Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI): expressão maior do controle parlamentar

08/02/2022 às 10:15
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Os resultados das comissões parlamentares de inquérito não podem ser analisados apenas pelos seus relatórios finais.

As CPIs são importantes instrumentos de fiscalização parlamentar, cujas etapas de funcionamento surtem efeitos difíceis de serem mensurados, que podem provocar mudanças.

Em 2021, apenas uma Comissão Parlamentar de Inquérito - CPI esteve efetivamente em funcionamento no Congresso Nacional - CN: a CPI da pandemia[1] instalada pelo Senado Federal - SF. A comissão parlamentar de inquérito possui etapas, que serão vistas mais à frente, as quais no decorrer de seu funcionamento impactam os órgãos da administração pública responsáveis pela área ou tema, portanto, não se deve medir sua atuação com base apenas no relatório final.

Aliás, uma CPI extrai seu fundamento da função típica do Parlamento de exercer a fiscalização sobre os atos do Poder Executivo, no contexto do sistema de freios e contrapesos, que sustenta a democracia brasileira. Segundo o art. 49 da Constituição Federal de 1988 - CF/88, é da competência exclusiva do CN fiscalizar e controlar, diretamente, ou por qualquer de suas casas, os atos do Poder Executivo.

Trata-se de uma comissão temporária, assim classificada tanto pelo Regimento Interno da Câmara dos Deputados - RICD quanto pelo do Senado Federal - RISF. Ela não está no quadro permanente de comissões das casas legislativas, como a Comissão de Fiscalização Financeira e Controle da CD. A CPI se consubstancia na expressão maior do controle parlamentar, o principal instrumento dentre outros à disposição dos representantes eleitos como tratado em Silva (2020)[2].

Notadamente, ela representa um direito da minoria parlamentar, a qual, segundo o Supremo Tribunal Federal (STF), deve ter as condições adequadas e garantidas de exercer a fiscalização dos atos e decisões do chefe do Executivo e em torno do qual, em regra, orbita a maioria parlamentar que o apoia. Tal função consolida-se na lição de Manoel Gonçalves Ferreira Filho[3] as comissões de inquérito constituem um recurso para tornar mais efetivo e rigoroso o controle que é deferido aos parlamentares sobre toda a máquina estatal.

Destaca-se que a atribuição investigatória é ínsita ao poder de legislar. De fato, o accountability horizontal exercido pela CPI fornece subsídios aos parlamentares na condução do respectivo mandato, em especial no aperfeiçoamento do arcabouço legal. Além disso, a melhoria da execução da accountability horizontal incide positivamente sobre o exercício da accountability vertical, no plano eleitoral, na medida em que diminui a assimetria informacional entre os autores. Desse modo, a accountability vertical de responsabilidade dos eleitores fica sujeita ao bom funcionamento da horizontal, cuja responsabilidade incumbe aos representantes dos cidadãos.

Como ensina a CF/88, a CPI é portadora de poderes de investigação próprios das autoridades judiciais, além de outros previstos nos regimentos das respectivas casas, serão criadas pela CD e pelo SF, em conjunto ou separadamente. Os requisitos para criação consistem em três: a) requerimento de um terço dos membros (forma); b) fato determinado a ser apurado (substância); e c) prazo certo de funcionamento (tempo). Ademais, suas conclusões, se for o caso, serão encaminhadas ao Ministério Público - MP, para que promova a responsabilidade civil ou criminal dos infratores.

Em complemento, existem comandos estabelecidos pela Lei nº 1.579, de 1952[4], e regras constantes dos regimentos das Casas do CN. O RISF impõe a necessidade de definição do limite de despesas a serem realizadas, no caso da CPI mencionada, o limite das despesas foi de R$ 90 mil (RQS nº 1.371, de 2021)[5]. O RICD também detalha um pouco mais e traz o conceito de fato determinado, no art. 35, que consiste em acontecimento de relevante interesse para a vida pública e a ordem constitucional, legal, econômica e social do País, que estiver devidamente caracterizado no requerimento de constituição da comissão.

Quanto à composição, os regimentos estabelecem que o número de titulares será definido no requerimento ou projeto de criação, neste último caso, apenas para a CD. No SF, a comissão terá suplentes, em número igual à metade do número dos titulares mais um, escolhidos no ato da designação destes. Na CPI da pandemia, o requerimento estabelece onze membros titulares e sete suplentes, para cumprimento de sua finalidade no prazo de noventa dias, que foram prorrogados (é possível estender as atividades, em regra, dentro da mesma legislatura).

No SF, o regimento deixa explícito que não se admitirá CPI acerca de matérias pertinentes: a) à Câmara dos Deputados; b) às atribuições do Poder Judiciário; e c) aos Estados. Tal comando recebeu todas as atenções nos momentos que antecederam a instalação da CPI da Covid (assim chamada pelos veículos de comunicação), quando um grupo de senadores apresentou outro requerimento para expandir os objetivos do documento inicial e abarcar atividades exercidas principalmente pelos governadores, situação recebida pelo presidente do SF, mas que se tornou pouco efetiva, diante das decisões do STF em não permitir a convocação de governadores[6].

Em abril de 2021, o min. Roberto Barroso exarava uma das primeiras de muitas decisões judiciais envolvendo a CPI, o MS 37.760/DF[7], referendado posteriormente pelo plenário, que determinou a instalação da CPI, pois preenchia os requisitos de forma, substância e tempo. Uma gama de princípios norteia as comissões desse tipo, em especial: direito da minoria, princípio da colegialidade, presunção da inocência, não autoincriminação, a proteção dos direitos fundamentais, princípio da proporcionalidade entre outros.

Diz-se de muitas decisões, porque até o momento da elaboração desse breve texto, o site do STF[8] contabilizava mais de sessenta processos autuados envolvendo a CPI da pandemia, a maioria formada por mandado de segurança tratando da quebra do sigilo, tais informações estão reunidas na aba estatística. A quantidade demonstra a atuação do Poder Judiciário na regulação e na aplicação das regras constitucionais e legais ao funcionamento da comissão.

Aproveitando ainda a CPI da pandemia, registra-se sua transmissão ao vivo por vários canais de mídias onde o Senado está presente: Youtube, Instagram, Facebook e Twitter. Segundo noticiou o órgão[9], o aumento de inscritos no Youtube do Senado passou de cem mil. A transmissão da participação do ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello alcançou mais de um milhão de visualizações, perdendo apenas para o registro do julgamento do impeachment da presidente Dilma Rousseff. Isso demonstra o interesse do cidadão e a publicidade dada ao tema.

Outra consequência percebida durante os trabalhos da CPI foi o crowdsourcing, conceito ligado às mídias sociais, que consiste em uma investigação coletiva e em rede. Diferentemente de CPIs anteriores, os integrantes não estiveram limitados ao processo em si. Enquanto os depoimentos e as investigações aconteciam, usuários da rede em todo o Brasil se mobilizaram para encontrar inconsistências ou argumentos válidos nos depoimentos ou até mesmo realizar verificações por conta própria. O resultado dessas atividades era então postado na internet, copiando em tempo real os integrantes da comissão.

Na esteira das mudanças, a CPI da Pandemia anunciou a possibilidade de criar um observatório parlamentar[10], uma forma de acompanhar os resultados. Semelhante ao monitoramento empregado pelo TCU, a fim de acompanhar o cumprimento de suas determinações pelos órgãos da administração pública. Realmente, os encaminhamentos propostos não devem ser esquecidos, cabe uma sugestão de incluir no endereçamento as comissões permanentes da respectiva casa legislativa para serem elas as responsáveis por monitorar as providências, em vez de criar um outro tipo de colegiado.

Antes de abordar as etapas, há sempre aquela pergunta: A CPI possui poderes ilimitados? A comissão pode tudo? Não, há limites como os princípios já elencados. O poder de investigar não é um fim em sim mesmo, mas um poder instrumental ou ancilar relacionado com as atribuições do Poder Legislativo (HC nº 71.039)[11]. Os poderes próprios de autoridades judiciais relacionam-se com dar mais efetividade ao seu trabalho, sempre dentro das linhas constitucionais da harmonia dos poderes. O prof. Barroso[12] explica:

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Em síntese, o sentido da expressão "poderes de investigação de autoridades judiciais" é o de criar para a comissão parlamentar de inquérito o direito ou, antes, o poder de atribuir às suas determinações o caráter de imperatividade. Suas intimações, requisições e outros atos pertinentes à investigação devem ser cumpridos e, em caso de violação, ensejam o acionamento de meios coercitivos. Tais medidas, porém, não são auto executáveis pela comissão. Como qualquer ato de intervenção na esfera individual, resguardada constitucionalmente, deverá ser precedida de determinação judicial.

A CPI da pandemia para chegar até seu final, cumpriu as seguintes etapas, as quais podem servir para analisar outras comissões e seus resultados. São elas: 1) Requisição: cumprimento dos requisitos e análise pelo presidente da casa legislativa; 2) Instalação: início do inquérito político-legislativo, eleição da mesa e escolha do relator; 3) Funcionamento: produção da investigação de acordo com roteiro de trabalho do relator, por meio de audiências e requisição de informações; 4) Conclusão: apresentação do relatório, pedido de vista e deliberação.

Na etapa final, o relator escolhido pelo presidente consolida os resultados em um relatório final, cuja deliberação cabe à Comissão. Vale frisar que não se pode cobrar desse mecanismo de controle parlamentar algo que a ele não compete. Tampouco se pode perder de vista que a CPI é um órgão, uma extensão do Parlamento, que não pode possuir mais poderes do que o criador detêm, ou seja, o Congresso Nacional. Para avaliar o desempenho de uma instituição de controle ou qualquer outra é preciso verificar as atribuições definidas nos dispositivos legais e compará-las com suas entregas.

Assim, de forma geral, no âmbito federal, TCU e Controladoria-Geral da União - CGU fiscalizam a aplicação dos recursos públicos; Receita Federal fiscaliza os tributos; Conselho Administrativo de Defesa Econômica - Cade zela pela livre concorrência; CPI, Ministério Público - MP e Polícia Federal - PF investigam; MP e PF fundamentam a responsabilização e por aí vai.

Portanto, há certa confusão ao analisar a produção de uma comissão parlamentar tão somente pela sua etapa final. Deve-se considerar sua posição de órgão político de fiscalização e que durante seu funcionamento e até antes de sua instalação irradia diversos efeitos. Além dos exemplificados no texto, exige da administração pública a elaboração de respostas, por consequência, a reflexão e a revisão das decisões e escolhas. E ainda provoca os órgãos responsáveis por determinadas áreas a desencadearem procedimentos próprios de apuração. De fato, ao se aproximar do encerramento de qualquer CPI, aumentam-se as expectativas e não se deve esquecer: Quanto maior a expectativa maior a frustração, por isso relembro que relatórios finais não conterão e não é para conter mesmo a solução para todos os problemas, pois resultados e impactos surgem durante cada etapa de funcionamento das CPIs.

  1. Brasil. Senado Federal. Disponível em: https://legis.senado.leg.br/comissoes/comissao?codcol=2441. Acesso em: 15 out. 2021.

  2. SILVA, Ronaldo Quintanilha da. Accountability horizontal: a fiscalização parlamentar exercida pela Câmara dos Deputados na 55ª Legislatura. 2020. 183 f. Dissertação (Mestrado em Poder Legislativo) Centro de Formação, Treinamento e Aperfeiçoamento (Cefor), Câmara dos Deputados; Brasília, 2020. Disponível em: https://bd.camara.leg.br/bd/handle/bdcamara/40164. Acesso em: 15 out. 2021.

  3. FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Comentários à Constituição Brasileira de 1988. Saraiva, 1990, p. 71.

  4. Brasil. Lei nº 1.579, de 18 de março de 1952. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l1579.htm. Acesso em: 15 out. 2021.

  5. Brasil. Senado Federal. Disponível em: https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/148070. Acesso em: 15 out. 2021.

  6. Migalhas. Disponível em: Maioria do STF suspende convocação de governadores pela CPI da Covid. Acesso em: 15 out. 2021.

  7. Brasil. Supremo Tribunal Federal. Disponível em: http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=6129512. Acesso em: 15 out. 2021.

  8. Para obter a quantidade de processos relacionados à CPI, contei com a valiosa ajuda da colega de mestrado Roberta Cristina Passos Gonçalves, servidora do STF. A partir dos dados reunidos na aba estatística. Disponível em: http://portal.stf.jus.br/estatistica/. Acesso em: 15 out. 2021.

  9. Brasil. Senado Federal. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2020/03/27/tv-senado-ultrapassa-500-mil-inscritos-no-youtube. Acesso em: 15 out. 2021.

  10. Brasil. Senado Federal. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/videos/2021/10/cpi-da-pandemia-deve-criar-observatorio-apos-conclusao-dos-trabalhos. Acesso em: 15 out. 2021.

  11. Brasil. Supremo Tribunal Federal. Disponível em: http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=1579105. Acesso em: 15 out. 2021.

  12. BARROSO, Luís Roberto. Comissões parlamentares de inquérito e suas competências: política, direito e devido processo legal. Revista Eletrônica sobre a Reforma do Estado, n.º 12, 2008. Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/4524064/mod_resource/content/1/Texto%20Lu%C3%ADs%20Roberto%20Barroso%20CPI.pdf. Acesso em: 15 out. 2021.

Sobre o autor
Ronaldo Quintanilha da Silva

Mestre em Poder Legislativo pelo Cefor/CD. Especialista em Orçamento Público pelo ISC/TCU. Participa de grupos de pesquisas na Câmara dos Deputados. Professor do Cefor e cursos preparatórios para concursos. É Analista Legislativo da Câmara dos Deputados (ex-CGU, ex-TCU). Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/5699283809757563

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Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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