RESUMO
Após diversos julgados sobre o tema, a Subseção I Especializada em Dissídios Individuais do Tribunal Superior do Trabalho alterou a redação da Orientação Jurisprudencial nº 173 para estabelecer que o calor produzido pela carga solar pode ser considerado insalubre, quando ultrapassados os limites de tolerância estabelecidos na Norma Regulamentar nº 15. Ocorre que a então Secretaria Especial de Previdência e Trabalho, vinculada ao Ministério da Economia, editou a Portaria nº 1.359 de 09 de dezembro de 2019, pela qual foi alterado o Anexo III da NR-15, excluindo das disposições relativas à insalubridade o trabalho realizado a céu aberto sem fonte artificial de calor, contrariando, assim, a jurisprudência pacificada da Corte Superior. Neste trabalho, será estudada a validade dessa norma infralegal e se a incidência dos raios solares ainda pode ser considerada como fonte causadora do calor, para fins de configuração do trabalho insalubre.
PALAVRAS-CHAVE: Adicional. Insalubridade. Calor. Céu aberto.
Introdução
O trabalho realizado em atividades exercidas a céu aberto, sob a incidência dos raios solares, tem sido objeto de discussões quanto aos potenciais danos à saúde dos trabalhadores, especialmente com relação ao contato com a radiação solar e ao calor produzido pela luz solar.
Em 08 de novembro de 2000, a Subseção I Especializada em Dissídios Individuais (SDI-1) do Tribunal Superior do Trabalho (TST) incluiu em suas Orientações Jurisprudenciais (OJ) o Enunciado nº 173, afastando o direito ao adicional de insalubridade ao trabalhador em atividade a céu aberto, por ausência de previsão legal.
Esse precedente suscitou diversas controvérsias, porque, na sua redação original, havia a referência expressa ao Anexo VII da Norma Regulamentar nº 15 (NR-15) que cuida especificamente das radiações não ionizantes.
Considerando que a nocividade decorrente do calor é regulamentada pelo Anexo III da NR-15, a discussão persistiu nos Tribunais até setembro/2012, quando a SDI-1 alterou a referida Orientação, que passou a vigorar com a seguinte redação:
ADICIONAL DE INSALUBRIDADE. ATIVIDADE A CÉU ABERTO. EXPOSIÇÃO AO SOL E AO CALOR. I Ausente previsão legal, indevido o adicional de insalubridade ao trabalhador em atividade a céu aberto, por sujeição à radiação solar (art. 195 da CLT e Anexo 7 da NR 15 da Portaria Nº 3214/78 do MTE). II Tem direito ao adicional de insalubridade o trabalhador que exerce atividade exposto ao calor acima dos limites de tolerância, inclusive em ambiente externo com carga solar, nas condições previstas no Anexo 3 da NR 15 da Portaria Nº 3214/78 do MTE (BRASIL, 2012).
Com isso, restou esclarecido que a ausência de previsão legal se limitava às hipóteses de exposição à radiação não ionizante, porque a radiação solar não consta no Anexo VII da NR-15 do MTE. Todavia, o calor produzido pela incidência dos raios solares pode ser considerado insalubre, quando ultrapassados os limites de tolerância previstos no Anexo III da NR-15.
No entanto, mesmo após a atualização da OJ nº 173 da SDI-1 do TST, persistiram os questionamentos judiciais quanto à inexistência de insalubridade nas atividades exercidas a céu aberto.
E, em 09 de dezembro de 2019, o Poder Executivo, por meio da então Secretaria Especial de Previdência e Trabalho (SEPT)1, se alinhou a esses reclamos, tendo editado a Portaria nº 1.359, que substituiu o Anexo III da Norma Regulamentar nº 15. Entre os objetivos estabelecidos no primeiro item da norma, consta que este Anexo não se aplica a atividades ocupacionais realizadas a ceu [sic] aberto sem fonte artificial de calor (BRASIL, 2019).
Resta claro, assim, que o novo regulamento objetivou superar o entendimento jurisprudencial pacificado, afastando a insalubridade nas atividades realizadas a céu aberto.
Diante da relevância do tema, abordaremos nesta pesquisa as razões por que o trabalho desempenhado com calor elevado é considerado insalubre, as modificações operadas no Anexo III da NR-15 pela Portaria SEPT nº 1.359/2019 e os vícios que maculam a validade dessa norma, notadamente no tocante ao trabalho a céu aberto.
A insalubridade decorrente do calor
A Constituição Federal assegura em seu artigo 7º, XXIII, o seguinte direito laboral: adicional de remuneração para as atividades penosas, insalubres ou perigosas, na forma da lei (BRASIL, 1988).
Especificamente quanto ao adicional de insalubridade, a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) estabelece o seguinte:
Art. 190 - O Ministério do Trabalho aprovará o quadro das atividades e operações insalubres e adotará normas sobre os critérios de caracterização da insalubridade, os limites de tolerância aos agentes agressivos, meios de proteção e o tempo máximo de exposição do empregado a esses agentes.
[]
Art. 192 - O exercício de trabalho em condições insalubres, acima dos limites de tolerância estabelecidos pelo Ministério do Trabalho, assegura a percepção de adicional respectivamente de 40% (quarenta por cento), 20% (vinte por cento) e 10% (dez por cento) do salário-mínimo da região, segundo se classifiquem nos graus máximo, médio e mínimo (BRASIL, 1943).
Percebe-se que também a legislação trabalhista remete a regulamentação da matéria a outra instância normativa, estabelecendo que as atividades e operações insalubres, os limites de tolerância, o enquadramento das atividades nos graus máximo, médio e mínimo, e outras questões pertinentes, serão definidas pelo Ministério do Trabalho e Previdência.
A normatização do adicional de insalubridade se deu pela Portaria nº 3.214, de 08 de junho de 1978, que aprovou, entre outras, a notória Norma Regulamentar nº 15 (NR-15), que define as atividades e operações insalubres.
O calor constitui um dos agentes físicos causadores da insalubridade no ambiente de trabalho, estando previsto no Anexo III da NR-15, o qual foi objeto de alteração pela Portaria SEPT nº 1.359/2019, como já mencionado na introdução acima.
De acordo com pesquisas realizadas na área da engenharia e medicina do trabalho
[] a associação de alta temperatura e umidade do ar reduz a capacidade do corpo humano de manter sua temperatura interna correta. Exposições em ambientes com temperatura e umidade alta podem causar câimbras, esgotamento, fadiga e até danos ao cérebro, podendo chegar à morte (SILVA; ALMEIDA, 2010, p. 3).
Destaque-se que isso ocorre também em atividades a céu aberto, conforme pesquisa realizada na cidade de Campinas, no Estado de São Paulo, com 64 trabalhadores na construção de estruturas de edifícios, na qual se identificou que o calor produzido pela carga solar gerou índices elevados de estresse térmico, desencadeando malefícios à saúde dos trabalhadores (AMORIM et al, 2020).
Isso ocorre porque o calor externo interfere na capacidade do organismo de regular a tempera corporal, sendo irrelevante que os altos níveis de calor decorram de fontes artificiais ou naturais de calor. Para o corpo humano, é indiferente que o estresse térmico decorra da proximidade a uma fornalha, em um ambiente fabril, ou da exposição à luz solar, em atividades a céu aberto.
Logo, para a definição da nocividade do ambiente de trabalho, é relevante apurar se o trabalho é desenvolvido dentro dos níveis de tolerância seguros para a saúde humana, de acordo com a intensidade física da atividade desempenhada, e não se a fonte de calor é natural ou artificial.
A fim de definir os níveis de tolerância de exposição ao calor, a NR-15 adota o Índice de Bulbo Úmido Termômetro de Globo (IBUTG).
Esse índice é obtido a partir de três variáveis medidas em graus célsius: a temperatura de bulbo úmido natural (tbn), que representa o efeito das trocas de calor por evaporação e convecção, a temperatura de globo (tg), que corresponde ao efeito das trocas de calor por radiação e convecção, e a temperatura de bulbo seco (tbs), que se trata da temperatura do ambiente (AMORIM et al, 2020).
Uma vez medidas essas variáveis, o IBUTG é obtido a partir de duas equações. Para ambientes internos ou para ambientes externos sem carga solar direta, o IBUTG corresponde a 0,7 tbn + 0,3 tg. Para ambientes externos com carga solar direta, o IBUTG é igual a 0,7 tbn + 0,2 tg + 0,1 tbs (FUNDACENTRO, 2017).
De se notar que as equações são distintas conforme a incidência, ou não, de carga solar direta no ambiente de trabalho, porque, como destacado acima, o calor produzido pela luz solar é igualmente prejudicial à saúde humana.
Havendo labor em ambiente com IBUTG superior ao limiar estabelecido no Anexo III da NR-15, o que deve ser apurado por meio de perícia técnica, conforme art. 195 da CLT, o empregado tem direito ao pagamento do adicional de insalubridade em grau médio, equivalente a 20% do salário mínimo. Se o IBUTG medido não supera o limite de tolerância, o trabalho é considerado salubre.
Cabe ressaltar, no entanto, que pesquisa publicada na Revista Brasileira de Saúde e Segurança no Trabalho identificou efeitos nocivos do calor em trabalhadores na indústria de produção de queijo, mesmo em ambiente com o IBUTG dentro dos limites de segurança:
[] para a produção de Ricota, com valor de IBUTG igual a 25,97, ou seja, até 26,7, o regime de trabalho pode ser realizado de forma contínua, sendo portanto, consideradas atividades salubres. Porém, apesar disso, os usuários apresentaram sintomas de desconforto como cansaço, fadiga, sudorese excessiva e câimbra. Diante disso, conclui-se que independente de valores quantitativos, a exposição ao calor pode se tornar prejudicial à saúde dos trabalhadores (GOMES; COSTA; EPAMINONDAS, 2017, p. 1).
De outro lado, acrescente-se que existe intensa crítica da doutrina a respeito do pagamento do adicional de insalubridade, porque os limites de tolerância deveriam ser respeitados para preservar a saúde do trabalhador, sendo inadequado permitir a violação da integridade física do empregado mediante o pagamento de um acréscimo salarial. Nesse sentido:
[] o pagamento de um adicional salarial para que o trabalhador permaneça em ambiente insalubre, com potencial para induzir surdez ocupacional, dermatites, problemas pulmonares e numerosas outras patologias, é uma solução jurídica bastante perversa. Ou bem o limite de tolerância deve ser respeitado, ou bem as medidas de engenharia e administração deveriam ser implementadas para a eliminação da fonte agressiva. O meio-termo a saber, a manutenção dos agentes agressivos em troca de um aumento salarial pode atender a alguns anseios jurídicos, mas certamente não aos anseios da saúde do trabalhador (SILVA, 2021, p. 202).
Dessa forma, seria oportuno que o Anexo III da NR-15 fosse alterado para ampliar a proteção dos trabalhadores, incluindo hipóteses de trabalho proibido, como forma de privilegiar a saúde dos empregados, nos casos de condições de labor muito adversas para o corpo humano.
Todavia, esse não foi o caminho trilhado pelo Poder Público na recente alteração realizada, como se verá a seguir.
As modificações promovidas pela Portaria SEPT nº 1.359/2019
O Anexo III da NR-15 fixava em sua redação original uma tabela (Quadro nº 1), que considerava a rotina de trabalho (contínuo ou interrompido por pausas de recuperações térmicas) e a exigência física do trabalho prestado (a qual era classificada como leve, moderada ou pesada, de acordo com o Quadro nº 3), para definição do limite de tolerância do estresse térmico.
Exemplificativamente, para um trabalho contínuo, o IBUTG máximo era de 30,0ºC, em atividades leves, 26,7ºC em atividades moderadas e 25ºC para atividades pesadas. Se concedidas pausas de 15 minutos para cada 45 minutos trabalhados, o IBUTG máximo era elevado para 30,1 a 30,5ºC, em atividades leves, 26,8 a 28ºC em atividades moderadas e 25,1 a 25,9ºC para atividades pesadas.
Ou seja, a norma permitia o trabalho em ambientes mais quentes, se houvesse a pausa para recuperação térmica, porque esses intervalos permitem a volta da temperatura corporal à condição de normalidade, próxima dos 37ºC (AMORIM et al, 2020).
Apesar de essas interrupções constituírem importante medida de proteção da saúde dos trabalhadores, a redação do Anexo III da NR-15, dada pela Portaria SEPT nº 1.359/2019 não considera mais a rotina de trabalho, não havendo a previsão de intervalos na jornada para a recuperação térmica.
A norma agora considera apenas o IBUTG máximo admitido (Quadro 1), conforme o nível de taxa metabólica por tipo de atividade (Quadro 2).
Segundo essa metodologia, a título ilustrativo, considerando-se um trabalhador que exerce suas atividades sentado, realizando tarefas classificadas como pesadas, com movimentação de ambos os braços, a taxa metabólica estimada é de 288W, para a qual o IBUTG do ambiente não pode ultrapassar 28,4ºC.
A diferença na forma de apuração do IBUTG implicou em uma elevação geral dos índices de tolerância. Por exemplo, citamos o trabalho moderado, realizado em pé, com movimentação dos braços, o que ocorre em diversos setores econômicos, como nas linhas de produção de ambientes fabris.
Para essas atividades, conforme a antiga redação do Anexo III da NR-15, sendo o trabalho contínuo, o IBUTG máximo era de 26,7ºC. Agora, esse trabalho tem taxa metabólica estimada de 279W, para qual o IBUTG é de 28,5ºC.
Houve, portanto, uma elevação de quase 2ºC na temperatura máxima tolerada para essas atividades.
Vê-se, assim, que a Portaria SEPT nº 1.359/2019 reúne diversas alterações que, lidas em seu conjunto, promovem a redução da proteção à saúde e segurança dos trabalhadores.
Contudo, a alteração mais sensível se deu com as atividades realizadas a céu aberto sem fonte artificial de calor, que, conforme abordado brevemente na introdução deste trabalho, foram inteiramente excluídas do anexo sobre o calor.
A despeito de outros vícios que possam ser identificados nessa norma, considerando a intensidade da modificação operada especificamente no trabalho a céu aberto, constata-se a violação a preceitos constitucionais e legais nesse ponto, conforme passamos a expor nos capítulos seguintes.
A inconstitucionalidade da Portaria SEPT nº 1.359/2019
Conforme clássica lição de José Afonso da Silva, as normas constitucionais podem ser classificadas como de eficácia plena, contida ou limitada (apud LENZA, 2021, p. 221).
Sinteticamente, podemos dizer que as normas de eficácia plena são aquelas que, desde a edição da Constituição, são aptas a produzir os seus efeitos essenciais, as normas de eficácia contida são aquelas em que o constituinte regulou suficientemente a matéria, mas deixou margem à atuação restritiva pelo Poder Público e, por fim, são normas de eficácia limitada aquelas que dependem de complementação legislativa para se tornarem capazes de produzir todos os seus efeitos (MORAES, 2018, p. 11).
Considerando essa classificação, verifica-se que o art. 7º, XXIII, da Constituição Federal, constitui uma norma de eficácia limitada, porque a definição dos adicionais previstos, das hipóteses de incidência, dos seus percentuais e da sua base de cálculo coube à legislação infraconstitucional.
Ocorre que a CLT, ao regular esse dispositivo, igualmente o fez de forma incompleta, de modo que a definição das atividades e operações insalubres coube à normatização pelo Ministério do Trabalho e Previdência.
Apesar da necessidade de complementação legislativa, as normas constitucionais de eficácia limitada não são desprovidas de normatividade. Ao contrário, essas normas
são capazes de surtir uma série de efeitos, revogando as normas infraconstitucionais anteriores com elas incompatíveis, constituindo parâmetro para a declaração de inconstitucionalidade por ação e por omissão, e fornecendo conteúdo material para a interpretação das demais normas que compõem o sistema constitucional (BARROSO, 2020, p. 214).
Assim, é equivocado tratar essas normas conforme antiga classificação trazida do direito constitucional norte-americano nos primórdios da República por Ruy Barbosa como normas não autoaplicáveis ou non self executing (BARROSO, 2020, p. 212).
A Constituição Federal, ao editar normas com eficácia limitada, impõe um dever político ao órgão com competência para satisfazer o seu comando (MENDES; BRANCO, 2021, p. 72).
Dessa forma, a regulamentação a ser editada não se submete à discricionariedade absoluta do Poder Executivo, porque deve ser observado o sentido finalístico estabelecido pela norma constitucional.
Com relação aos adicionais de insalubridade, periculosidade e penosidade (este até hoje ainda não regulado), a Lei Fundamental estabelece um claro programa voltado à proteção da saúde e segurança do empregado.
Com efeito, a Carta da República garante aos trabalhadores em seu artigo 7º, no inciso XXII, a redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança e, no inciso XXVIII, o seguro contra acidentes de trabalho, a cargo do empregador, sem excluir a indenização a que este está obrigado, quando incorrer em dolo ou culpa (BRASIL, 1988).
Nesse sentido, do ponto de vista empresarial, o adicional de insalubridade constitui um instrumento de desestímulo às empresas que possuam condições nocivas em seu ambiente. Partindo de uma lógica puramente econômica, estabelece a norma um custo para a empresa, que pode ser evitado se neutralizados os agentes nocivos.
Em outras palavras,
[] convertendo-se a expectativa de morbidez em um custo monetário, prefere-se prevenir o dano mediante a implementação de medidas que, se encarecem a produção, têm o ingente desiderato de preservar a saúde ou, por fortuna, a vida do trabalhador (CARVALHO, 2019, p. 344).
Para o empregado, a norma estabelece uma primeira forma de compensação financeira, sem prejuízo da necessária reparação no caso de o agente nocivo produzir o adoecimento do empregado.
Além disso, a Constituição também assegura aos trabalhadores expostos a condições nocivas à saúde o direito à previsão de idade e tempo de contribuição distintos da regra geral para concessão de aposentadoria (art. 201, § 1º, II).
Ou seja, por um lado, a Carta da República visa a desestimular o trabalho em ambientes nocivos, encarecendo o custo da mão de obra nessas condições, e, por outro, busca reduzir o tempo de permanência dos empregados expostos a esses riscos ocupacionais, assegurando o direito à aposentadoria especial, regulada pelos artigos 57 e seguintes da Lei nº 8.213/91.
Por fim, cabe observar que a definição das atividades insalubres também é relevante no contexto da proteção da infância e da adolescência, eis que o trabalho em atividades insalubres é proibido para os menores de 18 anos (art. 7º, XXXIII, CF).
Dessa forma, a alteração realizada pela Portaria SEPT nº 1.359/2019, ao excluir das hipóteses de trabalho insalubre as atividades exercidas a céu aberto, a despeito dos comprovados efeitos nocivos do trabalho desempenhado nessas condições, contraria toda a política constitucional de proteção ao trabalho, descumprindo o mandamento extraído do art. 7º, XXIII, da Carta Cidadã.
Registre-se, ainda, que o caput do art. 7º da Constituição Federal expressamente estabelece que o rol de direitos dos trabalhadores elencados em seus incisos não exclui [] outros que visem à melhoria de sua condição social (BRASIL, 1988).
Dessa forma, o Direito do Trabalho repudia o retrocesso social, uma vez que
[] a gênese do direito do trabalho é realmente estabelecer um arcabouço jurídico, ou seja, um sistema jurídico fundado em princípios, regras e valores destinados a proteger e promover a melhoria das condições sociais, econômicas e ambientais do trabalhador e de sua família (CF, art. 7º, caput). Não é por outra razão que os autores referem o princípio tutelar como específico deste ramo da árvore jurídica (LEITE, 2020, p. 51).
De fato, essa busca pela melhoria das condições de pactuação da força de trabalho na ordem socioeconômica capitalista se revela como valor fundamental e como direção finalística desse ramo do ordenamento jurídico, porque, sem ela, [] o Direito do Trabalho sequer se compreenderia, historicamente, e sequer justificar-se-ia, socialmente, deixando, pois, de cumprir sua função principal na sociedade contemporânea (DELGADO, 2017, p. 54).
E, no caso, há inegável retrocesso na regulamentação da matéria, porque, o direito dos empregados encontrava respaldo na NR-15 e na jurisprudência uniformizada do TST, havendo atuação normativa direta do Poder Executivo para revogar essa proteção.
Como abordado em capítulo anterior, as pesquisas demonstram que o labor em atividades ao céu aberto é igualmente nocivo aos trabalhadores, quando estes são expostos a temperaturas elevadas, o que tende a ser habitual no Brasil, em virtude das condições climáticas do país e dos efeitos do aquecimento global.
Dessa forma, não pode o regulamento editado retroceder na proteção garantida aos trabalhadores e retirar do rol de atividades insalubres condição que comprovadamente torna o ambiente laboral nocivo à saúde.
Assim, é inconstitucional a regulamentação editada pelo Poder Público, também pela contrariedade à diretriz contida no caput do art. 7º da Constituição Federal.
A ilegalidade da portaria SEPT nº 1.359/2019
Assim como a lei não pode contrariar a diretriz constitucional estabelecida pelas normas de eficácia limitada, os regulamentos editados pelo Poder Executivo não podem exorbitar dos limites estabelecidos pela lei, tendo em vista a organização e distribuição do poder entre as funções estatais (art. 2º, CF).
Nesse sentido:
[] o conteúdo e a amplitude do regulamento devem sempre estar definidos em lei, subordinando-se aos preceitos nela previstos. Quando o regulamento extrapolar a lei, padecerá de vício de legalidade, podendo, inclusive, o Congresso Nacional sustar os atos normativos do Poder Executivo que exorbitem do poder regulamentar (art. 49, V) (LENZA, 2021, p. 748).
No caso das normas de segurança e medicina do trabalho, a CLT confere ao órgão de âmbito nacional a competência geral de estabelecer normas sobre a aplicação dos preceitos sobre o tema (art. 155, I). De modo específico, o diploma trabalhista estabelece em seu artigo 200 o seguinte:
Art. 200 - Cabe ao Ministério do Trabalho estabelecer disposições complementares às normas de que trata este Capítulo, tendo em vista as peculiaridades de cada atividade ou setor de trabalho, especialmente sobre:
[]
V - proteção contra insolação, calor, frio, umidade e ventos, sobretudo no trabalho a céu aberto, com provisão, quanto a este, de água potável, alojamento [e] profilaxia de endemias (BRASIL, 1943).
Nota-se que o legislador, ciente dos malefícios causados pelo labor nessas condições, conferiu ao Ministério do Trabalho e Previdência a competência para regular a matéria, no sentido de promover a proteção dos trabalhadores contra o calor sobretudo no trabalho a céu aberto.
Ou seja, a lei estabeleceu um comando para o órgão regulatório, definindo e delimitando o conteúdo das normas a serem expedidas por essa instância normativa.
Todavia, a Portaria da antiga SEPT caminhou na direção diametralmente oposta, já que, em vez de promover a proteção dos trabalhadores expostos ao calor decorrente da luz solar, ela excluiu esses empregados das disposições do Anexo III da NR-15.
Considerando que a competência regulamentar do Poder Executivo somente pode ser exercida dentro dos limites estabelecidos pela lei, a violação flagrante do art. 200, V, da CLT, implica na nulidade da Portaria SEPT nº 1.359/2019, na parte em que exclui das atividades e operações insalubres o trabalho a céu aberto.
Conclusão
A Portaria SEPT nº 1.359/2019 substituiu o Anexo III da Norma Regulamentar nº 15, excluindo do rol de atividades insalubres aquelas exercidas a céu aberto sem fonte artificial de calor.
Ocorre que a supressão do adicional de insalubridade para essa hipótese fática contraria o art. 7º, XXIII, da Constituição Federal, porque essa parcela remuneratória constitui uma das ferramentas instituídas pela ordem jurídica para promover a saúde e segurança dos trabalhadores, por meio da proteção do ambiente laboral contra agentes nocivos.
Apesar de essa norma constitucional possuir eficácia limitada, dependendo de complementação legislativa para produzir todos os seus efeitos, é certo que a regulamentação a ser editada não pode ferir o programa definido pela Lei Fundamental, decorrendo dessa contrariedade a inconstitucionalidade do ato normativo do Poder Executivo.
Referida portaria também viola o caput do art. 7º da Carta da República, por constituir inequívoco retrocesso social, na medida em que as pesquisas demonstram os malefícios à saúde dos trabalhadores pelo labor em ambientes quentes, mesmo nas atividades a céu aberto, não podendo a norma regulamentar retirar a proteção dos trabalhadores que se submetem a esse risco ocupacional.
Por fim, a norma editada pelo Poder Executivo também se mostra ilegal, pois o art. 200, V, da CLT, prevê como dever do Ministério do Trabalho e Previdência, no exercício da sua competência normativa, promover a proteção dos trabalhadores contra o calor, sobretudo no trabalho a céu aberto, de modo que a regulamentação do adicional de insalubridade não pode dispor de forma contrária ao que determina a lei.
Diante desses vícios de inconstitucionalidade e ilegalidade, a Portaria SEPT nº 1.359/2019 é nula na parte em que exclui o trabalho desempenhado a céu aberto do rol de atividades e operações insalubres. Em decorrência, cabe verificar se o IBUTG excede, ou não, os limites de tolerância previstos na norma regulamentar, desconsiderando-se o fato de o calor ser produzido por fonte natural ou artificial.
REFERÊNCIAS
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BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho. Subseção I Especializada em Dissídios Individuais. Orientação Jurisprudencial nº 173. ADICIONAL DE INSALUBRIDADE. ATIVIDADE A CÉU ABERTO. EXPOSIÇÃO AO SOL E AO CALOR. I Ausente previsão legal, indevido o adicional de insalubridade ao trabalhador em atividade a céu aberto, por sujeição à radiação solar (art. 195 da CLT e Anexo 7 da NR 15 da Portaria Nº 3214/78 do MTE). II Tem direito ao adicional de insalubridade o trabalhador que exerce atividade exposto ao calor acima dos limites de tolerância, inclusive em ambiente externo com carga solar, nas condições previstas no Anexo 3 da NR 15 da Portaria Nº 3214/78 do MTE. Diário Eletrônico da Justiça do Trabalho, Brasília, DF, 25, 26 e 27 set. 2012. Disponível em: https://www3.tst.jus.br/jurisprudencia/OJ_SDI_1/n_s1_161.htm#TEMA173. Acesso em: 30 ago. 2021.
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1O Ministério do Trabalho e Emprego foi transformado em Secretaria Especial da Previdência e Trabalho, vinculada ao Ministério da Economia, por meio da Medida Provisória nº 870, de 1º de janeiro de 2019, a qual foi convertida na Lei nº 13.844/2019. Todavia, em 27 de julho de 2021, esse órgão readquiriu o status de ministério, com a denominação de Ministério do Trabalho e Previdência, por força da Medida Provisória nº 1.058/2021. Assim, no presente artigo, adotaremos a denominação atual do Ministério, sem prejuízo da utilização de outras nomenclaturas empregadas pelos diplomas legais, conforme a época da sua edição.