O conceito de meritocracia surgiu no Leste da Ásia, com Confúcio. O filósofo defendia que quem governa deve fazê-lo por mérito, e não por herança de poder.
Durante o século XVII, o conceito se espalhou pela Inglaterra. O Império Britânico foi o primeiro a adotar a concepção de meritocracia para a administração da Índia.
John Stuart Mill, em seu livro Governo Representativo, defende fortemente a meritocracia:
Se uma casa representa o sentimento popular, a outra deve representar mérito pessoal, testado e garantido pelo atual serviço público e fortalecido pela experiência prática. Se uma é Câmara do Povo, a outra deve ser a Câmara dos Estadistas, um conselho composto por todos os homens públicos vivos que passaram por importantes escritórios ou empregos. Tal Câmara seria adequada para muito mais do que ser um órgão meramente moderador. Não seria exclusivamente uma verificação, mas também impelir força. Em suas mãos, o poder de conter o povo seria investido naqueles mais competentes e que geralmente estariam mais inclinados a conduzi-lo a qualquer curso correto1.
Para Stuart Mill, quem não tem instrução não poderia participar de decisões políticas, por não possuir preparo suficiente para governar, de modo que ninguém confiaria seus interesses a esse tipo de pessoa:
Uma pessoa que pode ler, mas não pode escrever ou calcular, não é tão boa quanto a pessoa que consegue fazer as duas coisas. Uma pessoa que pode ler, escrever e calcular, mas que não conhece nada das propriedades dos objetos naturais, ou de outros lugares ou países, ou dos seres humanos que viveram antes dele, ou das ideias, opiniões e práticas de seus semelhantes em geral, não é tão boa quanto a pessoa que conhece essas coisas. Uma pessoa que não se familiarizou com os pensamentos mais sábios de uma vida benéfica e virtuosa não é tão boa quanto aquele que é familiar com esses. Uma pessoa que até se encheu com esses vários conhecimentos, mas não os digeriu — que não poderia dar um relato claro e coerente deles, nunca exercitou sua própria mente ou derivou um pensamento original de sua própria observação, experiência ou raciocínio — não é tão boa, para qualquer propósito humano, quanto aquele que o fez. Não há ninguém que, em qualquer assunto que lhe diga respeito, não prefira ter seus negócios administrados por uma pessoa de maior conhecimento e inteligência, do que por uma de menos. Não há ninguém que, se fosse obrigado a confiar seu interesse conjuntamente com ambos, que não desejasse dar uma maior voz potencial ao mais educado e culto dos dois2.
A posição de Stuart Mill parte do pressuposto de que pessoas instruídas, com boa educação, governam com mais sabedoria. Nesse ponto, ele traz a convicção do voto plural, como forma de impedir que um grupo ou classe possa controlar o processo político — sua preocupação era com a classe mais numerosa da população, sem instrução. Assim, o voto plural, exercido por pessoas com posições mais altas na sociedade, representaria, para ele, a perfeição.
A perfeição, então, de um sistema eleitoral seria que cada pessoa tivesse um voto, mas que cada pessoa bem-educada na comunidade tivesse mais de um, em uma escala correspondente, tanto quanto possível, à sua quantidade de educação. E nenhum desses constituintes de um sistema representativo perfeito é admissível sem o outro. Enquanto o sufrágio está totalmente confinado a uma classe limitada, essa classe não tem ocasião para votação plural; o que, provavelmente, nessas circunstâncias, apenas criaria uma oligarquia dentro de uma oligarquia. Por outro lado, se a classe mais numerosa, que (salvo exceções honrosas de um lado, ou vergonhosas de outro) é a mais baixa na escala educacional, recusa reconhecer um direito aos mais instruídos, em virtude de suas qualificações superiores, a uma pluralidade de votos que possa impedi-los de serem sempre e irremediavelmente derrotados pelos comparativamente incapazes, a maioria numérica deve se submeter a ter o sufrágio limitado a tal parte de seus números, ou a ter tal distribuição feita dos círculos eleitorais, como poder de efetuar o equilíbrio necessário entre números e educação de outra maneira3.
Stuart Mill não estava de todo errado: um governo qualificado, de fato, tende a fazer escolhas melhores. No entanto, é questionável se tal qualificação, via meritocracia, é acessível a todos. Salvo melhor juízo, em vez de estabelecer o voto plural, a educação de qualidade deveria ser gratuita e acessível ao maior número possível de pessoas, permitindo que elas próprias escolhessem melhores representantes, sem depender do voto de um eleitor “mais capaz”.
O conceito de meritocracia é fortemente arraigado nos Estados Unidos, e o Brasil importou a retórica de que, por meio dela, qualquer pessoa pode chegar ao topo.
A meritocracia envolve a ideia de que, qualquer que seja a posição social no nascimento, a sociedade oferecerá oportunidades e mobilidade suficientes para que talento e esforço permitam ascender ao topo. Atualmente, essa concepção é a mais prevalente na esfera social e cultural.
O jurista Robert Reich, professor de políticas públicas na Universidade da Califórnia, em Berkeley, escreveu, em 15 de julho de 2014, artigo no qual relatava que três quartos dos americanos que se diziam conservadores acreditavam que “as pessoas pobres têm mais facilidade porque têm incentivos do governo sem precisarem fazer nada”, embora a maioria dos americanos pobres tivesse dois ou mais empregos.
Os homens e mulheres norte-americanos self-made, símbolos da meritocracia, estão desaparecendo. Seis em cada dez dos mais ricos dos Estados Unidos são herdeiros. Apenas seis herdeiros do Walmart possuem mais riqueza do que 42% de toda a base da população americana4.
Reich prossegue afirmando que levantamento do Tesouro americano revelou que a riqueza herdada é a principal forma de acúmulo patrimonial entre os millennials (geração nascida entre 1980 e 1994). Essa também foi, por séculos, a principal forma de riqueza na Europa — onde nasceu o economista e filósofo britânico John Stuart Mill.
John Stuart Mill era filho de James Mill, que, junto a Jeremy Bentham — fundador do utilitarismo —, defendia a teoria filosófica segundo a qual uma ação só pode ser considerada moralmente correta se for útil à sociedade. Ambos eram favoráveis, entre outras pautas, à tolerância religiosa, à liberdade de expressão e ao livre pensamento.
James Mill era filho de sapateiro e pequeno agricultor, tendo sido incentivado aos estudos por sua mãe. Com uma bolsa concedida pela comunidade presbiteriana, acompanhou uma nobre local a Edimburgo como tutor de sua filha e, ali, matriculou-se na universidade local em 1790. Por meio de seu trabalho em jornais, conheceu Jeremy Bentham5.
Ou seja, sem a bolsa da comunidade presbiteriana, sem o acompanhamento de uma nobre e sem o apoio de sua mãe, James Mill provavelmente não teria alcançado a posição que conquistou.
Já quanto a John Stuart Mill, ele nasceu em 1806, e James Mill conheceu Jeremy Bentham — filho de um rico advogado inglês — entre 1807 e 1808. Com três anos, Stuart Mill já estudava grego. Aos sete, leu seus primeiros diálogos de Platão. Sua infância foi marcadamente distinta da de seu pai: até os 14 anos foi criado sem contato com seus pares, mas, a partir dessa idade, passou a praticar esportes como equitação, esgrima e natação6.
John Stuart Mill, como se observa, era um produto da meritocracia, e por isso a defendia com convicção.
Reportagem da NBC, publicada em 14 de julho de 2020, apontou que, com o salário mínimo vigente nos Estados Unidos, trabalhadores não conseguem pagar por moradia em nenhuma parte do país.
Os trabalhadores com salário mínimo em período integral não conseguem pagar um aluguel de dois quartos em qualquer lugar dos Estados Unidos, e não podem custear um aluguel de um quarto em 95% dos condados do país, segundo o relatório anual Out of Reach da National Low Income Housing Coalition (NLIHC).
De acordo com o NLIHC, um trabalhador que receba o salário mínimo médio nos Estados Unidos precisaria trabalhar quase 97 horas por semana para pagar o valor justo de mercado por um imóvel de dois quartos e 79 horas semanais para custear um de um quarto. Isso corresponde a mais de dois empregos em tempo integral apenas para viabilizar o aluguel de um imóvel com dois quartos7.
Em 2018, amplamente noticiado pela mídia americana, uma mulher, ao cair na linha do trem em uma estação de Boston, sofreu um corte tão profundo na coxa esquerda que chegava próximo ao osso. Apesar das fortes dores, recusou que chamassem uma ambulância, pois não teria condições de pagar o transporte. Em 2012, o custo médio de transporte por ambulância nos Estados Unidos variava entre US$ 224 e US$ 2.2048.
Pesquisa do Censo dos Estados Unidos, de 2017, revelou que 19% dos norte-americanos não conseguiam pagar despesas médicas de forma antecipada ou no momento em que recebiam os cuidados. O estudo também apontou que 27,9% das famílias com chefe de família negro tinham dívidas médicas, contra 17,2% das famílias com chefe de família branco não hispânico e 9,7% das famílias com chefe de família asiático. Nos domicílios em que o nível de escolaridade mais elevado de qualquer membro era bacharelado ou pós-graduação/profissional, a probabilidade de relatar dívidas médicas foi consideravelmente menor (15,5% e 10,9%, respectivamente)9.
Fredrik deBoer, autor de Cult of Smart, destaca que a idade média de abandono escolar nos Estados Unidos é de 12 anos e que as crianças, mesmo frequentando a escola, não estão aprendendo o suficiente.
Reportagem da Forbes, de 11 de janeiro de 2021, informa que, desde o fim da Segunda Guerra Mundial, o QI aumentou cerca de três pontos por década nos países desenvolvidos — a escala de QI foi reajustada repetidamente para levar esse aumento em conta. Esse fenômeno é denominado efeito Flynn. Um fator quase certo para essa elevação foi a melhoria e a expansão do acesso à educação, indicando que, embora os genes influenciem a inteligência, ela pode ser incrementada por meio da educação. Contudo, em um momento em que a sociedade exige mais do que nunca inteligência e qualificação, o efeito Flynn entrou recentemente em reversão10.
Já no Brasil, segundo pesquisas reunidas no livro A cabeça do brasileiro, do cientista político Alberto Carlos Almeida, publicado em 2007, nada é mais vantajoso do que ser homem e branco.
Embora a obra tenha sido publicada há 15 anos, relatório do IBGE intitulado Síntese de Indicadores Sociais: Uma análise das condições de vida da população brasileira 2021 aponta que, em 2020, a maior parte da população desempregada era negra, empregada em subocupações e com menores rendimentos mensais. O nível de ocupação das mulheres era inferior ao dos homens, mesmo quando apresentavam maior escolaridade.
“Com relação à menor participação feminina na força de trabalho, a divisão por gênero das atividades domésticas deve ser pontuada, uma vez que a taxa de realização de afazeres domésticos no domicílio ou em domicílio de parente é superior para as mulheres, assim como a de cuidados de moradores ou de parentes não moradores, fatores comumente abordados em relatórios estatísticos e na literatura acadêmica”11.
O recorte por cor ou raça demonstra que, dentre o total de pessoas ocupadas, 46% se declaravam brancas e 53% pretas ou pardas. Entretanto, a comparação por atividades econômicas revela uma característica importante da segmentação ocupacional e a persistência da segregação racial no mercado de trabalho. A presença de pretos ou pardos era mais acentuada nas atividades de agropecuária (60,7%), construção (64,1%) e serviços domésticos (65,3%) — justamente as ocupações com rendimentos inferiores à média em todos os anos da série histórica.
Por outro lado, setores como informação, atividades financeiras e outras atividades profissionais, além da administração pública, educação, saúde e serviços sociais — cujos rendimentos foram bastante superiores à média — contrataram, proporcionalmente, mais pessoas brancas12.
O sociólogo Michael Young, no livro The Rise of Meritocracy, afirma que escolas e indústrias operam com base no mérito e, por conseguinte, as crianças mais inteligentes de cada geração têm oportunidade de ascender socialmente:
Cada classe social tem, em habilidade, a miniatura da sociedade por si só. A parte é a mesma como o todo. A mudança fundamental do último século, que começou antes de 1963, é que a inteligência está sendo redistribuída entre classes e a natureza das classes mudou. Aos talentosos foi dada a oportunidade de subir de nível de acordo com suas capacidades, e aos das classes baixas, consequentemente, reservados para os que têm menos habilidades. A parte não é mais de longe, como o todo. A taxa de progresso social depende de qual poder coincide com inteligência. A Inglaterra de um século atrás desperdiçou seus recursos condenando até pessoas talentosas ao trabalho manual; e bloqueou os esforços de membros de classes baixas a obter justo reconhecimento de suas habilidades13.
Young destaca que “cada seleção de um é a rejeição de muitos”14, e critica a elite, que, com seus conhecimentos e conexões, consegue colocar seus filhos em boas escolas e bons empregos. Assim, crianças com habilidades acabam abandonando os estudos precocemente para trabalhar, enquanto crianças com poucas habilidades, mas com “ricas conexões” familiares, tornam-se altos funcionários no exterior.
Para ele, a meritocracia utilizaria recursos cada vez mais precisos e testes cada vez mais precoces de inteligência para classificar as pessoas nas escolas, universidades e, eventualmente, nos empregos. Tal classificação resultaria em uma estratificação social por habilidade — enorme, estável e completa.
O autor reprova a educação elitizada por sua limitação, observando que o feudalismo produziu um número de crianças que herdaram poder, posição e riqueza. Enfatiza, ainda, a recorrência de filhos doutores cujos pais também eram doutores. Por outro lado, ressalta que outras crianças esforçam-se ao máximo, com assiduidade e treinamento, para cumprir a instrução de Goethe: “Para você realmente possuir o que você herda, primeiro você deve conquistá-lo por seu mérito” (YOUNG, 1961, p. 23-25).
Young adverte que as desigualdades podem se tornar tão acentuadas que se converterão em instrumentos de violência.
Michael Sandel, no prólogo do livro The Tyranny of Merit, observa que, quando a pandemia de COVID-19 atingiu os Estados Unidos, em 2020, muitas pessoas foram surpreendidas sem condições de trabalhar remotamente e, por isso, perderam seus empregos e salários. Tal cenário levou os winners (vencedores) a atribuir seu próprio sucesso unicamente ao mérito e a olhar com desdém para os losers (perdedores).
No início de sua obra, Sandel relata um caso ocorrido em 2019, quando estudantes do ensino médio aguardavam ansiosos as notas para ingresso em universidades de elite, como Yale, Stanford, Georgetown e Universidade do Sul da Califórnia. Nesse contexto, trinta e três pais ricos foram acusados de corrupção, envolvidos em um esquema para garantir a admissão de seus filhos nessas instituições.
No centro da situação encontrava-se o conselheiro universitário William Singer, cuja empresa era especializada em admissões de estudantes em faculdades de elite — porta de entrada para prestígio e prosperidade. Uma família chegou a pagar US$ 1,2 milhão para que sua filha fosse admitida em Yale como recruta de futebol, embora não praticasse o esporte. Desse montante, US$ 400 mil foram destinados ao treinador de futebol da instituição.
Esse episódio, ocorrido em 2019, confirma o que Michael Young já havia apontado: crianças sem habilidades, mas com dinheiro e ricas conexões, têm mais facilidades que crianças pobres e talentosas, cujos familiares não dispõem de influência nem recursos financeiros.
Em Yale, há mais alunos provenientes das famílias que compõem o 1% mais rico do país do que dos 60% mais pobres. Essa desigualdade decorre tanto das vantagens que impulsionam jovens de famílias abastadas a ingressar pela “porta da frente” — via processos seletivos regulares — quanto daquelas que permitem o ingresso pela back door (porta dos fundos), prática não proibida nos Estados Unidos, pela qual doações dos pais podem assegurar uma vaga na prestigiada universidade. No entanto, mesmo nessas doações, Singer afirmava não poder garantir a admissão; já por meio de subornos e corrupção — esquema que denominou side door (porta lateral) — a vaga era certa.
Sandel revela que essa obsessão pela admissão em faculdades de prestígio reflete a crescente desigualdade: pais de classes afluentes temem perder suas conquistas e veem a aceitação em uma universidade renomada como caminho primário para alcançar ascensão ou manter-se em suas confortáveis posições sociais, protegendo os filhos de uma classe média economicamente vulnerável (SANDEL, 2021, p. 15-18).
Em uma sociedade desigual, aqueles que chegam ao topo tendem a acreditar que seu sucesso é moralmente justificado. Em uma sociedade meritocrática, isso significa que os vencedores devem crer que conquistaram sua posição por meio de talento e esforço próprios15.
Sandel prossegue afirmando que a meritocracia gerou, na classe trabalhadora, ressentimento e perplexidade diante do deslocamento forçado de sua posição, já que o mundo globalizado atual não comporta mais a ideia de uma carreira ao longo da vida. O que importa agora é inovação, flexibilidade, empreendedorismo e disposição constante para adquirir novas habilidades.
Muitos trabalhadores ressentem-se do fato de suas carreiras terem sido rapidamente substituídas por robôs ou por mão de obra mais barata em países pobres ou em desenvolvimento, com custos reduzidos e legislações trabalhistas frágeis ou inexistentes.
Dois terços dos estudantes de Harvard e Stanford vieram do topo da pirâmide socioeconômica, já que essas universidades contam com mais alunos oriundos do 1% mais rico do país — famílias com renda anual superior a US$ 630 mil. Esse dado evidencia que trabalho árduo e talento, isoladamente, não sustentam a retórica da meritocracia: a mobilidade social já não compensa a desigualdade.
Assim, a meritocracia funcionaria como um instrumento ideológico, e o mito da mobilidade social seria utilizado para criar a ilusão de igualdade de condições que, na prática, não existe.
Victor Hugo, em Os Miseráveis, apresenta o personagem Jean Valjean, que passa 19 anos nas galés por ter roubado um pão para alimentar os sobrinhos e por suas tentativas de fuga. Já Fantine vende os dois dentes da frente para enviar dinheiro destinado ao sustento da filha, Cosette. Como o valor obtido não foi suficiente, ela acaba recorrendo à prostituição.
Quantos Jean Valjeans e Fantines, ainda hoje, em pleno 2022, existem no mundo? A resposta é impossível de se obter. Este artigo não busca defender a criminalidade com base em exemplos literários, mas estimular a reflexão crítica sobre a sociedade em que vivemos.
Reportagem do jornal The Guardian, de 23 de janeiro de 2022, relata que, nas favelas do Afeganistão, pais têm vendido seus rins para sustentar os filhos em temperaturas abaixo de zero e para pagar dívidas e contas básicas.
Algumas mães já venderam suas filhas por 100.000 afghani — equivalente a £700 — para pagar despesas hospitalares de outros filhos, que sofrem de paralisia e doença mental, além de medicamentos para o marido16.
Sem emprego disponível, o comércio ilegal paga cerca de £1.100 por um rim. Algumas pessoas, após a cirurgia, desenvolvem complicações e não recebem atendimento médico. Um dos entrevistados, que havia vendido seu órgão, declarou ao médico: “Estou feliz com a minha própria morte, mas não suporto ver meus filhos com fome e doentes”.
No romance de Victor Hugo, a personagem Éponine, ao impedir seu pai e comparsas de assaltarem a casa de Jean Valjean, afirma: “Que me importa a mim que me encontrem estendida no meio da rua Plumet, morta às facadas por meu pai, ou que dentro de um ano me achem nas redes de Saint-Cloud, ou na Ilha dos Cisnes no meio dos farrapos podres e dos cães afogados!”.
A vida real, em 2022, mostra-se assombrosamente parecida com as situações vividas pelos miseráveis de Victor Hugo — em ambos os casos, há quem encare a morte como alívio para o sofrimento extremo.
Embora não se trate de situação ocorrida no Brasil, é preciso lembrar como a pandemia de COVID-19 afetou famílias no país e como inúmeros discursos meritocráticos invadiram as redes sociais, questionando o número de filhos de determinadas famílias, a falta de escolaridade de outras e a gravidez na adolescência em diversos casos.
Trazendo novamente à reflexão Victor Hugo, com um trecho que se encaixa perfeitamente neste contexto:
O futuro chegará? Parece que se pode quase fazer esta pergunta, quando se veem tantas sombras terríveis. Sombras face a face dos egoístas e dos miseráveis. Nos egoístas, os preconceitos, as trevas da educação rica, o apetite crescendo pelo inebriamento, uma atordoação de prosperidade que ensurdece, o receio de sofrer que, em alguns, chega até à aversão pelos que sofrem, um contentamento implacável, o eu tão inchado que fecha a alma; nos miseráveis, a cobiça, a inveja, a raiva de ver os outros gozar, os profundos abalos da besta humana para as saciedades, os corações cheios de nevoeiro, a tristeza, a fatalidade, a ignorância, impura e simples. Deve continuar-se a erguer os olhos para o céu?17
Michael Sandel acrescenta que a meritocracia traz consigo também um problema moral: a arrogância entre os vencedores e a sensação de humilhação entre os perdedores.
O livro A cabeça do brasileiro, do cientista político Alberto Carlos Almeida, evidencia esse traço da sociedade brasileira, conforme argumentado às fls. 75:
Roberto DaMatta imortalizou esse caráter predominante na sociedade brasileira por meio da sentença, ainda muito usada, “você sabe com quem está falando?”. Os valores hierárquicos devem ser entendidos em oposição aos valores igualitários. Os que compartilham de uma visão hierárquica de mundo consideram que há posições predefinidas e, portanto, deve-se esperar que cada um desempenhe o papel determinado por sua condição social18.
Almeida vai além ao expor que aqueles que aparentam ser ricos recebem melhor tratamento em repartições públicas, ao contrário dos que aparentam ser pobres.
De forma nada surpreendente, a meritocracia está bem enraizada em nossa sociedade:
“Há sempre alguém no topo da hierarquia, seja o patrão ou o governo; há um superior e um inferior, e o primeiro tem mais direitos do que o segundo justamente por ser superior”19.
Roberto DaMatta é ainda mais assertivo, ao afirmar que a sociedade brasileira sempre encontra maneiras de hierarquizar-se. No caso do Brasil, a expressão “você sabe com quem está falando?” permitiria transitar do anonimato — que revelaria igualdade e individualismo — para uma posição bem definida, que expressaria hierarquia e pessoalização:
O “sabe com quem está falando”, além de não ser motivo de orgulho para ninguém — dada a carga considerada antipática e pernóstica da expressão — fica escondido de nossa imagem (e autoimagem) como um modo indesejável de ser brasileiro, pois que revelador do nosso formalismo e da nossa maneira velada (e até hipócrita) de demonstração dos mais violentos preconceitos20.
O autor prossegue apontando que o “sabe com quem está falando” possui inúmeras variantes no Brasil, ao passo que, nos Estados Unidos, a sociedade tende a situar o homem como igual, indagando ao brasileiro que fura a fila da alfândega: “quem você pensa que é?”:
Além dessas condições gerais, o “sabe com quem está falando?” tem inúmeras variantes, seus equivalentes: “quem você pensa que é?”, “onde você pensa que está?”, “recolha-se à sua insignificância”, “mais amor e menos confiança”, “vê se te enxerga”, “você não conhece o teu lugar?”, “veja se me respeita”, “será que não tem vergonha na cara?”, “mais respeito!” etc. As expressões podem realizar o mesmo ato expressivo e consciente que, na sociedade brasileira, parece fundamental para o estabelecimento (ou restabelecimento) da ordem e da hierarquia21.
Essa lógica hierárquica se reproduz também nas relações familiares e domésticas, quando filhos e esposas se utilizam da identidade de pais e maridos socialmente influentes, apresentando-se como “filho” ou “esposa de fulano de tal”. Empregadas domésticas, por sua vez, adotam postura semelhante ao se identificar com suas patroas.
A expressão permitiria a identificação por meio da projeção social, mas também evitaria a tomada de consciência horizontal — quanto mais consciência vertical, mais presente estaria a ideia de inferioridade e autoridade.
O sistema iguala num plano e hierarquiza no outro, promovendo uma complexidade classificatória intensa e um grande sentimento de compensação e complementaridade, o que certamente impede a tomada de consciência social horizontal. Em contrapartida, facilita-se a consciência vertical: o empregado identifica-se, em certas ocasiões, com o patrão; a empregada, com a casa onde trabalha; o trabalhador, com a empresa que o emprega; e a empresa e seus empresários, com determinados órgãos do Estado. No Brasil, tudo indica que o Estado é o domínio responsável pela totalização de todo o sistema, em sua vertente formal e acabada22.
DaMatta apresenta uma série de situações em que o uso dessa expressão funciona como forma de diferenciação social, desnudando o que estaria por trás dela:
Como temos visto, não basta apenas a posição no mundo dos negócios — diríamos hoje, no mundo empresarial. Isso será suficiente na França ou nos Estados Unidos. No Brasil, é preciso traduzir e legitimar o poderio econômico no idioma hierarquizante do sistema. E esse idioma revela as linhas das classificações fundadas na pessoa, na intelectualidade e na consideração por uma rede de relações pessoais. É necessário então ser doutor e sábio, além de rico. E estar penetrado por alguma instituição ou corporação perpétua, como as Forças Armadas ou algum órgão do Estado. Os “doutores”, assim, substituíram — como nos indica Freyre (1962:304) — os comendadores, barões, viscondes e conselheiros do Império. E sugere o modo de manter a nobreza e as distinções hierárquicas, mas usando outros recursos de diferenciação social.
Sandel leciona que a arrogância meritocrática reflete a tendência dos vencedores de “inalar profundamente” seu próprio sucesso, esquecendo-se da sorte e da boa fortuna que os permitiram chegar ao topo. No caso do Brasil, além disso, é preciso lidar com a hierarquização e contar com a “sorte” de, ao nascer pobre, ser ao menos apresentável para receber tratamento digno.

As chances de uma pessoa alcançar degraus mais altos na sociedade podem depender do degrau em que ela inicia. Quando a educação meritocrática concentra o treinamento nos filhos de pais ricos e direciona os estudantes da elite para a riqueza, isso prejudica a igualdade de oportunidades, pois crianças ricas acabam excluindo as de classe média das escolas de elite. As oportunidades da elite transformam-se em obstáculos para a classe média, e a elite bloqueia seu acesso. O valor de qualquer ascensão depende da distância entre os degraus da escada social e econômica, marcada pelas diferenças de renda e de status na sociedade. Quando a meritocracia polariza o mercado de trabalho, substituindo funções tradicionalmente exercidas pela classe média, as desigualdades de oportunidade se agravam (MARKOVITS, 2019, p. 264).
Estudo do Fórum Econômico Mundial, de 2020, revela que, entre 82 países pesquisados, o Brasil ocupa a 60ª posição em mobilidade social. No país do “sabe com quem está falando”, um brasileiro nascido no menor patamar de renda levaria, em média, nove gerações para alcançar a renda média nacional23.
De forma nada surpreendente, a meritocracia também se faz presente no relatório, que aponta:
“Em todas as economias, as crianças nascidas em famílias menos abastadas tendem a experimentar maiores barreiras ao sucesso do que aquelas nascidas em famílias mais abastadas. Essas desigualdades de oportunidades podem tornar-se enraizadas e promover, a longo prazo, desigualdades econômicas, bem como profundas clivagens econômicas e sociais”24.
Segundo o estudo, a educação de qualidade é um forte equalizador de oportunidades, e os países devem considerar o aumento de seus investimentos no setor, com foco em programas voltados para crianças e jovens em situação de vulnerabilidade. Pesquisas indicam que maiores gastos com educação estão associados a níveis mais elevados de mobilidade social.
O gráfico abaixo, extraído do relatório, demonstra essa correlação:
O Brasil ocupa a 57ª posição em acesso geral à educação; a 64ª posição em acesso à saúde; a 65ª posição no acesso à educação de qualidade e na igualdade de acesso; a 69ª posição em acesso à oportunidade de trabalho; a 74ª posição em instituições inclusivas; a 64ª posição em distribuição justa de salários; e a 80ª posição em aprendizagem ao longo da vida.
Alberto Carlos Almeida já retratava, em 2007, que a maior parte da população brasileira possuía baixa escolaridade e, por consequência, apoiava o “jeitinho brasileiro”, era hierárquica, fatalista, patrimonialista, não confiava nos amigos, não tinha espírito público, defendia a “Lei de Talião”, era contrária ao liberalismo sexual, favorável à censura e favorável a maior intervenção do Estado na economia (ALMEIDA, 2007, p. 26).
Embora o livro tenha sido escrito em 2007 e muitas mudanças tenham ocorrido no Brasil desde então, graças a políticas públicas, o relatório de 2020 evidencia que ainda há muito a ser feito.
Pesquisa realizada pela Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes), em 2018, apontou que o Sistema de Seleção Unificada (SISU) — sistema informatizado que utiliza as notas obtidas no Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) para alocar candidatos às instituições federais credenciadas —, combinado com a Lei Federal nº 12.711/2012, conhecida como Lei de Cotas, possibilitou a estudantes do ensino médio ingressarem em universidades públicas.
O perfil socioeconômico dos estudantes, apurado entre 2003 e 2004, indicou que 42,8% pertenciam às classes de renda C, D e E, cuja renda familiar média mensal atingia, no máximo, R$ 927,00 — valor enquadrado na faixa de vulnerabilidade social. Em 2010, essa porcentagem aumentou para 43,7%.
A partir dos dados de 2003, nota-se crescimento da participação de pardos e pretos nas universidades federais contempladas pela pesquisa. Tal avanço é resultado da adoção de políticas de ação afirmativa, implantadas de forma pontual e autônoma a partir de 2005 e expandidas por todo o sistema de educação superior federal, especialmente após a criação do Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (Reuni), em 2007, e da instituição de um programa federal obrigatório de ação afirmativa pela Lei nº 12.711/2012. Entre 2003 e 2018, a participação de estudantes pardos cresceu 11 pontos percentuais, enquanto a de estudantes pretos mais que dobrou25.
Em 2014, quando as cotas raciais nas universidades federais já acumulavam quase dez anos de existência e a Lei nº 12.711/2012 (Lei de Cotas) estava em seu segundo ano de implantação, a soma de pretos e pardos entre os graduandos ultrapassou, pela primeira vez, a de brancos. Naquele ano, sua participação era apenas 1,9 ponto percentual superior à de seus colegas brancos. Em 2018, essa diferença atingiu 7,9 pontos percentuais, marca expressiva diante do histórico de exclusão desses grupos de espaços de prestígio social e poder, como as universidades públicas26.
Quanto ao critério de renda familiar, a pesquisa revelou que 70,2% do universo pesquisado possuíam renda mensal de até um salário mínimo e meio. Do total de estudantes, 26,6% viviam em famílias com renda familiar per capita de até meio salário mínimo (SM) e 26,9% com renda per capita superior a meio SM e até 1 SM. Assim, mais da metade (53,5%) dos graduandos pertencia a famílias com renda mensal per capita de até 1 SM. Na faixa de renda per capita superior a 1 SM e até 1,5 SM encontravam-se 16,6% dos estudantes; na faixa acima de 1,5 SM, 26,9%; e 3,0% não responderam. Em números absolutos, 319.342 estudantes estavam na faixa de renda per capita de até meio SM27.
O relatório traz observação de grande relevância, formulada pelos pesquisadores:
“É importante notar que, em um país marcado por profundas desigualdades sociais e educacionais, o(a) estudante universitário(a) não faz parte da camada mais pobre da população, já que os setores mais pobres e miseráveis nem mesmo chegam a concluir o ensino médio, principal fator de exclusão ao ensino superior”28.
A camada mais pobre e miserável encontra-se, em grande parte, nas comunidades, enfrentando forte insegurança alimentar, chegando a formar filas para receber ossos como forma de obter carne para o consumo. Como falar em meritocracia para essas pessoas? São preguiçosas? Não estariam fazendo o suficiente? Por que tiveram tantos filhos? É mais fácil atacá-las com preconceito do que buscar resolver o problema — que é mais complexo do que se imagina — e cuja solução passa, necessariamente, pela implementação de políticas públicas voltadas aos vulneráveis.
Essas políticas não podem ser tratadas como favores, visto que a maior parte da renda dos pobres destina-se à alimentação, e impostos são recolhidos quando compram alimentos, fraldas ou medicamentos.
No Brasil, os pobres sempre foram os mais afetados pelas altas nos preços dos alimentos — e não foi diferente durante a pandemia.
“O Brasil é o país onde somente o gasto das famílias mais ricas com a alimentação é 165,5% maior do que a renda total de famílias mais pobres. Entre os que têm maior renda, o valor desembolsado na compra de alimentos representa apenas 5% dos rendimentos, enquanto as pessoas mais pobres destinam mais de um quarto (26%) do que ganham para comprá-los”29.
O livro Quarto de Despejo, de Carolina Maria de Jesus, retrata o Brasil miserável sob a perspectiva de uma mulher negra, moradora de favela. Meritocrática? Talvez a palavra mais adequada seja “negligenciada”, pois capacidade demonstrou ter: sua obra foi traduzida para mais de vinte idiomas.
“E assim, no dia 13 de maio de 1958 eu lutava contra a escravatura atual — a fome!”30
“ Deixei o João e levei só a Vera e o José Carlos. Eu estava tão triste! Com vontade de me suicidar. Hoje em dia quem nasce e suporta a vida até a morte deve ser considerado herói”31.
Os efeitos da implementação de novos mecanismos de recrutamento de discentes para as Instituições Federais de Ensino Superior (IFES) — que levou à substituição total ou parcial dos tradicionais vestibulares pelo Sistema de Seleção Unificada (SISU) —, bem como da adoção da política de cotas, são claramente verificados na análise dos “Meios de ingresso” e “Formas de ingresso” segundo a “Faixa de ano de ingresso”.
O percentual de negros (pretos quilombolas, pretos não quilombolas e pardos) alcançou, pela primeira vez no espectro temporal das pesquisas de perfil da Andifes/Fonaprace, a maioria absoluta do universo pesquisado. Ainda que o perfil de cor ou raça da população brasileira também tenha se alterado, de 2014 para 2018, o aumento de pretos, pardos e indígenas identificado pela V Pesquisa foi superior ao crescimento populacional.
Também cresceu o percentual de estudantes com renda mensal familiar per capita de até 1,5 salário mínimo (SM): de 66,2% em 2014 para 70,2% em 2018 — um aumento de 4 pontos percentuais. Ou seja, em 2018, sete a cada dez discentes estavam incluídos nesse perfil de renda, coberto pelo Programa Nacional de Assistência Estudantil (PNAES)32.
Observa-se, portanto, que, graças às políticas públicas, muitos estudantes têm conseguido chegar ao ensino superior. Contudo, é preciso frisar que a camada mais pobre e miserável da população nem sequer conclui o ensino médio, e que o relatório analisado abrange apenas universidades federais.
Segundo a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), o Brasil tem uma das piores taxas de ensino superior do mundo. O relatório Education at a Glance 2019 aponta que apenas 21% dos brasileiros entre 25 e 34 anos possuem ensino superior completo33.
Assim, mesmo com políticas públicas, o país ainda enfrenta grandes dificuldades para avançar na educação, sobretudo porque muitos que ingressam nas universidades desistem no meio do curso — seja por falta de condições financeiras, seja por não conseguirem acompanhar o ritmo das aulas, em razão da formação precária recebida em escolas públicas, fruto do sucateamento histórico da educação no Brasil.
Mesmo com arrecadação recorde de R$ 1,87 trilhão em 2021, ao sancionar o orçamento de 2022 o então presidente Jair Bolsonaro cortou verbas da educação, do INSS, da saúde e do meio ambiente. O corte totalizou R$ 3,2 bilhões34.
Publicação de 18 de março de 2021 destacou que:
“As universidades federais calculam uma redução da ordem de R$ 1,2 bilhão no orçamento para este ano, valor que ameaça a permanência de estudantes mais vulneráveis e até mesmo pesquisas de combate à covid-19. Com a previsão de cortes, as instituições já estão reduzindo bolsas destinadas a alunos, o que pode levar ao aumento da evasão de estudantes de graduação”.
O presidente da Andifes e reitor da Universidade Federal de Goiás (UFG), Edward Madureira, declarou:
“Para atender os estudantes vulneráveis, os recursos do Pnaes (Plano Nacional de Assistência Estudantil) teriam de ser de R$ 1,5 bilhão. Já temos evasão porque o recurso é insuficiente. Com 20% a menos do Pnaes, o impacto na evasão é imediato”35.
Sandel explicita que a meritocracia deixa pouco espaço para a solidariedade e infunde no indivíduo uma sensação de autossuficiência, afastando-o da noção de destino comum e transformando a meritocracia em verdadeira tirania.
O emprego da palavra “indivíduo” aqui não é fortuito. Roberto DaMatta explora a dialética entre indivíduo e pessoa. No Brasil, “indivíduo” é muitas vezes usado com conotação pejorativa, associado a “gente sem princípios” e frequentemente empregado em crônicas policiais. O termo remete ao sentido literal de individualização: a realidade de alguém incapaz de dividir-se, de doar-se socialmente.
Permanecendo indivisa, essa criatura não se conecta à sociedade, não é penetrada por ela — o que ocorre quando se é uma “pessoa”. Daí o individualismo, no Brasil, também ser entendido como sinônimo e expressão cotidiana de egoísmo, sentimento ou atitude socialmente condenada36.
No contexto brasileiro, marcado pelo “sabe com quem está falando”, o termo “pessoa” permite a transição do anonimato — que revela igualdade e individualismo — para uma posição socialmente definida, que expressa hierarquia e pessoalização.
Considerando que tratamos de meritocracia e da carga moral que a acompanha, opta-se aqui pelo uso da expressão “indivíduo” em vez de “pessoa”.
Sandel também questiona o uso político da meritocracia, citando candidatos que afirmam em campanhas que “o seu destino está em suas mãos” e que “você pode conseguir, se tentar”.
Todavia, o que parece escapar à compreensão de muitos políticos que defendem a meritocracia é que boa parte da população não consegue sequer tentar, por não dispor de condições mínimas para isso — como demonstrado anteriormente.
Sandel denomina esse efeito de “política da humilhação”:
“Para aqueles que não conseguem encontrar trabalho ou sobreviver, é difícil escapar do pensamento desmoralizante de que o fracasso é obra deles, que simplesmente não têm talento e vontade de ter sucesso”37.
Michael Young já antecipava reflexão semelhante, observando que a classe baixa é condicionada a se perceber como inferior e, mesmo tentando uma, duas ou três vezes, acaba desistindo, convencida de que “é burra”:
Hoje, todas as pessoas, por mais humildes que sejam, sabem que tiveram todas as oportunidades. Elas são testadas de novo e de novo. Se em uma ocasião estiverem fora do prumo, terão uma segunda, uma terceira e uma quarta oportunidade para demonstrar sua habilidade. Mas se forem rotuladas de “burros” repetidamente, não poderão sequer tentar novamente; sua imagem de si mesmas se torna mais próxima de uma realidade pouco lisonjeira. Não são obrigadas a reconhecer que têm um status inferior — não como no passado, porque lhes foi negada oportunidade; mas porque são inferiores? Pela primeira vez na história humana, o homem inferior não tem um suporte pronto para sua autoestima. Isso apresentou à psicologia contemporânea seu problema mais grave. Os homens que perderam sua autorresposta estão sujeitos a perder sua vitalidade interior (especialmente se forem inferiores a seus próprios pais e se enquadrarem na escala social correspondente) e podem facilmente deixar de ser bons cidadãos ou bons técnicos38.
A política da humilhação transmite a ideia de que os ricos o são por mérito, enquanto os pobres também merecem sua condição, seja por não terem se esforçado o suficiente, seja por serem, supostamente, “burros”.
No romance de Victor Hugo, a sensação de desprezo persegue os miseráveis de forma contundente. Quando Jean Valjean se encontra com Mário, então marido de Cosette, e revela quem realmente é — um “desgraçado” —, expressa:
“Perseguem-me, denunciam-me, prendem-me! Quem? Eu mesmo! Eu é que embaraço o caminho a mim mesmo, me arrasto e me empurro, me prendo e me executo, e quem a si mesmo prende escusa de tentar fugir, que o não consegue!”.
Estudos indicam que a inteligência, além de ter componente genético, está relacionada ao meio em que se vive. Como já destacado neste artigo, embora haja associação genética, a educação é capaz de impulsionar o aumento do QI.
“Estudos sugerem que os fatores genéticos estão por trás de cerca de 50% da diferença de inteligência entre os indivíduos. [...] A inteligência também é fortemente influenciada pelo ambiente. Fatores relacionados ao ambiente doméstico e parental de uma criança, educação e disponibilidade de recursos de aprendizagem e nutrição, entre outros, contribuem para a inteligência. O ambiente e os genes de uma pessoa influenciam uns aos outros, e pode ser um desafio separar os efeitos do ambiente dos da genética. Por exemplo, se o QI de uma criança é semelhante ao de seus pais, essa semelhança se deve a fatores genéticos transmitidos de pai para filho, a fatores ambientais compartilhados ou (mais provavelmente) a uma combinação de ambos? É claro que fatores ambientais e genéticos desempenham um papel na determinação da inteligência”39.
Estudo publicado na Nature, em 2017, destacou que até 80% das diferenças de inteligência podem ser determinadas geneticamente40. Contudo, essa determinação é também interligada ao meio, o que significa que famílias pobres, vivendo em ambientes hostis, sem saneamento básico, alimentação adequada, recursos educacionais ou estabilidade familiar, têm suas chances ainda mais reduzidas de ascender na sociedade meritocrática.
A baixa escolaridade é igualmente associada à adesão a teorias conspiratórias. Pesquisas indicam que indivíduos são mais propensos a endossar tais teorias quando se sentem alienados, impotentes, desfavorecidos e quando manifestam desconfiança em relação aos outros.
O baixo nível educacional também contribui para o afastamento das pessoas do processo eleitoral, uma vez que esse grupo tende a apresentar maiores índices de abstenção no voto.
O primeiro estudo, de autoria da psicóloga Karen Douglas e colaboradores, publicado em 2016 na revista Thinking & Reasoning, associa menores níveis de escolaridade à maior propensão para acreditar em teorias conspiratórias. O segundo estudo, de autoria do psicólogo Jan-Willem van Prooijen e publicado na revista Applied Cognitive Psychology, identifica dois fatores mediadores adicionais: o ceticismo quanto à ideia de que problemas complexos possam ter soluções simples e a percepção de maior controle sobre os acontecimentos41.
Segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD) de 2019, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), mais da metade da população brasileira com 25 anos ou mais não concluiu a educação básica. Isso corresponde a 69,5 milhões de adultos (51,2%) que não completaram alguma das etapas que compõem o ensino infantil, fundamental ou médio.
A pesquisa mostra que a maior parte desse contingente não concluiu o ensino fundamental (32,2%), sendo que apenas 8% completaram esse nível. Já 4,5% da população apresentava ensino médio incompleto, enquanto 6,4% não possuíam qualquer instrução.
A análise por região revela que, no Nordeste, três em cada cinco adultos (60,1%) não completaram o ensino médio, enquanto nas regiões Sudeste e Centro-Oeste mais da metade da população de 25 anos ou mais havia concluído esse nível de ensino.
No que se refere ao ensino superior, apenas 17,4% da população acima de 25 anos o concluiu. Entre os principais motivos para a evasão escolar, destacam-se a necessidade de trabalhar (39,1%) e a falta de interesse (29,2%). Entre os homens, 50% alegaram necessidade de trabalhar e 33% declararam desinteresse. Entre as mulheres, os principais fatores foram gravidez e necessidade de trabalhar (ambos com 23,8%), desinteresse (24,1%) e afazeres domésticos (11,5%).
Quanto à variável cor ou raça, verificou-se que, entre as pessoas brancas, 17% não trabalhavam nem estudavam, percentual que chega a 25,3% entre pretos e pardos. Além disso, 17% dos brancos trabalhavam e estudavam simultaneamente, enquanto entre pretos e pardos esse percentual foi de apenas 12,4%42.
Não se deve olvidar que o Brasil possui a 4ª maior taxa de desemprego do mundo. Conforme dados do IBGE, no 3º trimestre de 2021 havia 13,5 milhões de desempregados (desocupados), o que representava uma taxa de 12,6%. O número de desalentados chegava a 5,1 milhões e a taxa de subutilização da força de trabalho atingia 26,5% no mesmo período43.
O professor de Direito da Universidade de Yale, Daniel Markovitz, cunhou a expressão cilada da meritocracia para descrever a contradição entre o ideal meritocrático — de promoção da igualdade e ampliação de oportunidades antes restritas à elite — e sua efetiva aplicação. Segundo o autor, na prática, crianças de classe média vêm perdendo espaço para crianças ricas, e adultos de classe média vêm sendo substituídos por adultos oriundos das elites nos postos de trabalho mais valorizados.
Para Markovitz, “a meritocracia bloqueia a classe média de oportunidades”44, ao mesmo tempo em que também impõe ônus à própria elite, que se vê compelida a investir quantias vultosas na educação de seus filhos em instituições de alto custo. Além disso, os empregos considerados meritocráticos exigem cada vez mais de seus ocupantes, de forma a explorar ao máximo suas qualificações e gerar maior retorno sobre o investimento feito em sua formação.
Essa lógica, afirma o autor, expulsa gradativamente a classe média da economia e da vida social, ao concentrar os polos de inovação e criatividade — como os encontrados no Vale do Silício — em uma elite cada vez mais restrita:
“Através da meritocracia, as elites monopolizam cada vez mais não apenas a renda, a riqueza e o poder, mas também a indústria, a honra pública e a estima privada. A meritocracia exclui de forma abrangente a classe média da vantagem social e econômica, e ao mesmo tempo recruta sua elite em uma disputa ruinosa para preservar a casta”45.
Exemplo dessa lógica excludente pode ser observado na reportagem publicada pelo site Bloomberg, em 3 de dezembro de 2021, que denuncia a importação, por empresas de tecnologia do Vale do Silício — como a Cisco —, de preconceitos baseados no sistema de castas indiano. Nesse contexto, profissionais indianos altamente qualificados, mas pertencentes à casta dalit (considerada inferior), enfrentam barreiras na contratação. Para muitos deles, a presença em universidades de elite é acompanhada por lembranças constantes de sua condição social, agravadas pelo estigma de terem ingressado por cotas e não por “mérito”. Amit Jatav, um dalit oriundo de Karauli, relatou que, durante a faculdade, era sistematicamente excluído de grupos de estudo, jantares e eventos sociais46.
Tais divisões de classe na Índia continuam a influenciar, de maneira marcante, o cotidiano de grande parcela da população, determinando padrões de trabalho, práticas religiosas, hábitos alimentares, relações matrimoniais, propriedade de terras e até comportamentos eleitorais.
Markovitz observa que as instituições de elite — como as universidades da Ivy League —, bem como centros de inovação e finanças, transformam-se em arenas para a ambição da elite global:
“A meritocracia transforma a Ivy League, o Vale do Silício e Wall Street em arenas para a ambição da elite. Inovadores nesses lugares podem refazer o mundo da vida, transformando a internet (em Stanford e Google), mídias sociais (em Harvard e Facebook), finanças (em Princeton e Wall Street em geral) e milhares de outros domínios menores”47.
Na sua análise, a elite converteu o mercado de trabalho em uma espécie de hobby, enquanto a população comum permanece submetida a uma rotina laboral intensa, sem correspondente recompensa econômica ou social.
A publicação Síntese de Indicadores Sociais, divulgada pelo IBGE em 2020, apresentou estimativas do Banco Mundial baseadas no índice de Gini — instrumento criado pelo matemático italiano Conrado Gini para medir o grau de concentração de renda em determinado grupo populacional. O índice varia de zero (perfeita igualdade) a um (máxima desigualdade).
Nesse ranking da desigualdade, o Brasil apresentou, com base em dados de 2018, índice de 0,539, situando-se entre os dez países mais desiguais do mundo e sendo o único representante latino-americano na lista, composta majoritariamente por países africanos. Tal posição evidencia que a desigualdade brasileira supera, inclusive, a de Botsuana (0,533), país com pouco mais de dois milhões de habitantes, vizinho à África do Sul48.
A Síntese de Indicadores Sociais analisa as condições de vida da população brasileira considerando tanto as linhas de pobreza sugeridas pelo Banco Mundial quanto os critérios utilizados em programas sociais do Governo Federal. Em 2020, havia 7,3 milhões de pessoas (3,5% da população) com rendimento mensal per capita de até R$ 89, valor abaixo da linha de extrema pobreza do Programa Bolsa Família. Pela metodologia do Banco Mundial (renda inferior a US$ 1,90/dia, equivalente a R$ 155 mensais per capita), esse contingente chegava a 12 milhões de pessoas (5,7% da população). Já abaixo da linha de corte do Benefício de Prestação Continuada – BPC (R$ 261 mensais per capita) encontravam-se 22 milhões de brasileiros (10,5% da população)49.
O relatório também revelou que, sem os programas sociais, 32,1% da população brasileira estaria em situação de pobreza. Nesse cenário hipotético, o rendimento da população mais pobre cairia 75,9% e o índice de Gini subiria de 0,524 para 0,573. Ademais, apontou que uma em cada três mulheres pretas ou pardas vivia em situação de pobreza, e que a informalidade atingia 44,7% dessa população, contra 31,8% entre brancos — estes, por sua vez, auferindo rendimentos 73,3% superiores.
Outros dados revelam as desigualdades estruturais: menos da metade das mulheres e jovens encontrava-se ocupada em 2020; 10,8% dos estudantes não tinham atividades escolares; e, antes da pandemia, apenas 50,4% dos alunos de 15 a 17 anos da rede pública possuíam computador. Quanto à infraestrutura, 10,3% da população vivia em domicílios sujeitos a inundações e 9,8% enfrentava deslocamentos superiores a uma hora para chegar ao trabalho.
Nesse contexto, Markovitz estabelece um paralelo entre meritocracia e aristocracia, argumentando que ambas operam para isolar uma casta de elite do restante da sociedade, perpetuando privilégios através das gerações. Para ele, a educação meritocrática concentra-se em favorecer alunos ricos e trabalhadores altamente instruídos, estabelecendo um ciclo de retroalimentação entre treinamento especializado e inserção profissional que garante que essas duas dimensões do privilégio se reforcem e se expandam mutuamente (MARKOVITZ, 2019, p. 270-271).
O círculo vicioso de ausência de políticas públicas, desemprego e miséria inviabiliza qualquer pretensão de meritocracia. Não há mérito na fome, na privação ou na precariedade cotidiana. A narrativa meritocrática se esvazia quando a realidade impõe barreiras estruturais que impedem, desde o início, a igualdade de condições.
Não há mérito em abandonar os estudos por não poder pagar uma mensalidade escolar devido ao desemprego. Não há mérito em deixar de prestar vestibular para universidades públicas ciente da defasagem educacional herdada de uma rede básica sucateada. Pode-se tentar uma, duas ou vinte vezes — e, “quem sabe”, se houver resistência física e emocional, alcançar uma vaga em curso concorrido — mas, ainda assim, será preciso redobrar esforços para acompanhar as aulas, muitas vezes conciliando o estudo com a fome, o desalento e a informalidade.
Se alguém consegue romper todas essas barreiras, trata-se, sem dúvida, de um feito individual notável. Mas tal êxito não é a regra: é a exceção. Quantos, nas mesmas condições, chegam ao topo? Quantos desistem no percurso? Quantos sequer têm forças para tentar? Aos que lograram êxito sem qualquer suporte, cabem elogios, mas não se pode ignorar que o sistema foi desenhado para que a maioria não consiga.
A desigualdade estrutural evidencia-se também na representação social e política. Não é a regra ver mulheres na política, ainda que sejam maioria do eleitorado. Não é a regra encontrar pessoas negras em altos cargos na esfera pública ou privada, mesmo compondo 54% da população brasileira segundo o Censo de 2015. Tampouco é a regra a presença de mulheres em cargos de direção empresarial, apesar de serem maioria nas universidades e, em média, possuírem mais especialização acadêmica que os homens.
“não se esqueça que você é branco” – Hurricane, Bob Dylan
Rosa Luxemburgo, em A Acumulação do Capital, já advertia que o próprio capitalismo, diante de seus impasses, demandaria a adoção de princípios socialistas:
“O capitalismo é a primeira forma econômica com capacidade de desenvolvimento mundial. Uma forma que tende a estender-se por todo o âmbito da terra e a eliminar todas as demais formas econômicas; que não tolera a coexistência de nenhum outro. Mas é também a primeira que não pode existir sozinha, sem outras formas econômicas de que possa alimentar-se. Ao mesmo tempo que tende a converter-se em forma única, fracassa pela incapacidade interna de seu desenvolvimento. Ele oferece o exemplo de uma contradição histórica viva. Seu movimento de acumulação é a expressão, a solução progressiva e a intensificação dessa contradição. A certo grau de desenvolvimento, essa contradição só poderá ser resolvida pela aplicação dos princípios do socialismo, isto é, de uma forma econômica que é, por definição, uma forma mundial, um sistema harmonioso em si mesmo, baseado não sobre a acumulação, mas sobre a satisfação das necessidades da humanidade trabalhadora e na expansão de todas as forças produtivas na terra”50.
Esse reconhecimento de que a lógica puramente acumulativa é autodestrutiva encontra eco em medidas concretas adotadas em outros países. Em 28 de outubro de 2021, o presidente norte-americano Joe Biden apresentou um conjunto de propostas voltadas a reduzir desigualdades e fortalecer a rede de proteção social, entre elas: ampliação do Child Tax Credit — benefício fiscal destinado a garantir alívio financeiro a famílias de baixa renda com filhos —, expansão do programa Medicare para incluir cuidados auditivos à população pobre e idosa, corte de US$ 17 milhões em impostos para trabalhadores de baixa renda, investimentos em saúde materna e desenvolvimento de programas habitacionais populares. Tais políticas não são “favores”, mas mecanismos de redistribuição e inclusão, estruturados para romper barreiras sistêmicas e ampliar oportunidades reais.
Nos Estados Unidos, as pré-escolas custam, em média, cerca de US$ 8.600 por ano. O programa apresentado por Biden prevê a oferta de pré-escola universal e gratuita para todas as crianças de 3 e 4 anos, configurando a maior expansão da educação pública desde a consolidação do ensino médio gratuito, há cerca de um século51.
Em outras palavras, o país mais capitalista, meritocrático e economicamente poderoso do mundo está avançando em políticas de justiça social, repensando o próprio capitalismo e, talvez, reconhecendo que ninguém é winner ou loser por obra do acaso ou de uma suposta “justiça natural”. Há uma compreensão crescente de que a sociedade contemporânea é marcada por complexidades que inviabilizam respostas simplistas e narrativas de esforço individual desvinculadas das condições estruturais.
A reflexão conduz, inevitavelmente, a uma leitura mais ampla sobre a relação entre poder e desigualdade. Como alerta George Orwell, no clássico 1984:
“Poder é infligir dor e humilhação. Poder é estraçalhar a mente humana e depois juntar outra vez os pedaços, dando-lhes a forma que você quiser. E então? Está começando a ver que tipo de mundo estamos criando?”52