a Lei n. 4.692/99 do Município de Patos de Minas, que permite e regulamenta o transporte individual, mototáxi, em face dos artigos 10, § 2º, 11, XII e 169 da Constituição do Estado de Minas Gerais. (TJMG - Ação Direta Inconst  1.0000.00.184620-3/000, Relator(a): Des.(a) Hugo Bengtsson , CORTE SUPERIOR, julgamento em 27/06/2001, publicação da súmula em 03/08/2001) 

Importa dizer que o parâmetro para a análise da lei municipal foi a Constituição Estadual, nos termos do art. 125, §2º da CF e, com base nesse parâmetro, verifica-se que a conclusão do julgado foi pela ausência de inconstitucionalidade da lei municipal que regulamentou o mototáxi.  

Ocorre que alguns Estados-membros, também, regulamentaram a matéria, de forma que a questão foi parar no Supremo Tribunal Federal1, o qual julgou inconstitucional lei do Estado de Santa Catarina e do Estado de Minas Gerais que regulamentavam o mototáxi, vide ementa de um dos julgados:  

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI DO ESTADO DE MINAS GERAIS. LICENCIAMENTO DE MOTOCICLETAS PARA TRANSPORTE DE PASSAGEIROS ("MOTOTÁXI"). COMPETÊNCIA PRIVATIVA DA UNIÃO. INCONSTITUCIONALIDADE FORMAL RECONHECIDA. I - Competência privativa da União para legislar sobre trânsito e transporte (CF, art.22, XI). II - Exercício de atribuição pelo Estado que demanda autorização em lei complementar. III - Inexistência de autorização expressa quanto ao transporte remunerado de passageiros por motocicletas. IV - Ação direta julgada procedente para declarar a inconstitucionalidade da lei mineira 12.618/97. (ADI 3136, Relator(a): RICARDO LEWANDOWSKI, Tribunal Pleno, julgado em 01/08/2006, DJ 10-11-2006) 

Em sequência foi editada a Lei Nacional nº 12.009/09 regulamentando a atividade profissional de mototaxista e de motoboy, observando que o Supremo Tribunal Federal já teve a oportunidade de analisar e declarar a inconstitucionalidade legislação municipal que tratava da matéria através de ADPF de nº 539, de Relatoria do Ministro Luiz Fux, julgado em 26/10/2020, destacando o uso subsidiário da ADPF visto não cabível ação direta de constitucionalidade de lei municipal tendo como parâmetro a Constituição Federal. 

Esse exemplo nos mostra a dificuldade, por vezes, de delimitar quem deverá exercer a competência administrativa para enquadramento de uma atividade, até então exercida em caráter privado, como serviço público e, em consequência, regulamentar a matéria e prestar os serviços. 

Demonstra, ainda, que uma atividade, até então explorada pela iniciativa privada, pode ser enquadrada como serviço público, tal como pode haver o desenquadramento passando o serviço, até então público, ser enquadrado como serviço de utilidade pública ou, simplesmente, uma atividade econômica, permitindo a sua exploração pela iniciativa privada, o que vai depender de uma opção do Constituinte e/ou do Legislador, o que nos leva ao próximo tema.  

III - INOVAÇÕES TECNOLÓGICAS DISRUPTIVAS 

Da origem da roda aos veículos de transporte motorizados, há um salto tecnológicos imenso, mas que demorou centenas de anos para ocorrer, observando que tais inventos transformaram a realidade econômica e social de sua época.   

Nos últimos trinta anos vivenciamos um salto de inovações tecnológicas sem precedentes ao ponto de um simples smartphone ter funcionalidades que, poucos anos atrás, eram realizados por tipos diversos de aparelhos. 

Nesse mundo conectado via internet surgiram programas e aplicativos que, também, quebraram paradigmas e permitiram a interligação global, seja no âmbito acadêmico, seja no ambiente profissional. 

Para melhor compreensão do impacto das inovações disruptivas, reportamo-nos aos ensinamentos de CÂNDIDO (2011, p. 06): 

No caso das inovações disruptivas, darão origem a novos mercados e modelos de negócio, apresentando soluções mais eficientes do que as existentes até o momento. Por outras palavras, ocasiona a ruptura de um antigo modelo de negócio e altera as bases de competição existentes.  

Alguns programas de computador e aplicativos de smartphones revolucionaram o mercado, provocando inovações tecnológicas disruptivas, a exemplo, do Whatsapp em relação as empresas de telefonia, a Netflix em relação aos cinemas e locadoras de vídeo, o Youtube e o Spotify em relação a empresa fonográfica e audiovisual, o próprio celular em relação as empresas de máquinas fotográficas e filmadoras, observando que a enumeração acima são pequenos exemplos de uma relação extensa. 

Um desses aplicativos é o UBER que vem a ser é uma plataforma que conecta usuários a motoristas parceiros, uma opção de mobilidade a preços acessíveis que funciona em uma plataforma prática da seguinte forma conforme noticiado pela empresa2: 

1. Faça o download do app na App Store ou no Google Play ou, se preferir, acesse o site oficial da Uber.

2. Complete seu cadastro com seus dados pessoais.

3. Preencha o endereço de seu destino no campo Para onde?. 

4. Confirme seu endereço de partida e escolha a categoria que deseja utilizar. Lembramos que algumas categorias da Uber estão disponíveis apenas em algumas cidades até o momento.

5. Escolha sua forma de pagamento, confira o trajeto de sua viagem e o tempo médio de espera do veículo e confirme.

6. O app ou o site apresentarão os dados do veículo e do motorista parceiro. Antes da chegada do carro, você pode usar o app ou site para contatar o motorista parceiro ou cancelar a viagem.

7. Aguarde a chegada do veículo no local indicado. Antes de embarcar, confira se os dados do carro e do motorista parceiro batem com aqueles exibidos no app.

8. Se desejar, explique o caminho de sua preferência ao motorista parceiro. Ao fim da viagem, você poderá classificar sua experiência e deixar um comentário, ajudando a Uber a melhorar cada vez mais. 

O UBER é um exemplo de uma inovação tecnológica disruptiva porque rompeu com a formato que até então utilizado para deslocamento, notadamente, através dos serviços de transporte via táxi considerando que o usuário pode interagir, através do aplicativo, para verificar, por exemplo, se o motorista está chegando, de forma que a funcionalidade do aplicativo revolucionou o formato de transporte individual de passageiros. 

Em nosso ordenamento jurídico, a chegada da UBER em 2014 impactou diretamente nos serviços públicos de transporte individual de passageiros, notadamente, via táxi, inclusive, com retaliações por parte dos motoristas que exigiam a proibição do aplicativo pela ausência de regulamentação por implicar em concorrência desleal com os taxistas, os quais tinham que obter permissão junto ao Município para a prestação do serviço e sujeitos a diversas obrigações decorrentes da regulamentação e fiscalização do respectivo Município. 

Até então, o transporte individual de passageiros, via táxi, era enquadrado como um serviço público de titularidade dos Municípios, aos quais competiam a regulamentação, a fiscalização, a aplicação de sanções, observando que a prestação era repassada para particulares, via licitação, através de atos administrativos e, posteriormente, contratos de permissão com base na Lei Nacional nº 8.987/95. 

Antes mesmo da chegada do UBER, a Lei nº 12.587/12 que trata da Política Nacional de Mobilidade Urbana, com a alteração dada pela Lei 12.865/13, provocou uma alteração legislativa ao desenquadrar o transporte individual de passageiros, via táxi, como serviço público, vide: 

Art. 12-A. O direito à exploração de serviços de táxi poderá ser outorgado a qualquer interessado que satisfaça os requisitos exigidos pelo poder público local. 

Como consequência, o regime jurídico aplicado não seria mais de serviço público, nos termos do art. 175 da CF, a significar que não mais se exigiria a realização de licitação para permitir a exploração dessa atividade pelos particulares, no entanto, tal questão passou a ser judicializada visto que em diversos Municípios, o táxi ainda estava regulamentado como serviço público, exigindo, portanto, licitação para a prestação desse serviço.  

O retrato dessa alteração legislativa quanto ao regime jurídico aplicável ao transporte de passageiros via táxi, de serviço público para serviço de utilidade pública, pode ser visualizado na virada jurisprudencial quanto ao tema, visto que nossos Tribunais, ao tratar do assunto antes da alteração legislativa, entendiam que a licitação era imprescindível para a concessão ou permissão dos serviços de transporte via táxi, vide exemplo extraído do Tribunal de Justiça Mineiro, indicando a ementa de julgado antigo e de um julgado atual: 

ADMINISTRATIVO - PERMISSÃO PARA OS SERVIÇOS DE TÁXI - LICITAÇÃO - NECESSIDADE. O Município, que detém competência para emitir permissão para o exercício dos serviços de táxi, deve promover, previamente, a necessária licitação. (TJMG - Agravo de Instrumento 1.0713.04.033010-0/001, Relator(a): Des.(a) José Domingues Ferreira Esteves, 6ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 28/09/2004, publicação da súmula em 29/10/2004) GRIFO NOSSO 

REMESSA NECESSÁRIA - APELAÇÃO CÍVEL - AÇÃO CIVIL PÚBLICA - TRANSPORTE INDIVIDUAL DE PASSAGEIROS (TÁXI) - SERVIÇO DE UTILIDADE PÚBLICA - MUNICÍPIO DE PEDRA DO ANTA - OUTORGA DE PERMISSÃO PARA PRESTAÇÃO DO SERVIÇO - INEXIGIBILIDADE DE PROCEDIMENTO LICITATÓRIO - PRECEDENTES DO STF - SENTENÇA REFORMADA. - O excelso Supremo Tribunal Federal, por ocasião do julgamento do Agravo em Recurso Extraordinário n.º 1.002.310/SC, firmou entendimento no sentido de que não é exigível licitação para que o município permita a prestação de serviço de transporte individual de passageiros, uma vez que não se trata de serviço público, mas particular, de utilidade pública.  (TJMG -  Ap Cível/Rem Necessária 1.0685.16.001513-5/001, Relator(a): Des.(a) Luís Carlos Gambogi , 5ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 25/11/2021, publicação da súmula em 30/11/2021) GRIFO NOSSO 

O transporte individual da passageiros, antes enquadrado como serviço público de titularidade dos Municípios, passou a ser, por opção legislativa, um serviço de utilidade pública ou, simplesmente, uma atividade econômica e, esse desenquadramento é essencial para a compreensão do tratamento dado aos aplicativos de transporte. 

O UBER foi o aplicativo de transporte pioneiro, no entanto, outros aplicativos surgiram em nosso ordenamento jurídico tais como o 99, Cabify, InDriver, de forma que diversos Municípios regulamentaram a matéria, inclusive, com a proibição desse modelo de transporte via aplicativo.  

Em 2018, houve nova alteração legislativa da Lei nº 12.578/12, pela Lei 13.640/18 (Lei do Uber), a qual definiu o transporte remunerado privado individual de passageiros, ao lado transporte remunerado público individual, vide: 

Art. 4º Para os fins desta Lei, considera-se: 

... 

VIII - transporte público individual: serviço remunerado de transporte de passageiros aberto ao público, por intermédio de veículos de aluguel, para a realização de viagens individualizadas; 

... 

X - transporte remunerado privado individual de passageiros: serviço remunerado de transporte de passageiros, não aberto ao público, para a realização de viagens individualizadas ou compartilhadas solicitadas exclusivamente por usuários previamente cadastrados em aplicativos ou outras plataformas de comunicação em rede. (Redação dada pela Lei nº 13.640, de 2018) 

Referida alteração legislativa manteve a competência dos Municípios e do Distrito Federal para regulamentar e fiscalizar os serviços de transporte individual, estabelecendo requisitos mínimos para o exercício dessa atividade econômica.  

Lembre-se que, por opção legislativa, o transporte individual de passageiros, via táxi, deixou de ser enquadrado como serviço público, de forma que a discussão que envolvia o UBER era justamente ser essa forma de transporte seria uma atividade econômica ou um serviço público.  

A questão chegou no Supremo Tribunal Federal, o qual julgou em maio de 2019 à Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental3 nº 449 e o Recurso Extraordinário4 de nº 1.054.110, em sede de repercussão geral reconhecida em 2017 antes mesmo da alteração legislativa promovida pela Lei 13.640/18 (Lei do Uber), no qual foram fixadas as seguintes teses de julgamento: 

1. A proibição ou restrição da atividade de transporte privado individual por motorista cadastrado em aplicativo é inconstitucional, por violação aos princípios da livre iniciativa e da livre concorrência; e 2. No exercício de sua competência para regulamentação e fiscalização do transporte privado individual de passageiros, os Municípios e o Distrito Federal não podem contrariar os parâmetros fixados pelo legislador federal (CF/1988, art. 22, XI). 

Registre que a Constituição Federal trata da competência dos Municípios para o transporte coletivo, mas não há menção ao transporte individual de passageiros, a significar que o Poder Judiciário teve que delimitar, se o transporte individual de passageiros seria, propriamente, um serviço público, ou simplesmente uma atividade econômica, observando que no julgado, acima indicado, preponderou a natureza de atividade econômica. 

Ainda, no referido julgado, estabeleceu a distinção entre o serviço de transporte individual de passageiros via aplicativos e via táxi, vide transcrição do voto condutor: “É preciso ter em conta que o modelo tradicional de táxi não foi substituído por uma modalidade nova de serviço. Os táxis, uber´s, cabify´s e 99´s continuam coexistindo, mas estão submetidos a regimes jurídicos diversos”. 

Fato é que o surgimento dos aplicativos de transportes acabou por transformar todo o setor de transporte individual de passageiros, caracterizando uma inovação tecnológica disruptiva, o que se evidencia a partir da resistência, notadamente, dos taxistas e do próprio Estado quanto ao novo formato de transporte, com a edição de leis municipais proibitivas e/ou restritivas desses aplicativos, leis essas que foram questionadas judicialmente, chegando a discussão ao Supremo Tribunal Federal, o qual, partindo dos princípios da livre iniciativa e da libre concorrência, decidiu que o transporte individual de passageiros não seria, propriamente um serviço público e, como consequência, os Municípios não poderiam restringir ou proibir essa atividade econômica.  

A utilização dos aplicativos de transporte, como exemplo de inovações tecnológica disruptiva que transformou o formato do transporte em nosso ordenamento jurídico, é um exemplo do despreparo do Estado Brasileiro para se adaptar às novas tecnologias, observando que a proibição legal de utilização desses aplicativos como opção utilizada por diversos Municípios, caracteriza uma visão retrógada e arcaica, na tentativa de manter uma reserva de mercado para os taxistas, quando, na verdade, deveria antever políticas públicas razoáveis e adequadas à realidade futurista que estamos vivenciando.  

Em fecho, os aplicativos de transporte de passageiros é uma realidade que transformou e melhorou a mobilidade urbana, sem prejudicar o já existente mercado de transporte individual de passageiros via táxi, pelo contrário, forçou esse modelo a melhorias antes inconcebíveis diante da reserva de mercado até então existente.  

IV - CONCLUSÃO  

O surgimento dos aplicativos para transporte individual de passageiros em nosso ordenamento jurídico gerou um impacto direto no serviço público já existente de transporte individual de passageiros, notadamente, através de táxi, cuja regulamentação compete aos Municípios.  

Antes mesmo do surgimento de aplicativo, tais como o UBER, houve alteração legislativa quanto a transporte individual de passageiros, passando de serviço público para serviço de utilidade pública, alterando, portanto, o regime jurídico e, como consequência, a licitação deixou de ser um critério para a exploração dessa atividade econômica.  

Após o surgimento dos aplicativos, o primeiro ponto seria decidir se esse formato se enquadraria como serviço público, a ser regulado pelo Poder Público, ou como atividade econômica, esta regida pelos princípios da livre iniciativa e da livre concorrência. 

Alguns Municípios chegaram a editar leis para restringir ou proibir o transporte individual de passageiros via aplicativo em seus territórios, gerando a judicialização da questão, reconhecendo o Supremo Tribunal Federal, em 2017, a repercussão geral do tema em recurso extraordinário que tinha por objeto lei proibitiva do Município de São Paulo.  

O dilema, dessa forma, era simplesmente proibir a inovação tecnológica para manter a exclusividade do serviço público já regulamentado ou harmonizar a inovação tecnológica decorrente dos aplicativos de transporte, com o serviço público já existente. 

Em 2018, foi editada a Lei nº 13.640, alterando a Lei nº 12.578/12, passando a definir o transporte remunerado privado individual de passageiros, estabelecendo regras gerais e fixando a competência do Distrito Federal e dos Municípios para regulamentar a matéria, optando o legislador, portanto, pela coexistência de dois regimes, o transporte privado individual e o transporte público individual. 

De igual forma, o Supremo Tribunal Federal tratou do tema no ano de 2019, através da ADPF nº 449 e no RE nº 1.054.110 e, em síntese apertada, acabou por avalizar a alteração legislativa, acima indicada, ao entender pela existência de regimes jurídicos distintos no serviço de transporte individual de passageiros via aplicativos e via táxi, observando que a inovação tecnológica trouxe evidentes melhorias para o setor. 

Em fecho, os aplicativos de transporte é só um exemplo de que como as inovações tecnológicas disruptivas impactam diretamente nos formatos já existentes das atividades econômicas e dos serviços públicos. 

O Estado Brasileiro deve estar atento para adaptar a estrutura estatal às inovações tecnológicas, observando que a opção pela simples proibição do uso de novas tecnologias, criando uma reserva de mercado para os taxistas, tal como utilizada por alguns Municípios no caso dos aplicativos de transporte utilizado como exemplo no presente ensaio, em nada contribui para o desenvolvimento do setor de transporte, da economia e da sociedade. 

V - REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 

CÂNDICO, Ana Clara. Inovação Disruptiva: Reflexões sobre as suas características e implicações no mercado. Disponível em: (Microsoft Word - WPSeries_05_2011ACC\342ndido-1) (unl.pt). Acesso em 31/01/2021. 

DE FARIA, Edimur Ferreira. Curso de Direito Administrativo Positivo. 4ª Ed. Del Rey: Belo Horizonte. 2001.  

FERNANDES, Bernardo Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. 5ª Ed. Juspodivm: Salvador. 2013.  

HOLTHE, Leo Van. Direito Constitucional. 4ª Ed. Juspodvim: Salvador. 2008.  

JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de Direito Administrativo. 3ª Ed. Saraiva: São Paulo. 2008.  

MARINELA, Fernanda. Direito Administrativo. 6ª Ed. Impetus: Niterói. 2012.  

MARTINS, FLÁVIO. CURSO DE DIREITO CONSTITUCIONAL. Disponível em: Minha Biblioteca, (5th edição). Editora Saraiva, 2021. 

MEDAUAR, Odete. O direito Administrativo em Evolução. 2ª Ed. Revistas dos Tribunais. 2003.  

MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 15ª Ed. Malheiros: São Paulo. 2003.  

MORAES, Alexandre de,. Direito Constitucional. Disponível em: Minha Biblioteca, (37th edição). Grupo GEN, 2021. 

MOREIRA, João Batista Gomes. Direito Administrativo – Da Rigidez autoritária à flexibilidade democrática. 3ªEd. Fórum: Belo Horizonte. 2016. 

PECK, Patricia. Direito Digital. Disponível em: Minha Biblioteca, (6th edição). Editora Saraiva, 2016. 

SIEBEL, Thomas M. Transformação Digital. Disponível em: Minha Biblioteca, Editora Alta Books, 2021. 

WOLFGANG, Hoffmann-Riem. Teoria Geral do Direito Digital. Disponível em: Minha Biblioteca, (2nd edição). Grupo GEN, 2021.  

Sobre o autor
Fabiano Batista Correa

Advogado, Professor de Direito Administrativo, Gestão Pública, Direito Constitucional e Direito Tributário

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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