UNIVERSIDADE DO ESTADO DE MINAS GERAIS
CURSO DE DIREITO
JÉSSICA COELHO GOMES FERREIRA
O Direito ao Esquecimento no âmbito da Tutela de Dados Pessoais
Ituiutaba-MG 2021
Trabalho apresentado a Banca Examinadora do Curso de Direito da Universidade do Estado de Minas Gerais Unidade Ituiutaba, como exigência parcial para obtenção do título de bacharel em Direito, sob a orientação do Prof. Dr. Thalles Ricardo Alciati Valim.
FERREIRA, Jéssica C. G. O Direito ao Esquecimento no âmbito da Tutela de Dados Pessoais. 62 p. Trabalho de Conclusão de Curso Curso de Direito, Universidade do Estado de Minas Gerais, Ituiutaba, 2021.
RESUMO
FERREIRA, Jéssica C. G. O Direito ao Esquecimento no âmbito da Tutela de Dados Pessoais. 62 p. Trabalho de Conclusão de Curso Curso de Direito, Universidade do Estado de Minas Gerais, Ituiutaba, 2021.
Este trabalho teve por objetivo analisar se há um direito ao esquecimento no âmbito da tutela de dados pessoais, partiu-se da hipótese de que quando alguém invoca o direito ao esquecimento é sob a alegação de violação de sua privacidade. A era informacional trouxe novos moldes aos direitos fundamentais, o direito ao esquecimento se dá na medida em que impede que dados e fatos pessoais do passado sejam revividos de maneira descontextualizada, ofendendo moralmente o indivíduo. O ordenamento jurídico brasileiro não possui, expressamente, fundamento legal que postule acerca deste direito. Uma vez publicada, em poucos segundos uma informação estará disponível na rede por tempo indeterminado, impossibilitando o seu esquecimento. A capacidade ilimitada de armazenamento dos bancos de dados e a busca pelo lucro diante da desenfreada e atual comercialização dos dados pessoais, feita de forma irregular pelos grandes conglomerados digitais, são as chaves para a compreensão da necessidade de tutela para o tratamento de dados pessoais, ora tão questionados por doutrina, jurisprudência, empresas e entidades da Administração Pública. A discussão quanto ao direito ao esquecimento envolve um conflito aparente entre a liberdade de expressão/informação e atributos individuais da pessoa humana, como a intimidade, privacidade e honra. A metodologia utilizada neste projeto foi indutiva e dialética. As premissas proporcionam somente alguma fundamentação da conclusão, mas não uma fundamentação definitiva, identificando dessa maneira os conceitos de dedução e raciocínio válidos, uma vez que ainda não há consenso entre doutrinadores e julgados a respeito da existência e efetivação de um direito ao esquecimento. A pesquisa científica conseguiu elucidar algumas nuances deste direito e chegar à conclusão da existência de um direito subjetivo ao esquecimento no ordenamento jurídico brasileiro, e que sucede do princípio da dignidade da pessoa humana, direito este que não é absoluto, nem tampouco ilimitado e que sua aplicação deve ser através do sopesamento de interesses.
Palavras-chave: Autodeterminação Informativa. Direito ao esquecimento. LGPD. Proteção de Dados. STF.
ABSTRACT
FERREIRA, Jéssica C. G. The Right to Forget within the scope of Personal Data Protection. 62 p. Course Conclusion Paper - Law Course, Minas Gerais State University, Ituiutaba, 2021.
This study aimed to analyze whether there is a right to be forgotten within the scope of the protection of personal data, it was assumed that when someone invokes the right to be forgotten it is under the allegation of violation of their privacy. The informational era brought new molds to fundamental rights, the right to be forgotten occurs insofar as it prevents personal data and facts from the past from being revived in a decontextualized way, morally offending the individual. The Brazilian legal system does not have, expressly, a legal basis that postulates about this right. Once published, in a few seconds, information will be available on the network indefinitely, making it impossible to forget. The unlimited storage capacity of the databases and the search for profit in the face of the unrestrained and current commercialization of personal data, carried out irregularly by the large digital conglomerates, are the keys to understanding the need for tutelage for the processing of personal data, now so questioned by doctrine, jurisprudence, companies and public administration entities. The discussion regarding the right to be forgotten involves an apparent conflict between freedom of expression / information and individual attributes of the human person, such as intimacy, privacy and honor. The methodology used in this project was inductive and dialectical. The premises provide only some reasoning for the conclusion, but not a definitive reasoning, thus identifying valid concepts of deduction and reasoning, since there is still no consensus among indoctrinates and judges regarding the existence and effectiveness of a right to be forgotten. Scientific research has been able to elucidate some nuances of this right and to come to the conclusion that there is a subjective right to be forgotten in the Brazilian legal system, which follows from the principle of the dignity of the human person, a right that is neither absolute nor unlimited, and that its application must be through the weighing of interests.
Keywords: Informative self-determination. Right to be forgotten. LGPD. Data Protection. STF.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 6
1.1 Gerações de Leis de Proteção de Dados Pessoais 11
1.2 Big data e a Lei Geral de Proteção de Dados 14
1.3 Direito à desindexação Caso Google Spain 19
1.4 Direito Subjetivo ao esquecimento ordenamento jurídico brasileiro 21
2 O DIREITO AO ESQUECIMENTO 26
2.1 Origem do direito ao esquecimento 26
2.2 Fundamento legal: existe um direito ao esquecimento no ordenamento jurídico brasileiro? 29
2.2.1 A autodeterminação informativa 34
3 O JULGAMENTO DO STF E O SEU IMPACTO 42
INTRODUÇÃO
Com o desenvolvimento acelerado dos meios de comunicação e da internet, a discussão acerca do direito ao esquecimento tornou-se cada vez mais necessária, questionando-se por quanto tempo uma informação deve ficar disponibilizada.
Uma vez publicada, em poucos segundos essa informação estará disponível na rede por tempo indeterminado, impossibilitando o seu esquecimento. A capacidade ilimitada de armazenamento dos bancos de dados e a busca pelo lucro diante da desenfreada e atual comercialização dos dados pessoais, feita de forma irregular e opaca pelos grandes conglomerados digitais, são as chaves para a compreensão da necessidade de tutela para o tratamento de dados pessoais, ora tão questionados por doutrina, jurisprudência, empresas e entidades da Administração Pública.
A proteção de dados pessoais tem como princípio norteador a autodeterminação informativa. Utilizado inicialmente na Alemanha, o direito à autodeterminação informativa exerce grande influência em vários países, como exemplo no Brasil, em que é um dos fundamentos da disciplina da proteção de dados na Lei nº 13.709/2018 LGPD e somente foi reconhecido neste ordenamento após a edição desta lei. Destarte, o direito à autodeterminação informativa é compreendido na medida em que cabe ao indivíduo o controle da utilização dos seus dados pessoais, tendo em vista a moderna tecnologia e o processamento de informações.
Ainda no Brasil, o direito ao esquecimento sucede do princípio da dignidade da pessoa humana na medida em que impede que dados e fatos pessoais do passado sejam revividos de maneira descontextualizada, ofendendo moralmente o indivíduo. O ordenamento jurídico brasileiro não possui, expressamente, fundamento legal que postule acerca do direito ao esquecimento.
A dificuldade do reconhecimento de um direito subjetivo ao esquecimento, se dá, por exemplo, nos perigos da utilização como pretexto para as pessoas indevidamente requererem indenização por danos materiais e morais. Ademais existe um conflito de direitos fundamentais, como à privacidade e a liberdade de expressão.
Dentro deste cenário, e, a partir destas considerações, o tema central desta pesquisa pretende abordar como se dá o direito ao esquecimento no âmbito da tutela de dados pessoais e questionar se existe um direito ao esquecimento ou, na verdade, trata-se apenas de um remédio ligado à autodeterminação informativa.
Com objetivo geral de analisar se há um direito ao esquecimento no âmbito da tutela de dados pessoais, partiu-se da hipótese de que quando alguém invoca o direito ao esquecimento é sob a alegação de violação de sua privacidade.
Os objetivos específicos se darão na medida em que no primeiro capítulo será abordado a tutela dos dados pessoais e para isso serão elucidadas as gerações de leis de proteção de dados pessoais e como elas se conectam com a questão do chamado direito ao esquecimento.
Posteriormente, serão tratados o Big data, conjunto de informações coletadas nos meios de comunicação, e a Lei Geral de Proteção de Dados no Brasil e na Europa. Em seguida, o direito à desindexação, previsto no ordenamento europeu, e alguns casos levados aos tribunais. E finalizando o capítulo, será debatido o direito subjetivo ao esquecimento no ordenamento jurídico brasileiro.
O capítulo dois tratará do direito ao esquecimento, a priori, trazendo sua origem no século XX, contida no § 628, alínea a, n. 1, do Fair Credit Reporting Act, dos Estados Unidos e no Tribunal Constitucional Alemão. Após, a seção 2.2 trará a análise deste direito no ordenamento jurídico brasileiro até o momento. E a subseção 2.2.1, a autodeterminação informativa, com o surgimento do direito à autodeterminação informativa nos tribunais da Alemanha. Sem deixar de mencionar que a proteção de dados pessoais tem como princípio norteador a autodeterminação informativa.
No terceiro capítulo será tratado o recente julgamento do STF a cerca do famoso caso Aída Curi, crime ocorrido na década de 50 e que virou episódio de televisão. O caso se tornou objeto de discussão nos tribunais onde sua família solicitou indenização e o direito ao esquecimento. Serão debatidas algumas nuances em torno do julgamento, seu resultado e o impacto no ordenamento brasileiro a luz do direito ao esquecimento.
O presente trabalho não pretende esgotar o assunto, tema tão debatido por pesquisadores, estudiosos, e tribunais, mas tão somente levantar algumas discussões acerca do direito ao esquecimento. Direito este tão atual e que se faz presente diariamente na era digital.
A pesquisa terá como material de trabalho a bibliografia pertinente ao tema abordado. O método de análise a ser utilizado neste projeto será indutivo e dialético. As premissas proporcionam somente alguma fundamentação da conclusão, mas não uma fundamentação definitiva, identificando dessa maneira os conceitos de dedução e raciocínio válidos, uma vez que ainda não há consenso entre doutrinadores e julgados a respeito da existência e efetivação de um direito ao esquecimento.
1 TUTELA DE DADOS PESSOAIS
Conceituando dados do latim, datum é aquilo que se dá, dado é um documento, uma informação ou um testemunho que permite chegar ao conhecimento de algo ou deduzir as consequências legítimas de um fato, e que serve de apoio. O dado é matéria essencial a praticamente toda atividade econômica, uma vez que a partir dele é possível extrair informação e, consequentemente, gerar monetização, ou seja, o dado pessoal é um ativo econômico.
A informação em si precisa ser tratada para, então, gerar valor e eficiência na atividade empresarial, ou seja, os dados importam na medida em que podem ser convertidos em informações úteis para sua utilização, de acordo com Frazão (2019b, p26). O indivíduo enquanto consumidor assume um papel ativo nessa produção e replicação de dados. Seu comportamento, suas preferências, cada movimento dentro do meio digital está sendo observado, coletado, tratado. Conforme ressalta Bruno Bioni, O usuário da rede é, portanto, a todo momento, monitorado, acumulando-se uma série de dados (comportamentais) [...] (BIONI, 2019, p.44).
A coleta dessas informações pode passar a impressão de que é feita de maneira irrelevante em primeira análise, mas percebe-se ser a base para que todo o sistema de tratamento de dados até sua monetização, de fato, aconteça. Ou seja, cada informação que o indivíduo fornece em diferentes contextos, e é coletada, parece ser inofensiva, porém quando todos esses dados são agregados e a maneira como são utilizados representarão uma informação com valor econômico e talvez até uma ameaça a privacidade, segundo Solove (2004, p.88).
Os principais atores interessados na coleta e tratamento dessas informações são instituições governamentais e empresariais, uma vez que se utilizam desses dados para gerirem seus negócios, atingir o público-alvo, gerar lucro, seja na administração pública, seja em uma empresa, e com esses dados coletados, estão sendo montados verdadeiros dossiês digitais sobre os indivíduos, de acordo com Solove (2004).
Como cita Bioni (2019), no contexto da era da informação, surge a publicidade direcionada, que nada mais é do que direcionar uma propaganda para um público específico que se mostre mais inclinado a adquirir o produto ofertado. A internet, então, tornou-se o espaço mais relevante para esse marketing direcionado, onde são utilizadas diversas ferramentas tecnológicas[1] com propósito de acompanhar os usuários e fazer a correlação entre os anúncios de propagandas e os interesses destes usuários.
Big data é um termo que descreve o grande volume de dados - estruturados e não estruturados - que inunda uma empresa no dia-a-dia, ou seja, o que seu banco de dados coletou, de acordo com o site SantoDigital (2017). Pode-se exemplificar o fenômeno do Big data com o caso Target no qual a empresa americana Target utilizou-se do seu banco de dados com tratamento e análise para identificar consumidoras grávidas. Através da análise dessas informações a empresa conseguiu gerar uma possível lista de produtos mais procurados por esse público, e direcionar suas propagandas para essas consumidoras, conforme exemplificou Bioni (2019).
Essa ação deliberada dos agentes econômicos e estatais, resultado da falta de controle e regulamentação da utilização dos dados pessoais é o motivo central da necessidade de regulamentar a propriedade dos dados pessoais.
De acordo com Bruno R. Bioni, Historicamente, a proteção dos dados pessoais tem sido compreendida como o direito de o indivíduo autodeterminar as suas informações pessoais: autodeterminação informacional (BIONI, 2019, p. 29).
A violação dos dados e da privacidade, a utilização sem o prévio consentimento e informação do titular dos dados, são questões que destacam a necessidade da tutela dos dados pessoais, principalmente em momentos de era digital e monetização da informação.
Recorre-se, por isso, à técnica legislativa centrada no consentimento do titular dos dados pessoais como sua base normativa. Por meio do consentimento, o cidadão emitiria autorizações sobre o fluxo dos seus dados pessoais, controlando-os.
A Lei 13.709/2018, Lei Geral de Proteção de Dados, surgiu como meio de tutelar os dados pessoais e, não se restringindo à esfera virtual, estabeleceu as diretrizes aplicáveis ao tratamento de dados pessoais realizados em todo o território nacional (ou fora dele, desde que coletados no Brasil). Até a sua aprovação, o Brasil contava somente com leis setoriais de proteção de dados.
Segundo Centoducatte (2019), o olhar atento sobre a proteção de dados pessoais, visto sobre o prisma empresarial, faz-se necessário pois, além de evitar eventuais sanções administrativas e judiciais oriundas do descumprimento da legislação, pode servir não só como um importante ativo financeiro para as empresas, mas representaria também uma vantagem econômica, competitiva e concorrencial com a globalização das informações.
1.1 Gerações de Leis de Proteção de Dados Pessoais
Acerca da tutela de dados pessoais, foi possível observar, ao longo da história, quatro gerações, classificadas evolutivamente por Viktor Mayer-Schönberger (1997 apud DONEDA, 2011. p. 96).
As leis de primeira geração[2] surgiram na década de 1970 quando houve as primeiras iniciativas legislativas no sentido de proteger os dados. Tais leis tinham como proposta conceder autorização aos centros de tratamento de dados que coletavam esses dados pessoais e posteriormente, ficaria a cargo dos órgãos públicos o seu controle, uma vez que, à época, eram o principal objeto destas normas. Logo, essas leis de primeira geração se tornaram obsoletas à medida que o progresso tecnológico fomentou o surgimento de inúmeros centros de processamento de dados, que deixou de ser concentrado, e passou a ser difuso, formando o chamado Big data, o que dificultou o controle da coleta e do armazenamento de dados.
Assim, surge a segunda geração de leis de proteção de dados na segunda metade da década de 1970, com o primeiro modelo surgido na França[3]. Seu enfoque era na privacidade e na proteção dos dados pessoais, essa mudança se devia ao fato de que a população carecia de uma tutela dos seus interesses e demonstrava insatisfação com a utilização por terceiros de seus dados.
A partir desse momento, crescia um movimento de enquadramento nos moldes sociais, os cidadãos já se viam obrigados a fornecer seus dados pessoais para sua efetiva participação na vida social, e a liberdade se tornaria cada vez mais distante, utópica.
Nos anos 80, apresentou-se a terceira geração de leis, que surgiu justamente para efetivar a liberdade que a cada mudança de década se via mais inalcançável, aprimorando assim a tutela dos dados pessoais, segundo Doneda (2019). A decisão[4] do Tribunal Constitucional da Alemanha Ocidental, em 1983, foi o marco da terceira geração buscando a efetiva execução da autodeterminação informativa, conceito utilizado nesta decisão paradigmática.
Essa decisão foi traduzida para o português na obra de Schwabe e Martins (2005, p.239), na qual é citado que deve-se distinguir entre dados referentes à pessoa, que são levantados e manipulados de forma individualizada e não anônima, e aqueles que são destinados a fins estatísticos. Faz mister saber que a estatística tem papel importante para a política governamental e sempre foi considerada indispensável para quaisquer decisões político-econômicas da União, Estados e municípios.
A Lei do Censo de 1983, citada anteriormente, listava os dados que deveriam ser levantados pelos pesquisadores e determinava quem estava obrigado a fornecer as informações. Logo após, foram ajuizadas contra esta lei várias reclamações de violação de direitos, principalmente, o direito ao livre desenvolvimento da personalidade (Art. 2 I GG). As Reclamações Constitucionais foram julgadas parcialmente procedentes, o que confirmou a constitucionalidade da lei em geral. E foram declarados nulos alguns dispositivos sobre a comparação e trocas de dados e sobre a competência de transmissão de dados para fins de execução administrativa.
Portanto, o direito da autodeterminação informativa é admissível em casos restritos, em princípio o indivíduo tem que aceitar limitações de seu direito à autodeterminação sobre a informação em favor do interesse geral predominante, por outro lado, não existem mais dados irrelevantes nesse contexto do processamento de dados, ou seja, somente quando existe a clareza sobre a finalidade da solicitação e utilização dessas informações é que pode-se saber se a utilização do direito à autodeterminação da informação é admissível, ainda segundo a decisão transcrita da obra de Schwabe e Martins ( 2005).
Ademais, algumas questões foram evidenciando a dificuldade dos indivíduos em se sujeitarem ao efetivo exercício da autodeterminação informativa uma vez que isso implicaria custos sociais e/ou econômicos.
Surgem então as leis de quarta geração, leis atualmente vigentes em vários países[5], citando como exemplo as recentes leis brasileiras como o Marco Civil da Internet (Lei n° 12.965/2014) e, em especial, a Lei Geral de Proteção de Dados (Lei nº 13.709/2018), nas quais se reconhece a desvantagem do indivíduo perante as entidades que fazem a coleta dos dados pessoais, procurando assim ter um olhar mais integrado da disciplina, seara onde surgirá posteriormente o tema direito ao esquecimento, o qual procura impedir que dados e fatos pessoais do passado sejam revividos de maneira descontextualizada, ofendendo moralmente o indivíduo.
Essa desvantagem do indivíduo se dá na medida em que a captação e utilização de seus dados pessoais está envolta na falácia do consentimento. Muito se fala em consentimento implícito, quando por exemplo, o consumidor somente é liberado para utilizar uma plataforma digital após clicar em botões do tipo declaro que li e aceito os termos de uso, sem que saiba de todos os riscos e da real utilização do tratamento dos seus dados, conforme esclarece Furtado e Bezerra (2020). Ou seja, o usuário se torna subordinado a esse tipo de situação em que parcela considerável da vida social é condicionada ao aceite dado para o tratamento de dados e ao indivíduo só é possível ter uma identidade digital e fazer parte dessa sociedade a partir do aval para tratamento de seus dados pessoais.
Por isso faz-se tão necessário o consentimento informado, em que o consumidor é informado de todos os riscos[6] desta prática do tratamento de dados, e que seja evitado um vício de consentimento no momento do seu aceite, resguardando juridicamente este contrato entre as empresas de tecnologia e o consumidor.
Conforme ressalta Thalles Valim (2019, p. 283), Os esforços legislativos têm, nesse sentido, aumentado ou especificado o dever geral de informação no que diz respeito ao fornecedor que contrata por meio eletrônico. Observa-se uma mudança de perspectiva dos contratos eletrônicos de consumo, que focam mais no consentimento informado do que na validade do negócio jurídico.
O direito à desindexação[7] dialoga com o consentimento implícito, na medida em que a falta de explicações acerca de todos os perigos da captação e tratamento dos dados do indivíduo gera uma necessidade de um direito que corrija essa inexatidão, desindexando a informação pessoal do banco de dados a pedido do titular desses dados.
1.2 Big data e a Lei Geral de Proteção de Dados
O crescimento[8] e a grande imersão das pessoas na internet, principalmente nas redes sociais, é indiscutível. Os indivíduos estão compartilhando informações de todos os tipos diariamente: assuntos pessoais, políticos, religiosos, de entretenimento, através de textos, montagens, vídeos, fotos, gifs, aplicativos.
Isso fez com que os provedores se interessassem em armazenar tais informações e, mais ainda, decidir o que fazer com elas, ou seja, todos esses dados coletados e armazenados nos buscadores da internet são conhecidos atualmente como o Big data. Assim, conforme ressalta Voigt e Bussche, Muitas entidades desenvolvem seus negócios com tecnologias que são capazes de coletar, processar, classificar e analisar vastos conjuntos de dados e, dessa forma, extraia valor desses dados (VOIGT e BUSSCHE, 2017, p. 236).
Porém, a grande questão não é essa quantidade de informações reunidas, mas sim o que essas empresas fazem com os dados coletados. De acordo com o site Softwares & Soluções de Analytics (SAS), O Big data pode ser analisado para obter insights que levam a decisões melhores e ações estratégicas de negócio. São inúmeros os benefícios que o Big data pode fornecer para o desenvolvimento de toda uma cadeia na era informacional. Os bancos, as indústrias, o governo, as operadoras de saúde, o ensino superior, as empresas, todos buscam os benefícios que essa coleta de informações traz.
Na década de 2000, o ato de reunir e guardar dados para posterior análise ficou conhecido quando o analista Doug Laney[9] definiu o atual termo Big data em três Vs: volume, velocidade e variedade. É um termo derivado dos avanços recentes relativos à massificação da utilização de recursos tecnológicos e da farta produção de dados. Esse conceito caracteriza volumosos conjuntos de dados heterogêneos, os quais não são passíveis de processamento por soluções computacionais tradicionais, considerando seu dinamismo e sua complexidade.
A busca incessante pelo lucro atingiu o mundo informático, do processamento e armazenamento de dados. Usuários do meio virtual deixam informações à disposição o tempo todo e estas são interpretadas pelos analistas de dados virtuais, de acordo com Elaine Affonso, et al. (2017, p. 431). As ferramentas de busca possuem um arsenal gigantesco de informações 24 horas por dia trabalhando a favor de todo um organismo social, seja para auxiliar o governo à proteção do Estado de algum ataque terrorista, por exemplo, seja para estimular o consumo de uma população mais fragilizada.
Mais uma vez sendo pioneira ao tratar do assunto, a União Europeia (UE) criou o regulamento 2016/679 denominado Regulamento Geral de Proteção de Dados Europeu, também conhecido como GDPR (General Data Protection Regulation), que entrou em vigor em 25 de maio de 2016 estabelecendo um prazo de adequação das empresas e órgãos públicos até 25 de maio de 2018.
Seu objetivo é definir critérios para que as organizações e entidades governamentais implementem medidas de controle e gestão da privacidade dos dados pessoais, não se restringindo apenas aos 28 países do bloco, mas para todas as empresas que armazenem ou manipulem informações de cidadãos europeus, independentemente de onde estejam localizadas, o que acabou influenciando a iniciativa brasileira de se criar a LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais, Lei 13.709/18). (NICOLAU, 2019).
O chamado direito de ser esquecido (right to be forgotten) também é tratado no regulamento europeu, determinando que a empresa apague, interrompa e suspenda o processamento desses dados. A eliminação dos dados pode ser tanto por não ser mais relevantes ao propósito inicial, quanto, caso o usuário solicite.
Já no Brasil, a Lei Geral de Proteção de Dados (Lei 13.709/18) é similar à versão europeia da lei. Citando um exemplo disso, os dois atos legislativos se aplicam ao processamento de dados de pessoas naturais efetuado por controladores e processadores, e fornecem proteção especial para o processamento de dados pessoais sensíveis, bem como para o processamento de dados de crianças, citado em Kateifides (2019).
A LGPD regula as atividades de tratamento de dados pessoais e altera os artigos 7º e 16 do Marco Civil da Internet. A legislação se fundamenta em diversos valores[10], como o respeito à privacidade; à autodeterminação informativa; à liberdade de expressão, de informação, de comunicação e de opinião; à inviolabilidade da intimidade, da honra e da imagem; ao desenvolvimento econômico e tecnológico e a inovação; à livre iniciativa, livre concorrência e defesa do consumidor, e aos direitos humanos como liberdade e dignidade das pessoas.
A Organização das Nações Unidas (ONU) já se preocupa com o tema privacidade desde sua Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH)[11], adotada em 10 de dezembro de 1948, assim como a Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE)[12] a coloca como uma das condições impostas aos Estados para fazerem parte do bloco.
Apesar da similaridade de ambas as legislações, brasileira e europeia, a diferença básica é que o ordenamento jurídico brasileiro ainda não tem uma previsão específica para o direito ao esquecimento. Porém, os princípios da finalidade, adequação, necessidade ou escopo de aplicação, descritos no art. 6º da LGPD farão crescer uma tendência de consagração deste direito conforme cita Marcel Ghiraldini (2018).
O dispositivo citado acima determina que a utilização dos dados possa ser realizada enquanto necessária:
Art. 6º As atividades de tratamento de dados pessoais deverão observar a boa-fé e os seguintes princípios:
I - finalidade: realização do tratamento para propósitos legítimos, específicos, explícitos e informados ao titular, sem possibilidade de tratamento posterior de forma incompatível com essas finalidades;
II - adequação: compatibilidade do tratamento com as finalidades informadas ao titular, de acordo com o contexto do tratamento;
III - necessidade: limitação do tratamento ao mínimo necessário para a realização de suas finalidades, com abrangência dos dados pertinentes, proporcionais e não excessivos em relação às finalidades do tratamento de dados. (LGPD, 2018).
O desenvolvimento das leis sobre proteção de dados possui objetivos e linhas de atuação em torno de alguns princípios comuns, presentes em diversos graus em cada ordenamento, o que torna possível observar uma convergência das soluções legislativas sobre a matéria, conforme destaca Doneda (2019, p. 180).
A origem desse conjunto de princípios a serem aplicados na proteção de dados pessoais pôde ser observada na Convenção 108[13] do Conselho da Europa e nas Guidelines da OCDE, citada anteriormente.
O que se tem registrado nada mais é do que um conflito de direitos fundamentais, como à privacidade e a liberdade de expressão, sendo o melhor equacionamento a observância das particularidades do caso concreto ao tratamento dos dados pessoais.
Voltando ao artigo 6º da LGPD, observa-se que os princípios indicados já apresentam, de início, um estímulo ao reconhecimento do direito ao esquecimento no Brasil, na medida em que a progressão das leis de proteção dos dados parece convergir para uma relação direta entre a privacidade e os tratamentos de dados pessoais, ainda de acordo com Danilo Doneda (2019).
Vale destacar decisão[14] do Superior Tribunal de Justiça referente a cadastros de crédito, em que foi mencionado o princípio da finalidade:
O Serviço de Proteção ao Crédito (SPC), instituído em diversas cidades pelas entidades de classe de comerciantes e lojistas, tem a finalidade de informar seus associados sobre a existência de débitos pendentes por comprador que pretenda obter novo financiamento. É evidente o benefício que dele decorre em favor da agilidade e da segurança das operações comerciais, assim como não se pode negar ao vendedor o direito de informar-se sobre o crédito do seu cliente na praça, e de repartir com os demais os dados que sobre ele dispõe. Essa atividade, porém, em razão da sua própria importância social e dos graves efeitos dela decorrentes - pois até para inscrição em concurso público tem sido exigida certidão negativa no SPC - deve ser exercida dentro dos limites que, permitindo a realização da sua finalidade, não se transforme em causa e ocasião de dano social maior do que o bem visado (STJ, 1995, on-line).
Observa-se que a sociedade brasileira é carente de uma regulamentação expressa acerca do direito ao esquecimento e sua existência ainda é tema controverso[15].
Para Rodotà (2014, p.48) a internet deve aprender a esquecer o que já foi dito, tal qual a maneira de uma memória social seletiva que, vinculada ao respeito dos direitos fundamentais da pessoa, poderá direcionar a sociedade para o equilíbrio necessário na era informacional. Destacando assim, a conexão destes princípios com o direito ao esquecimento, na qual a utilização do princípio da proporcionalidade proporcionará um sopesamento harmonioso e justo, trazendo impulso no reconhecimento deste direito no Brasil.
1.3 Direito à desindexação caso Google Spain
A desindexação de links em buscadores online vem sendo tema de discussão na doutrina. O direito à desindexação surgiu recentemente na Europa, pioneira em prever esse direito em seu ordenamento jurídico. Os buscadores, com uma preocupante dominância de mercado pelo Google[16], são importantes e necessários devido à intermediação fundamental que exercem no acesso à informação online.
Segundo o IRIS, Instituto de Referência em Internet e Sociedade:
Exigir que um buscador elimine determinado resultado afeta não somente o acesso como também o direito à liberdade de expressão, a defesa dos direitos da personalidade e da dignidade da pessoa humana, principalmente em relação à privacidade e a proteção dos dados pessoais. (IRIS, 2017).
Esse direito relaciona-se também com a questão de quem realizará esse juízo de valor. Na Europa, num primeiro momento, a tarefa havia ficado a cargo da iniciativa privada. Era o Google quem recebia e decidia se iria acatar, ou não, os pedidos de desindexação encaminhados pelos cidadãos, decisão essa que deveria se basear em critérios definidos pela legislação e pela jurisprudência. Levantaram-se, então, questões relacionadas à transparência do processo de tomada de decisão sobre esses pedidos, e sobre qual deveria ser o nível de responsabilização dos intermediários.
O episódio de maior repercussão internacional, a partir do qual várias decisões internacionais foram influenciadas, é o caso Google Spain SL, Google inc. v Agencia Española de Protección de Datos, Mario Costeja González[17]. O Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE), em decisão inédita, na data de 13 de maio de 2014, reconheceu o direito a ser esquecido na internet sob determinadas condições.
O Tribunal determinou a remoção do link pelo Google:
Os links para sites que contêm esta informação devem ser suprimidos da lista de resultados, a menos que existam razões particulares como o papel desempenhado por esta pessoa na vida pública que justifiquem que prevaleça o interesse do público a ter acesso a esta informação ao efetuar a busca. (TRIBUNAL DE JUSTIÇA DA UNIÃO EUROPEIA, 2014).
A fim de cumprir a determinação, o Google criou, no dia 30 de maio de 2014, uma ferramenta para solicitar a remoção de conteúdo de suas páginas. Segundo o Relatório de Transparência do Google:
As páginas serão removidas dos resultados somente em resposta a consultas relacionadas ao nome do indivíduo. Removeremos URLs de todos os resultados da pesquisa do Google na Europa, incluindo resultados de usuários na Alemanha, Espanha, França etc. Além disso, usaremos indicadores de geolocalização para restringir o acesso ao URL do país do solicitante. (RELATÓRIO DE TRANSPARÊNCIA, 2019).
A imagem abaixo mostra gráfico com número total de solicitações recebidas e de URLs com solicitações de remoção desde 29 de maio de 2014 até a data de 22 de julho de 2020.
Figura 1[18]
Fonte: Google Transparency report
A Corte de Justiça da União Europeia considerou que o Google, cuja sede e servidores estão nos Estados Unidos, estava sob jurisdição europeia, já que a subsidiária espanhola do Google obtinha ganhos econômicos. Ou seja, a ênfase foi dada ao local em que o usuário se encontra, não ao servidor onde ocorre o processamento dos dados ou a sede da empresa. Portanto, o Google foi considerado como um controlador de dados pessoais, ao realizar a indexação dessas informações.
O mesmo tribunal, um ano depois, alegou que a transferência de dados pessoais de cidadãos europeus para o Estados Unidos não era legal, reafirmando uma soberania digital da União Europeia, de acordo com Giorgio Resta e Zeno-Zencovich (2016, p. 7).
1.4 Direito subjetivo ao esquecimento ordenamento jurídico brasileiro
No Brasil, o direito subjetivo ao esquecimento sucede do princípio da dignidade da pessoa humana[19] na medida em que impede que dados e fatos pessoais do passado sejam revividos de maneira descontextualizada, ofendendo moralmente o indivíduo, ou seja, ele é decorrente desse controle de dados, da limitação da personalidade.
O direito ao esquecimento e a tutela de dados pessoais, temas de debate nas V e VI Jornadas de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal[20], significaram um avanço no ordenamento brasileiro naquele momento[21], abrindo espaço para maior discussão e atenção na proteção dos dados pessoais, antecedendo a atual LGPD.
Como dito anteriormente, o ordenamento jurídico brasileiro ainda não tem uma previsão específica para o direito ao esquecimento. A dificuldade do reconhecimento de um direito subjetivo ao esquecimento, se dá, por exemplo, nos perigos da utilização como pretexto para as pessoas indevidamente requererem indenização por danos materiais e morais, bastando afirmar que as obras nas quais foram retratadas lhes causaram lembranças penosas, para requerer indenização, por vezes de maneira caprichosa, cobiçosa e injustificada [...].[22]
Os primeiros casos julgados pelos tribunais brasileiros a respeito do direito ao esquecimento, remetem à década de 2000. Dois recursos ajuizados contra reportagens da TV Globo, um deles por um dos acusados mais tarde absolvido pelo episódio que ficou conhecido como a Chacina da Candelária, no Rio de Janeiro. O outro, pela família de Aída Curi, estuprada e morta em 1958 por um grupo de jovens.
No julgamento do Recurso Especial 1.334.097/RJ[23] (caso da chacina da Candelária), reconheceu o STJ que, 13 anos depois, permitir nova reportagem acerca dos fatos, com a indicação do nome e imagem do autor da ação, mesmo esclarecendo que ele fora absolvido, significaria uma segunda ofensa à sua honra. O acórdão registra que restringe-se a analisar a adequação do direito ao esquecimento ao ordenamento jurídico brasileiro, especificamente para o caso de publicações na mídia televisiva.
No caso de Aída Curi, (REsp 1.335.153/RJ)[24], o relator conclui que, tendo sido a reportagem veiculada cinquenta anos após a morte da vítima, não houve abalo moral apto a gerar responsabilidade civil. O STJ concluiu que o reconhecimento, de um direito de esquecimento não conduz necessariamente ao dever de indenizar.
Nos dois recursos especiais, julgados em conjunto, reconheceu-se, em tese o direito ao esquecimento, aplicado com as nuances necessárias aos casos concretos, de acordo com Cueva (2018, p. 94). No primeiro reconheceu-se o direito de manter em esquecimento acusação de que o interessado fora absolvido, a fim de proteger sua dignidade. No outro recurso, não se entendeu por ilícita a divulgação de fato histórico, ainda que causasse algum sofrimento aos irmãos da vítima, uma vez que primou-se a liberdade de imprensa, prevalecendo o interesse público em face do particular.
Mais um caso julgado pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) reconhecendo o direito ao esquecimento em virtude da violação da privacidade e honra pessoais, foi o da ex-BBB, Aline Cristina, que participou do reality show em 2005 e foi eliminada do programa com rejeição de 95% dos votos. Após 11 anos de sua participação, algumas matérias em sites de entretenimento citaram seu nome e veicularam fotos sobre a sua vida atual. A participante ajuizou, então, uma ação contra estes sites visando a retirada do ar de todas as matérias e fotos que transmitiam sua vida particular atual ou relembravam sua participação no programa.
Em primeira instância, o pedido foi julgado improcedente, tendo a sentença sido reformada pelo TJ/SP mediante apelação da autora. O Tribunal entendeu pela remoção das matérias e fotos da internet, bem como pela condenação das empresas que divulgaram o fato ao pagamento de danos morais, com exceção do UOL, que era somente o servidor de hospedagem do conteúdo publicado por terceiros (VISCONTI, 2018). Com isso, este julgado influenciou vários outros casos semelhantes.
Outro episódio foi o da modelo Daniella Cicarelli[25], tendo tido grande repercussão à época em que ocorreu, a modelo citada teve um vídeo em que momentos íntimos com o seu namorado eram retratados. Ela, então, entrou com um processo[26] exigindo que o vídeo fosse retirado de todos os sites em que poderia ser acessado. Em virtude desse caso, o Youtube acabou, inclusive, saindo do ar por dois dias. Este caso foi emblemático por ter deixado evidente que a disseminação de uma informação na internet atinge níveis inimagináveis e seu rastreio e apagamento na totalidade não se faz possível, demandando do jurista a procura por novos conceitos e mecanismos, além daqueles tradicionais
Isso fez com que o Congresso Nacional, em 2007, iniciasse um movimento em favor de uma regulamentação da internet[27]. Foi nesse cenário que surgiram as primeiras discussões sobre o direito ao esquecimento no meio virtual.
Ocorreu também audiência pública no mesmo ano, no STF, no bojo do Recurso Extraordinário (RE) 1010606, do caso Aída Curi, já mencionado neste texto. O ministro Dias Toffoli, quem convocou a audiência pública para discutir a questão do direito ao esquecimento na área civil. Houve, inclusive, um trabalho das cortes em estudar e montar um compilado sobre a audiência[28].
Desde então, muito já foi discutido, tanto em doutrina, quanto no Judiciário. Em 2018, através do REsp 1.660.168/RJ [29], o STJ acolheu a tese de uma promotora de justiça que pleiteava a desvinculação de seu nome, nos resultados de busca da internet, do tema fraude em concurso para juiz. Houve a busca pela desindexação pois a promotora já havia sido inocentada pelo Conselho Nacional de Justiça da acusação de fraude. Contudo, seu nome ainda era atrelado ao tema nos resultados de busca. Logo, o Superior Tribunal de Justiça optou pela dignidade da pessoa humana e o direito à privacidade, atentando também para anacronismo dos fatos e sua irrelevância social (CARVALHO, 2018, p. 32).
Segundo Adriana Abílio (2018, p. 86), Atualmente, tais decisões têm buscado respaldo no princípio da razoabilidade/proporcionalidade, tentando na melhor forma preservar o núcleo essencial de cada princípio. No que diz respeito ao direito ao esquecimento, tem-se discutido que é preciso lidar com a colisão dos direitos de personalidade com os direitos à informação, à liberdade de expressão e a vedação à censura, todos garantidos na Constituição e com pesos equivalentes.
2 O DIREITO AO ESQUECIMENTO
Com o desenvolvimento acelerado dos meios de comunicação e da internet, a discussão acerca do direito ao esquecimento tornou-se cada vez mais necessária, questionando-se por quanto tempo uma informação deve ficar disponibilizada.
Uma vez postada na rede, em segundos essa informação está disponível em todo o planeta por tempo indeterminado, sendo quase impossível o seu esquecimento.[30] A capacidade ilimitada de armazenamento dos bancos de dados e a busca pelo lucro são as chaves para a compreensão da necessidade de tutela para o tratamento de dados pessoais, ora tão questionado por doutrina, jurisprudência, empresas e entidades da Administração Pública.
Sinônimo de ameaça ao faturamento capitalista, o direito ao esquecimento enfrenta resistência no meio cibernético, uma vez que as ferramentas de busca e empresas especializadas em análise de dados virtuais não desejam que leis sejam efetivadas e proíbam certas informações de serem acessadas e divulgadas, e, sobretudo, que o usuário tenha autonomia para decidir até que ponto fatos pretéritos vinculados ao seu nome permaneçam disponíveis nos buscadores de pesquisa (FERREIRA, 2019).
2.1 Origem do direito ao esquecimento
O direito ao esquecimento não é novidade nos debates jurídicos, mas tem sido objeto de recentes questionamentos, especialmente no que diz respeito aos problemas específicos ao meio digital, em função da grande capacidade de geração e armazenamento de dados pessoais e informações na internet[31].
Para Regina Ruardo, Daniel Rodriguez e Brunize Finger[32]:
A partir de uma fórmula simples, em que se adiciona às novas formas de coleta e tratamento de informações a crescente necessidade de dados por parte das instituições públicas e privadas, não é difícil perceber a inevitabilidade do desenvolvimento tecnológico nas organizações sociais modernas[...].
A primeira ideia de direito ao esquecimento surgiu no final do século XIX, quando foi publicado nos Estados Unidos um artigo intitulado Right to be let alone, Direito de ser deixado em paz (em tradução livre), por Samuel Warren e Louis Brandeis (1890). Nesse artigo, buscou-se fundamento jurídico na Common Law para resolver uma intromissão indevida da imprensa norte-americana no casamento da filha de Warren.
Por essa análise, entendeu-se que o sistema jurídico inglês garantiria a cada pessoa o direito de decidir até que ponto seus pensamentos, sentimentos e emoções podem ser comunicados. Os autores norte-americanos concluíram que, para o direito à intimidade ser tratado de forma autônoma, ele mereceria reparação ou compensação sempre que fosse violado (ARAÚJO, 2018).
Com o passar dos anos, foram surgindo diversos direitos que trazem em seu eixo a ideia de direito ao esquecimento, possível de observar através das relações humanas que carregam em seu âmago sentimentos como arrependimento, pacificação, evolução, mudança de opiniões, e a partir disso procuram-se novos caminhos, correções de erros, e com isso o direito foi acompanhando estas necessidades e transformações (CHEHAB, 2015).
O direito ao esquecimento teve sua primeira previsão, no século XX, contida no § 628, alínea a, n. 1, do Fair Credit Reporting Act, dos Estados Unidos[33] em 1970, legislação do Governo Federal dos EUA promulgada para promover a precisão, a justiça e a privacidade das informações do consumidor contidas nos arquivos das agências de denúncia do consumidor.
De acordo com o dispositivo legal citado, impõe-se às autoridades federais americanas o dever de regular o descarte de informações pessoais de consumidores que tiverem sido obtidas para que se dê de modo adequado[34].
Além desta previsão, tem-se o caso Lebach[35], como início da discussão do direito ao esquecimento na Alemanha. O Tribunal Constitucional Alemão proibiu uma emissora de TV alemã de exibir um documentário sobre um ex-prisioneiro, condenado a seis anos de reclusão pela participação na morte de quatro soldados alemães na cidade de Lebach, e que já havia cumprido integralmente a sua pena. O cidadão argumentou que a exibição do referido documentário traria à tona outra vez toda a comoção pública acontecida no momento do assassinato e comprometeria sua reinserção em sociedade.
Primeiramente, tanto o Tribunal Estadual de Mainz quanto o Superior Tribunal Estadual de Koblenz julgaram improcedente o pedido do reclamante. Em sua Reclamação Constitucional, o reclamante alega que as decisões impugnadas violaram os seus direitos fundamentais do Art. 1 I GG e Art. 2 I GG, (postulam sobre a garantia constitucional da proteção à personalidade).
Posteriormente, o Tribunal Constitucional Federal TCF alegou violação nos direitos de personalidade do reclamante. Sinteticamente, Jürgen Schwabe e Leonardo Martins comentam a decisão:
O TCF julgou procedente a Reclamação Constitucional por vislumbrar uma violação perpetrada pelos tribunais do direito de desenvolvimento da personalidade (Art. 2 I GG) e, por consequência, por considerar que uma intervenção na liberdade de radiodifusão, que se consubstanciaria na proibição de transmissão determinada pelos tribunais competentes (no caso de deferimento do pedido do reclamante) restaria, neste caso, justificada. O TCF, portanto, revogou as decisões dos tribunais civis e proibiu a ZDF de transmitir o documentário até a decisão final da ação principal pelos tribunais ordinários competentes (SCHWABE, Jürgen; MARTINS, Leonardo, 2005, p. 487).
O Tribunal Alemão decidiu pela proteção constitucional da personalidade em não admitir que a mídia explorasse, por tempo indeterminado, a figura do criminoso e também ferisse sua intimidade. Dessa forma, no citado caso concreto, entendeu-se que o princípio da proteção da personalidade deveria prevalecer em relação à liberdade de informação (CAVALCANTI, 2016).
Em fevereiro de 2007, Viktor Mayer-Schönberger[36] (2009) formulou as bases do que foi chamado the right to be forgotten, em tradução livre, o direito ao esquecimento. Sua preocupação com tal direito é a de externar as falácias existentes na ideia comum de que o ato de deletar dados pessoais na rede mundial de computadores seria garantia de definitiva exclusão (PALMA LIMA, 2013, p 273).
A partir da discussão gerada por esses questionamentos de Mayer-Schönberger, o direito ao esquecimento passou a ter visibilidade e a União Europeia, já avançada no assunto e com histórico de preocupação relativo à proteção de dados pessoais, também iniciou análises sobre o tema a fim de rever o tratamento legal da proteção de dados, até se chegar ao regulamento 2016/679 denominado Regulamento Geral de Proteção de Dados Europeu, também conhecido como GDPR (General Data Protection Regulation), que entrou em vigor em 2016[37].
Embora, nos países europeus, já haja o reconhecimento do direito ao esquecimento pelos tribunais e pela legislação, no Brasil, o suposto direito é alvo de dúvidas, sobretudo diante da ausência de fundamento legal. Portanto, faz-se necessário investigar sobre quais bases jurídicas repousaria o direito ao esquecimento no Brasil.
2.2 Fundamento legal: existe um direito ao esquecimento no ordenamento jurídico brasileiro?
O ordenamento jurídico brasileiro não possui, expressamente, fundamento legal que postule acerca do direito ao esquecimento. Desde há muito se cogita acerca da recepção, ou não, do assim chamado "direito ao esquecimento" no ordenamento jurídico brasileiro (MALTA, Cahyo; CAVALCANTI, Gabriel; PEREIRA, Igor, 2021). No Brasil, o direito ao esquecimento já contou com algumas manifestações, ainda que não tratado explicitamente com esse termo (PALMA LIMA, 2013, p 276).
Como exemplo dessa utilização, tem-se o caso Doca Street. Raul Fernando do Amaral Street, mais conhecido por Doca, assassinou a socialite Ângela Diniz em dezembro de 1976. Em resumo, ele fora absolvido no primeiro júri sob alegação de legítima defesa da honra. O caso repercutiu em grande campanha feminista e o processo foi reaberto com a condenação do réu em regime de reclusão. No ano de 2003, a Rede Globo exibiu reportagem sobre o caso e Doca recorreu à justiça alegando o cumprimento da pena e o direito ao esquecimento. No julgado, restou esclarecido que a liberdade de expressão da emissora deveria ser garantida. Observou-se, ainda, que o programa se limitou a contar a história de acordo com as provas documentais da época.
Não foi a única vez em que a Rede Globo se viu envolvida em processo no qual os autores clamaram pelo direito ao esquecimento. Conforme citado no capítulo anterior, dois processos ajuizados contra reportagens da TV Globo foram os mais emblemáticos em se tratando do tema em voga. Um dos processos estava relacionado a uma reportagem sobre a Chacina da Candelária, no Rio de Janeiro, acerca de um dos acusados à época de participar do fato, mas que posteriormente foi absolvido. O outro processo foi movido pela família de Aída Curi, estuprada e morta em 1958 por um grupo de jovens. O crime foi, mais tarde, transformado em episódio de um programa destinado a documentar crimes célebres na história brasileira, com um tom de documentário investigativo. A 4ª Turma do STJ entendeu, em 28 de maio de 2013, que não seria devida a indenização, considerando que, nesse caso, o crime em questão foi um fato histórico, de interesse público:
(...) Com efeito, o direito ao esquecimento que ora se reconhece para todos, ofensor e ofendidos, não alcança o caso dos autos, em que se reviveu, décadas depois do crime, acontecimento que entrou para o domínio público, de modo que se tornaria impraticável a atividade da imprensa para o desiderato de retratar o caso Aida Curi, sem Aida Curi. (SALOMÃO, 2013[38]).
O pedido de indenização foi negado nas instâncias inferiores da Justiça, posteriormente sendo objeto de Recurso Extraordinário com Agravo 1.010.606/RJ, com repercussão geral cujo objeto é a existência de um direito ao esquecimento na esfera cível. Sob a relatoria do Ministro Dias Toffoli, no dia 03 de fevereiro de 2021, iniciou-se o julgamento deste recurso no Supremo Tribunal Federal STF.
O STF, além de decidir se os familiares de Aída fazem jus à indenização pleiteada, tiveram a chance de pronunciar-se a respeito do reconhecimento ou não do direito ao esquecimento, e, tão importante quanto, definir o seu exato contorno. Ou seja, com repercussão geral, esse julgado servirá de base para outros casos semelhantes, mas a expectativa era a de que os ministros também definissem caso o direito ao esquecimento fosse reconhecido a quais casos esse entendimento poderia ser aplicado, incluindo no âmbito de informações veiculadas na internet (DAGOSTINO, 2021).
Para o Ministro Dias Toffoli, impedir o acesso a informações verdadeiras e obtidas de forma legal fere a liberdade de expressão. Segundo ele, a exibição encenada do crime, e qualquer tipo de divulgação, foram e continuarão sendo dolorosos para a família, dor essa, todavia, que não decorre da exibição, mas sim do fato em si, o crime praticado. Ademais, segundo ele, não teria havido qualquer afronta ao nome, à imagem, à vida privada da vítima, ou de seus familiares - alegadas pelas partes autoras. Reforçou, ainda, que crimes contra mulheres continuam cada vez mais alarmantes e casos como o de Aída Curi não devem ser esquecidos pela sociedade. Com base nesses argumentos, indeferiu, em seu voto, o pedido formulado pelos autores.
Já o Ministro Luiz Fux defendeu ser possível a aplicação do direito ao esquecimento a casos específicos, mas não quando as informações são de interesse público:
O direito ao esquecimento não pode obstaculizar o direito à informação. É inegável que o direito ao esquecimento é uma decorrência lógica da tutela da dignidade da pessoa humana, mas, no caso julgado, a liberdade de expressão supera o direito ao esquecimento (DAGOSTINO, 2021).
Por decisão majoritária, no dia 11 de fevereiro de 2021, o Supremo Tribunal Federal (STF), indeferiu provimento ao Recurso Extraordinário (RE) 1010606, negando o reconhecimento do chamado "direito ao esquecimento" pelo qual alguém poderia reivindicar que meios de comunicação fossem impedidos de divulgar informações de um fato verídico considerado prejudicial ou doloroso.
A tese de repercussão geral firmada no julgamento foi a seguinte: