Déficit habitacional e o direito a moradia no Brasil

14/02/2022 às 18:00
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RESUMO

Mesmo o direito à moradia ter sido reconhecido formalmente no Brasil pela Emenda Constitucional no 26 de 14 de fevereiro de 2000 e, também, como um direito básico, que está inserido na Declaração Universal dos Direitos Humanos, e no Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, estima-se que no território brasileiro exista um déficit de pelo menos 5,8 milhões de moradias (dados revisados pela Fundação João Pinheiro, ano base de 2019), além de outras 24,8 milhões de residências que apresentam algum tipo de inadequação que as tornam insalubres e inseguras para seus habitantes. Isso mostra expressões diretas da ausência de políticas de habitação social. As políticas habitacionais propostas foram, em sua maioria, ineficazes devido a diversos fatores políticos, sociais, econômicos e culturais tornando urgente o surgimento de processos realmente preocupadas em solucionar o alarmante problema.

Palavras-chave: Déficit Habitacional; Políticas Públicas; Direito Constitucional.

INTRODUÇÃO

A urbanização ocasionou o incremento das ofertas no mercado de trabalho, as possibilidades e facilidades da vida urbana, mas nem todas as pessoas que habitam as cidades e centros urbanos usufruem destas facilidades e oportunidades. Dentre as grandes problemáticas resultantes da urbanização destaca-se em especial a inerente à moradia, ou seja, o elevado déficit habitacional e a inadequação das moradias existentes em virtude da precariedade, insalubridade, ilegalidade ou ainda da irregularidade. O déficit habitacional brasileiro é de quase seis milhões de moradias, além do também elevado número de habitações inadequadas. Em decorrência destes números, nos últimos anos, os governos, a sociedade civil e movimentos populares, vêm buscando alternativas e soluções para este quadro que não se restringe ao Brasil. Neste interim, inúmeros tratados e convenções foram assinados buscando soluções, estratégias, mas principalmente o comprometimento dos governos visando a promoção de melhorias.

O Brasil, principalmente em decorrência dos compromissos internacionais assumidos e da imposição externa visando a "segurança da posse", incluiu através da Emenda Constitucional nº 26, de 14 de fevereiro de 2000, o "direito à moradia" no rol dos direitos fundamentais sociais (art. 6º, da CF/88). A não efetivação deste direito propicia a violação a inúmeros outros direitos e valores que visam assegurar a dignidade do ser humano, tais como: direito à identidade, à qualidade de vida, à segurança, à saúde, às oportunidades de trabalho, à inclusão social, cidadania, entre outros. Assim sendo, este trabalho visa a analisar os reflexos jurídicos, políticos e sociais decorrentes da constitucionalização do direito à moradia e principalmente analisar se a positivação do direito à moradia proporcionou a efetividade deste direito.

O CONCEITO DE PROPRIEDADE

O conceito de propriedade tem sofrido profundas alterações com o passar do tempo, bem como a compreensão dos homens em relação ao poder que exerciam sobre as coisas também foi alterada. Primeiro, a propriedade era compreendida em âmbito estritamente individual, tendo o proprietário liberdade absoluta para fazer o que desejasse com os seus bens, ou seja, tinha ele poder ilimitado no que se referia ao uso e gozo da propriedade, direito exercido sem preocupação ou interesse social e coletivo. Quando a relação entre o proprietário e o bem deixou de ser vista como absoluta e passou a ser vista como uma relação entre um indivíduo e a sociedade, tendo o proprietário a obrigação de usar seu bem sem desrespeitar os direitos tidos como coletivos, iniciou-se a formulação da compreensão acerca da função social da propriedade.

Portanto, o conceito de propriedade altera-se com tempo e não é, nem pode ser considerado definitivo. Ele está sempre em consonância com a sociedade que o cerca. No atual estágio que se encontra a humanidade, a propriedade, para ser juridicamente protegida, deve cumprir uma função social. Neste sentido, Carlos Roberto Gonçalves (2006) declara que o conceito de propriedade, embora não aberto, há de ser necessariamente dinâmico. Deve-se reconhecer, nesse passo, que a garantia constitucional da propriedade está submetida a um imenso processo de relativização, sendo interpretada, fundamentalmente, de acordo com parâmetros fixados pela legislação ordinária.

Contudo, a propriedade não pode mais ser vista apenas como um direito civil (direito real), sendo seu conteúdo delineado pelo direito constitucional desde há muito tempo, seja para defini-la como um direito individual, seja para defini-la também como um direito social. Assim, a Constituição assegura o direito de propriedade e estabelece seu regime fundamental enquanto o Direito Civil disciplina as relações civis que se referem a ela.

Como afirma José Afonso da Silva (2003) “a funcionalização da propriedade é um processo longo. Por isso é que se diz que ela sempre teve uma função social”, sendo que ela se modifica conforme se modificam as relações de produção, ou seja, as relações sociais.

Foi no século XVIII que a propriedade da terra passou a ser designada apenas por propriedade. Ela deixou de prover o alimento que sustentava o homem e passou a abrigar as fábricas que produziam mercadorias e rendiam lucros que eram novamente investidos. Para Marés (2003) “o patrimônio privado deixa de ser uma utilidade para ser apenas um documento, um registro, uma abstração, um direito. O aproveitamento da terra ganha, juridicamente, outros nomes, uso, usufruto, renda, assim como a ocupação física é chamada de posse. A Terra deixa de ser terra e vira propriedade”.

Foi neste sentido que as Constituições passaram a proteger a propriedade, sendo assim, a acumulação de riquezas está protegida e ganha legitimidade.

Jacques Távola Alfonsin (2004) e Carlos Frederico Marés (2003) compartilham a lição de que não é o direito de propriedade quem deve cumprir uma função social, mas sim o objeto, ou seja, a propriedade imóvel e o seu uso. Portanto, o uso da terra pelo homem (que se transforma em direito de propriedade) é que se relaciona com a função social, já que o título que o vincula a ela (propriedade) é uma abstração. Para Alfonsin (2004) a função social da propriedade não está reduzida ao prolongamento do direito de propriedade, já que se refere ao efetivo uso dos bens e não à sua titularidade jurídica, pois aquela independe de quem detenha o título de propriedade. Desta forma, o novo pensamento beneficia aquele que utiliza o bem de forma a fazer valer sua função social, e não aquele que, embora regularmente constituído como proprietário, não faça uso do imóvel de forma que lhe aproveite melhor.

Diante da visão adotada, a propriedade deixa de ser um direito absoluto, ilimitado e perpétuo que tinha como base o direito de “usar, fruir e abusar da coisa” e passa a sofrer restrições para que seu uso favoreça a comunidade na qual se insere e deve ser exercido de forma consciente.

Para Nelson Saule Junior (2004) “a função social da propriedade é o núcleo basilar da propriedade urbana” e o direito à propriedade só pode ser protegido pelo Estado quando esta cumprir com sua função social. O mesmo autor explica que “o princípio da função social da propriedade, como garantia de que o direito da propriedade urbana tenha uma destinação social, deve justamente ser o parâmetro para identificar que funções a propriedade deve ter para que atenda às necessidades sociais existentes nas cidades. Função esta que deve condicionar a necessidade e o interesse da pessoa proprietária, com as demandas, necessidades e interesses sociais da coletividade". (Saule Junior, 2004)

No Brasil, na Constituição Imperial de 1824 e a Constituição Republicana de 1891, a propriedade era tida como um direito individual, sem qualquer atenção para o seu interesse social, em outras palavras, era um direito individual, não um direito social. Ela era regulada como condição básica à inviolabilidade dos direitos civis e políticos, da liberdade e da segurança individual.

A partir da Constituição de 1934 iniciou-se um novo conceito de propriedade, por previsão do art. 113, o direito de propriedade não poderia ser exercido contra o interesse coletivo, ideia esta que se contrapunha à de propriedade como direito absoluto e inviolável da pessoa humana que permanecia até então, passando-se a compreendê-la também sob o aspecto social, já que o direito também estava sendo visto sob o enfoque do Estado social. Assim, a Constituição de 1934 dispôs sobre o princípio da função social da propriedade, princípio este que fora mantido nas Constituições de 1937 e 1946, sendo que na última constou também o direito à propriedade dentre os direitos individuais, além do social.

A Constituição Federal de 1967 destacou o tema da “função social da propriedade”, mantida inclusive na Emenda Constitucional de 1969, permanecendo o direito de propriedade sob os dois aspectos (social e individual).

Na Constituição Federal de 1988 o direito à propriedade foi garantido enquanto direito fundamental (art. 5º, XXII), sendo um direito inviolável e essencial ao ser humano, posto ao lado de outros direitos, como a vida, a liberdade, a segurança etc. Mas também à propriedade foi atribuído interesse social, pois o art. 5º, XXIII prega que “a propriedade atenderá a sua função social”, portanto, fica condicionada à efetividade de sua função social.

No que se refere à propriedade urbana, esta vem regulada na Constituição Federal em seu art. 182, que determina ser o Município, através do Plano Diretor, quem estabelece critérios para aplicação da função social da propriedade urbana, ordenando a cidade de forma a garantir o bem-estar dos seus habitantes e seu desenvolvimento.

O Estatuto da Cidade em seu art. 39 dispõe que “A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor, assegurando o atendimento das necessidades dos cidadãos quanto à qualidade de vida, à justiça social e ao desenvolvimento das atividades econômicas, respeitadas as diretrizes previstas no art. 2º desta Lei.”  

Já o art. 2º do Estatuto da Cidade estabelece as diretrizes gerais da política urbana a ser adotada pelos Municípios brasileiros quando da elaboração do plano diretor, respeitando a “garantia de cidades sustentáveis – entendida como o direito à terra urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, para as presentes e futuras gerações” (Saule Junior, 2004). Assim, pode-se afirmar que a moradia é um direito fundamental que deve ser respeitado e atendido por meio da função social da propriedade.

Para fazer valer este direito – de moradia digna – os Municípios têm que, em seu plano diretor, regulamentar os instrumentos previstos no Estatuto da Cidade de forma a promover habitação consoante o que dispõe o art. 2º, VI sem qualquer discriminação social, condição econômica, raça, cor, sexo ou idade. Para isso, podem os proprietários de imóveis que não estão destinados à moradia serem induzidos a cumprir a função social da propriedade, para não sofrerem sansões que lhes seriam desinteressantes.

Para contribuir com a existência de um meio urbano saudável e para fazer cumprir a função social da propriedade, os habitantes da cidade (proprietários ou não de seus imóveis) têm direito a uma moradia digna, e esta resulta do dever dos “proprietários de solo urbano não utilizado, não edificado ou subutilizado, de compatibilizar o uso de seus imóveis com as necessidades e demanda de moradias nas cidades, em especial, das populações sem moradia digna, que vivem em nossas metrópoles”. (Saule Junior, 2004).

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DÉFICIT HABITACIONAL E DIREITO À MORADIA

A habitação está vinculada a vida do ser humano como valor essencial. A habitação é uma necessidade humana básica e consiste na ocupação de um espaço que dê oportunidade para satisfação de outras necessidades. O ato de habitar é totalizante e só se realiza de maneira total, ou seja, não pode ser fracionado ou fragmentado, pois morar é um ato contínuo (RODRIGUES,1991).

Por isso, o ser humano necessita de um espaço para habitação ou de um domicílio para habitar, como forma de assegurar abrigo e sobrevivência. Desta forma, a habitação constitui aspecto central no elenco das necessidades humanas básicas (SILVA,1992). Nunes (1998) considera que o mercado de terras urbanas, sendo controlado pelo princípio da propriedade privada, termina por excluir de si parcela substancial da população pobre, produzindo em nossas cidades áreas que se caracterizam pela completa carência de condições adequadas de vida. Afirma ainda que o déficit de moradia e de infraestrutura urbana decorrentes da injusta distribuição do produto social, comprometem a cidadania e a sustentabilidade do desenvolvimento das nossas cidades.

De acordo com Ribeiro e Pechman (1985), entende-se por déficit habitacional:
existência de uma discrepância entre o ritmo de crescimento da população urbana e o da construção de novas moradias. Essa desproporção ocasiona o desequilíbrio entre a oferta e a procura de moradias, gerando o aumento do preço dos imóveis e tornando impossível o acesso a esse bem para certas camadas da população.

A questão habitacional tem em seu cerne uma relação direta com o sistema econômico vigente, ou seja, o desenvolvimento capitalista transforma a sociedade, uma vez que a necessidade de acumulação provoca um desenvolvimento antagônico onde apenas uma minoria, detentora dos meios de produção, consegue colher frutos, enquanto a maioria da população, formada por trabalhadores e operários, convive com o mínimo que lhes é destinado através do seu esforço e trabalho.
Na visão de Ribeiro e Pechman (1985), se existe déficit habitacional é porque grande parte da população urbana brasileira está excluída do mercado da produção de moradias. Sendo duas as razões: de um lado, uma distribuição profundamente desigual da renda gerada na economia e, de outro lado, as condições que regem a produção capitalista de moradia no Brasil, que impõem um elevado preço ao direito de habitar a cidade.

O direito à moradia foi reconhecido formalmente pela Emenda Constitucional nº 26 de 14 de fevereiro de 2000. A constituição Federal prevê no art. 6º- Art. 6º - São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, assistência aos desamparados, na forma desta Constituição. Silva (2006) preleciona “O direito à moradia já era reconhecido como uma expressão dos direitos sociais por força mesmo do disposto no art. 23, IX, segundo a qual é da competência comum da União, Estado, DF e Municípios, promover programas de construção de moradias e a melhoria das condições habitacionais e de saneamento”. Ali já se traduzia um poder-dever do Poder Público que implicava em contrapartida do direito correspondente a tantos quantos necessitem de uma habitação. Essa contrapartida é o direito à moradia que agora EC nº26, de 14/02/2000, explicitou no art. 6º.

Há uma relação intrínseca entre Estado Social e Direito fundamentais, na medida em que aquele, além de empregar meios para promover um equilíbrio na redistribuição dos bens, institui um regime de garantias concretas em prol da paz e da justiça social de forma a dar maior efetividade a estes. Possível, com certa segurança, que o direito à moradia, está intimamente ligado ao Estado Social. Corolário disso é que os objetivos fundamentais dispostos na Constituição Brasileira são imprescindíveis para a realização do Direito à Moradia, sobre tudo a que se refere a erradicação da pobreza e à eliminação das desigualdades sociais. A Constituição brasileira no artigo 5º, XI, trata da casa como asilo inviolável do indivíduo. O conjunto direito fundamental à moradia, inviolabilidade do lar e inviolabilidade da intimidade implica ser a casa o maior espaço das liberdades decorrentes da relação familiar.

POLÍTICAS PÚBLICAS DE HABITAÇÃO

A Constituição Federal de 1988 redefiniu a estrutura administrativa, distribuindo as competências entre os entes federados, destacando-se primeiro que os Municípios foram alçados à categoria de ente federado pelo art. 18 da Constituição Federal de 1988, inovação esta que foi chamada de “descentralização administrativa”, oportunidade em que passaram a ter responsabilidades em diversas áreas, como educação, saúde, agricultura e de maneira muito direta nas questões relativas ao urbanismo. Segundo o art. 21, inc. XX da Constituição Federal, compete à União instituir diretrizes para a habitação, e, segundo o art. 23, é competência comum da União, Estados e Municípios a “promoção e implementação de programas para construções de moradias e a melhoria das condições habitacionais e de saneamento básico” (inc. IX) bem como determina o “combate às causas da pobreza e os fatores de marginalização, promovendo a integração social dos setores desfavorecidos” (inc. X). Portanto, todos os programas habitacionais passam a ser desenvolvidos pelos entes federados em conjunto, ou pela adesão a um programa nacional.

No capítulo destinado ao tratamento “Da Política Urbana”, formado apenas pelos artigos 182 e 183, o constituinte tem a intenção de pôr fim às desigualdades criadas pela política de urbanização brasileira adotada até então, na qual os interesses patrimoniais estavam superprotegidos, em especial pelo Código Civil de 1916 (hoje revogado pelo Código Civil de 2003). Atualmente, a propriedade é regulamentada pelo Plano Diretor de cada Município, que lhe dá forma, determinando as possibilidades de uso e ocupação, segundo critérios pré-estabelecidos pelo Estatuto da Cidade.

Segundo Saule Junior (1999), antes da Constituição Federal de 1988 não existia menção à ordem urbanística no Brasil, de forma que o referido capítulo destinado ao tema dispõe sobre os princípios, responsabilidades e obrigações do poder público e também acerca dos instrumentos jurídicos e urbanísticos para conter os desgastes ambientais e acabar com as desigualdades sociais.

No que se refere ao direito à moradia, este foi incluído no texto constitucional por força da Emenda Constitucional nº 26/2000, que alterou a redação original do art. 6º da Constituição Federal de 1988, o direito à moradia foi incluindo no texto constitucional, sendo atribuído a ele status de direito social, compromisso este assumido pelo Brasil por ser signatário da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948.

Para regulamentar o capítulo da política urbana, bem como assegurar formas de garantir o direito à moradia, a Lei 10.257/2001, chamada de Estatuto da Cidade, fez surgir diversas formas de intervenção do Poder Público sobre o patrimônio particular bem como sobre as próprias cidades. Para Saule Junior (2004) o novo instrumento é “uma lei inovadora que abre possibilidades para o desenvolvimento de uma política urbana que considere tanto os aspectos urbanos quanto os sociais e políticos das nossas cidades”.

O Estatuto da Cidade regulamenta uma série de instrumentos jurídicos e urbanísticos, reafirmando o papel central do Plano Diretor como eixo principal da regulação urbanística das cidades. Com o objetivo de garantir o pleno desenvolvimento das cidades e a função social da propriedade urbana, permite aos Municípios a adoção de instrumentos para a urbanização e a legalização dos assentamentos, o combate à especulação imobiliária, uma distribuição mais justa dos serviços públicos, a recuperação para a coletividade da valorização imobiliária, soluções planejadas e articuladas para os problemas das cidades e a participação da população na formulação e execução das políticas públicas.

Os principais instrumentos do Estatuto da Cidade a serem destacados são a regulamentação das sanções urbanísticas e tributárias aos terrenos subutilizados e os instrumentos de regularização fundiária, como o usucapião coletivo e a concessão de uso especial para fins de moradia.

Portanto, a principal ferramenta que os Municípios dispõem para atuarem contra a ilegalidade, é o Plano Diretor, de implementação obrigatória para todas as cidades com mais de 20 mil habitantes, as localizadas nas regiões metropolitanas (mesmo com menor número de moradores), aglomerações urbanas, áreas de interesse turístico e de impacto ambiental e para os casos em que o Município deseja combater a especulação imobiliária (um dos fatores propulsores da ocupação das áreas informais no Brasil).

O Plano Diretor pode combater a especulação imobiliária através do parcelamento, edificação ou utilização compulsória, na qual o proprietário é notificado pela Prefeitura indicando um prazo para que a área seja utilizada ou construída; IPTU progressivo no tempo, ou seja, não sendo cumprida a notificação, a Prefeitura aplicará um IPTU maior a cada ano pelo prazo máximo de cinco anos seguidos; desapropriação com pagamento em título da dívida pública, ou seja, se o proprietário ainda se recusar a dar uma utilidade ao imóvel, a Prefeitura poderá desapropriá-lo.

A democratização do acesso à terra, através da regularização fundiária, deve vir expressa no Plano Diretor pela delimitação das ZEIS (Zonas Especiais de Interesse Social), áreas ocupadas por população de baixa renda (favelas, ribeirinhos, morro, loteamentos irregulares e clandestinos) que precisam ser urbanizadas e regularizadas, a partir do estabelecimento de normas especiais para cada situação. Inclui também áreas vazias ou mal aproveitadas que podem ser destinadas à habitação de interesse social. Deve também realizar a delimitação de áreas necessárias para garantir o direito à moradia, para a implantação de escolas, postos de saúde, área de tratamento de esgoto, área de lazer, áreas verdes, para a proteção de áreas de interesse ambiental ou histórico, cultural ou paisagístico.

O maior desafio da política de habitação social brasileira é atuar diretamente contra a ilegalidade urbana, por meio da regularização fundiária. Para Betânia Alfonsin (2006) a regularização fundiária é uma intervenção que, para se realizar efetiva e satisfatoriamente, deve abranger um trabalho jurídico, urbanístico, físico e social. Se alguma destas dimensões é esquecida ou negligenciada, não se atingem plenamente os objetivos do processo.

Convém lembrar que muitos municípios brasileiros adotaram, mesmo antes do Estatuto da Cidade, medidas de regularização fundiária, porém, apenas com a implementação da nova lei é que puderam atuar com maior eficiência, posto que ela que lhes permite uma possibilidade maior de atuação para intervir nas questões ilegais e irregulares.

Portanto, dentro da nova visão acerca das questões relativas à moradia, entende-se que a política de habitação social não está vinculada apenas com a “casa”, mas sim com a mobilidade e transporte coletivo, infraestrutura, saneamento e acesso ao solo urbano por meio da regularização fundiária, prioritário à população de baixa renda, através da melhoria de habitabilidade dos núcleos e a concessão de títulos de uso ou propriedade.

CONCLUSÃO

A problemática da habitação ao ser impostas pelas condições de mercado entra em confronto com o princípio da dignidade da pessoa humana e o direito à moradia digna. Ao longo deste trabalho foi apresentado os conceitos doutrinários e jurídicos acerca de políticas públicas, políticas públicas sociais, o direito ao acesso à uma moradia digna como princípio fundamental, princípio do mínimo existencial. Partindo-se da premissa de que os direitos sociais são direitos fundamentais autoaplicáveis, enquadra-se, portanto, o direito à moradia digna como uma categoria de Direito Fundamental Social, sendo considerado uma diretriz para o Estado, carente de necessária e urgente implementação. Todos têm direito a garantia de uma existência digna. Neste sentido, pode-se dizer que o direito à moradia é um pressuposto para a vivência da dignidade, pois contribui para o combate à pobreza, para a ausência de dignidade, visando uma melhor autonomia individual. A construção doutrinária e o arcabouço jurídico, apontam para a necessidade de se melhorar e assegurar o acesso das pessoas pertencentes a grupos vulneráveis à habitação, financiamento, infraestrutura, serviços sociais básicos, mecanismos de segurança e processos de tomada de decisão nas esferas nacional e internacional. A Constituição Federal consagra o Direito à moradia como um direito social, e o Estado têm dever de propiciar habitação aos cidadãos através de políticas públicas sociais visando reduz ir o déficit habitacional. Como exemplo, de política social de habitação apontamos o programa Minha Casa Minha Vida que constituiu o maior empreendimento já realizado no governo Federal beneficiando milhares de famílias. Acreditamos que o Estado tem importante papel na implementação de políticas públicas habitacionais para a população carente visando reduzir as desigualdades sociais, mas é necessário além da vontade política, o respeito e cumprimento ao ordenamento jurídico, principalmente ao que concerne ao direito humano, universal, e fundamental de moradia digna.

REFERÊNCIAS

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GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro: direito das coisas. São Paulo: Saraiva, 2006. Vol. v.

MARÉS, Carlos Frederico. A função social da terra. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 2003.

NUNES, Brasilmar Ferreira. Diagnóstico sobre a realidade urbana de Rondônia. Brasília, 1998.

ONU. DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS. Adotada e proclamada pela resolução 217 A (III) da Assembleia Geral das Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948. Disponível em: < http://www.onu.org.br/documentos/carta-da-onu/> Acesso em: 29 de novembro de 2021.

PECHMAN, Robert M.; RIBEIRO, Luiz C. de Queiroz. O que é questão da moradia. Coleção Primeiros Passos, n°92. São Paulo: editora Brasiliense. 1983).

RODRIGUES, Arlete Moysés. Moradia nas cidades brasileiras, 4ª ed. São Paulo: Contexto, 1991.

SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 6ª ed. rev. atual. e ampl. -  Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2006.

SAULE JUNIOR, Nelson. A proteção jurídica da moradia nos assentamentos irregulares. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 2004.

SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 23. ed., ver. e atual., São Paulo: Malheiros, 2004.

Sobre o autor
Edson José de Araujo

Mestrado no programa de Governança Global e Formulação de Políticas Internacionais (PUC-SP), Especialista em Política e Relações Internacionais (FESPSP), MBA em Economia de Empresas (FEA-USP), Bacharel em Ciências Econômicas (CUFSA). Especialista em Docência no Ensino Superior (SENAC) e articulista no Centro de Estratégia, Inteligência e Relações Internacionais (CEIRI).

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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