Aplicação da ética de Kant no uso da força policial

16/02/2022 às 09:09
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Resumo: O presente artigo pretende apresentar os principais conceitos da doutrina ética de Immanuel Kant delineados nas obras Crítica da Razão Prática e Fundamentação da Metafísica da Moral, demonstrando a sua influência na legislação referente ao uso da força policial, atributo concedido pelo Estado ao agente de segurança pública no desempenho de sua função de garantir a ordem pública e a proteção dos direitos de terceiros. O trabalho apresenta a fundamentação jurídica do uso da força, a diferença entre força e violência e a doutrina do uso diferenciado da força, além de mostrar que a aplicação dos enunciados do imperativo categórico é suficiente para justificar o emprego legal da força.

Ética. Força. Violência. Polícia.

Introdução

Para o cumprimento de seu dever de garantir a ordem pública e proteger os direitos individuais fundamentais, o Estado pode recorrer ao uso da força física para limitar ou restringir direitos de indivíduos que possam ameaçar ou efetivamente produzir danos aos objetos defendidos.

Entretanto, o emprego dessa força não é arbitrário e incondicionado, devendo ser justificado a partir da observância de uma série de requisitos legais, dentre eles os princípios da legalidade, impessoalidade, publicidade, eficácia e moralidade, para citar alguns, sob pena das sanções penais, cíveis e administrativas cabíveis caso essas condições não forem cumpridas.

E é exatamente no princípio da moralidade que reside a questão da justificativa do uso da força: pode o cumprimento de uma exigência legal ser um ato moral?

A concepção ética proposta por Immanuel Kant, onde o ato moral é, sobretudo, uma livre escolha racional que promove o respeito à dignidade da pessoa humana, consegue resolver esse dilema, permitindo ainda a justificação do emprego da força contra um indivíduo potencialmente nocivo.

A ética de Kant

Immanuel Kant constrói sua doutrina sobre a ética e a moral nas obras Crítica da Razão Prática e Fundamentação da Metafísica da Moral. Afirmava que o homem é um ser que vive em dois mundos: um natural, compartilhado pelos demais seres vivos e por tudo de físico e material que existe, regido por leis de causalidade e necessidade; e outro racional, governado por leis de liberdade, não afetas por qualquer causalidade.

Kant denomina o mundo natural de fenomênico e o racional de noumênico. A razão humana, única e uniforme, atua nesses dois mundos, porém, de formas diferentes. Enquanto no mundo fenomênico a razão busca descobrir e compreender os acontecimentos que atuam ali, dentro dos limites permitidos pelas sensações e o entendimento, no mundo noumênico, não limitado pelas causalidades e necessidades do mundo fenomênico, a razão encontra-se livre, só condicionada aos princípios lógicos aristotélicos da identidade e da não-contradição.

As características desses dois mundos onde o homem é obrigado a viver determinam de modos distintos o comportamento humano. Devido às necessidades e causalidades do mundo fenomênico, o homem, assim como todo ser vivo, age em busca da satisfação de suas necessidades biológicas e emocionais. O indivíduo usa da própria razão para estabelecer os meios que lhe proporcione atingir aquele fim pretendido, através de máximas e imperativos que ordenam o sujeito.

Máximas são normas de conduta de caráter subjetivo, onde o indivíduo define o melhor meio para si próprio alcançar o objetivo pretendido por ele, enquanto os imperativos também são normas de conduta que servem para guiar o homem na obtenção de um fim, porém, com caráter objetivo, sendo válidos e recomendados para qualquer ser racional, pois, sendo um produto da razão, representa a melhor conduta a ser adotada na busca de um fim estabelecido.

Kant divide os imperativos em hipotéticos e categóricos. Os imperativos hipotéticos são aquelas ordens que pretendem atingir um fim determinado, um resultado empírico, seja a satisfação de uma necessidade ou um desejo. São normas de prudência, que aconselham agir de certo modo para atingir o propósito pretendido. O resultado aspirado é condicionado ao comportamento adotado. As leis da causalidade e da necessidade atuam sobre essa forma de mandamento.

Os imperativos categóricos são mandamentos impostos ao indivíduo para que aja de determinada forma sem esperar qualquer consequência empírica. Ao contrário dos imperativos hipotéticos, os categóricos não se submetem às leis da necessidade e da causalidade, leis essas que regem o mundo fenomênico. Logo, percebe-se que os imperativos categóricos pertencem ao mundo noumênico, subordinado às leis de liberdade.

Mas o que levaria o indivíduo a agir sem procurar um resultado empírico?

Para Kant, a razão não é apenas influenciada pela vontade e necessidade, podendo estabelecer regras para si própria. A razão pode elaborar deveres de cumprimento obrigatório e necessário, tendo em vista que esses deveres são produtos do entendimento, logo, submetidos ao princípio lógico da não-contradição. Qualquer ser racional, no uso exclusivo de seu intelecto, não vê outra alternativa racional de agir se não de acordo com aquele mandamento estabelecido pelo entendimento.

E é justamente no imperativo categórico que Kant encontra o fundamento da lei moral, no dever universal e racionalmente necessário desprovido de qualquer finalidade empírica.

Disso decorre que o ato moral é condicionado à liberdade do indivíduo, que não deve sofrer nenhum tipo de constrangimento da natureza ou de qualquer força superior alheia a si capaz de influenciar sua vontade para alcançar um objetivo.

Como o mundo noumênico não depende da realidade empírica, ele prescinde do conteúdo, objeto do mundo fenomênico, atentando-se somente às formas. Portanto, o imperativo categórico, pertencendo ao mundo noumênico, deve ser enunciado em fórmulas passíveis de serem aplicadas em qualquer situação, evitando assim a descrição exaustiva e infrutífera de todo comportamento capaz de ter valor moral. Desse modo, Kant alcança a universalidade exigida pela lei moral, pois basta o agente agir, em qualquer situação, de acordo com a forma descrita pelo imperativo categórico, que sua conduta será incontestavelmente julgada como moral, exigida por qualquer ser racional que se encontre na mesma condição.

O imperativo categórico é enunciado de diversos modos nas obras de Kant, porém, todos eles mantêm a mesma essência, e, se são expressos de modo diferente, é porque o filósofo deseja enfatizar cada uma das características intrínsecas que o compõem.

Os três mais conhecidos enunciados do imperativo categórico são os seguintes: Age apenas segundo uma máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal; Age como se a máxima de tua ação se devesse tornar pela tua vontade em lei universal da natureza; Age de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim e nunca simplesmente como meio. (Leite, 2007)

Assim o homem, ser racional dotado de liberdade que lhe faculta agir contra os desejos e necessidades, pode agir pautado pela razão de três maneiras: a) estabelecendo regras válidas apenas para si buscando um resultado que lhe afete; b) criando regras procedimentais que deverão ser seguidas em sua conformidade para obter um fim determinado da melhor maneira diante de certas circunstâncias e c) impondo obrigações certas e necessárias que indiquem que aquela conduta é a única exigida pelos padrões racionais.

O uso da força policial

Ao Estado é concedida a prerrogativa de limitar ou restringir o uso de bens e direitos que sejam nocivos à coletividade com o fim de estabelecer a ordem pública e proteger os direitos individuais.

De fato, nenhum direito é de gozo absoluto, devendo sempre atender ao bem-estar coletivo. O art. 29 da Declaração Universal dos Direitos Humanos deixa bem claro essa limitação:

"1.Todos os seres humanos têm deveres para com a comunidade, na qual o livre e pleno desenvolvimento da sua personalidade é possível.

2.No exercício dos seus direitos e liberdades, todos os seres humanos estarão sujeitos apenas às limitações determinadas pela lei, exclusivamente com o fim de assegurar o devido reconhecimento e respeito dos direitos e liberdades de outrem e de satisfazer as justas exigências da moral, da ordem pública e do bemestar duma sociedade democrática.

3.Esses direitos e liberdades não podem, em hipótese alguma, ser exercidos contrariamente aos objetivos e princípios das Nações Unidas."

A prerrogativa que o Estado tem de limitar e restringir o uso de bens e direitos considerados nocivos à ordem pública chama-se poder de polícia. O art. 78 do Código Tributário Nacional conceitua assim este atributo:

Art. 78. Considera-se poder de polícia atividade da administração pública que, limitando ou disciplinando direito, interêsse ou liberdade, regula a prática de ato ou abstenção de fato, em razão de interesse público concernente à segurança, à higiene, à ordem, aos costumes, à disciplina da produção e do mercado, ao exercício de atividades econômicas dependentes de concessão ou autorização do Poder Público, à tranqüilidade pública ou ao respeito à propriedade e aos direitos individuais ou coletivos.

Da leitura desse dispositivo legal, depreende-se que o Estado pode deter a atividade de particulares que sejam contrários, nocivos ou inconvenientes ao bem-estar social e à ordem pública.

O poder de polícia é um atributo exercido por toda a Administração Pública, não sendo inerente a um único órgão estatal. Diversas entidades da Administração Pública têm competência para restringir o uso de bens , direitos e atividades inconvenientes ou perigosas ao bem-estar coletivo. Entretanto, cabe exclusivamente às forças de segurança pública o uso do poder de polícia sobre os direitos fundamentais do indivíduo que configure ameaça aos direitos de terceiros, conforme se depreende da leitura do art. 144 da CF/88:

Art. 144. A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos:

I - polícia federal;

II - polícia rodoviária federal;

III - polícia ferroviária federal;

IV - polícias civis;

V - polícias militares e corpos de bombeiros militares.

O poder de polícia possui três atributos que permitem ao policial restringir os direitos do agente da possível ameaça:

  1. Discricionariedade: é o atributo que o agente de segurança pública possui de exercer livremente suas prerrogativas no momento em que julgar conveniente e oportuno.

  2. Autoexecutoriedade: é a capacidade do policial decidir e agir independente de autorização judicial diante de iminente ameaça à lesão de bem jurídico.

  3. Coercibilidade significa que todo comando emanado pelo policial é de cumprimento obrigatório, imperativo. Caso haja resistência daquele a quem é dirigida a ordem, o ordenamento jurídico autoriza o emprego da força para o devido cumprimento do mandamento.

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O policial, munido do poder de polícia, diante de efetiva ofensa ou iminente ameaça à ordem pública ou à direito de terceiro, deve interromper o comportamento indevido independente de ordem judicial, podendo utilizar, de acordo com a conveniência e oportunidade, a força necessária para cessar o ato lesivo.

A força é assim definida pela Secretaria Nacional de Segurança Pública em seu curso de Uso Diferenciado da Força, a partir da interpretação do princípio 1 dos Princípios Básicos sobre a Utilização da Força e de Armas de Fogo pelos Funcionários Responsáveis pela Aplicação da Lei (PBUFAF), editado pelo Oitavo Congresso das Nações Unidas para a Prevenção do Crime e o Tratamento dos Delinquentes:

meio pelo qual a agência de segurança controla uma situação que ameaça à ordem pública, a dignidade, a integridade ou a vida das pessoas. Sua utilização deve estar condicionada à observância dos limites do ordenamento jurídico e ao exame constante das questões de natureza ética. (Bettini e Duarte, 2013).

A força não se confunde com a violência. Enquanto aquela é condicionada aos ditames legais e à pressupostos éticos, esta é arbitrária, ilegítima, imoral e ilegal. Força, segundo Barbosa e Ângelo, é toda intervenção compulsória sobre o indivíduo ou grupo de indivíduos, quando reduz ou elimina sua capacidade de autodecisão (apud Bettini e Duarte, 2013).

Chauí define assim a violência: uso da força física e do constrangimento psíquico para obrigar alguém a agir de modo contrário à sua natureza e ao seu ser. A violência é a violação da integridade física e psíquica, da dignidade humana de alguém (Chauí, 2000).

A força é usada contra quem age de modo contrário à sua natureza e ser. O comportamento ilícito não é estritamente racional. O ser racional deve controlar o ser que não se pauta pela razão. Isso é a força. A violência ocorre quando se fere a dignidade humana de alguém, quando se aplica uma força desproporcional (e, portanto, irracional) ao comportamento nocivo.

O uso da força não deve ser desmedido ou arbitrário. Deve ser proporcional à proteção ao bem jurídico protegido e suficiente para cessar a conduta inadequada do infrator. Por isso a força deve ser concedida ao policial em forma escalonada, apresentando diferentes níveis de intensidade, oferecendo ao agente de segurança pública várias alternativas de resposta diante de uma potencial ameaça a ser controlada. Caso contrário, o policial acabará respondendo à ameaça de modo desproporcional e, portanto, ilícito.

De forma singela, estes são os níveis de força previstos para o trabalho policial conforme a doutrina do uso diferenciado da força:

  1. Nível primário: basta a simples presença ostensiva ou a verbalização de uma ordem para o policial adquirir o controle da situação indevida;

  2. Nível secundário: o policial deve utilizar técnicas de menor potencial ofensivo, como contatos físicos, imobilizações, emprego de equipamentos não-letais, para subjugar a vontade do suspeito;

  3. Nível terciário: uso de força potencialmente letal para debelar a conduta nociva do suspeito. Inclui a medida extrema e excepcional do disparo de arma de fogo.

A escolha do nível de força a ser utilizado é baseado na compreensão das relações de causa e efeito entre o comportamento do suspeito e a resposta do policial. O suspeito pode colaborar ou resistir, passiva ou agressivamente, à abordagem policial. Conforme o comportamento apresentado pelo abordado, o policial avaliará os riscos daquela intervenção de acordo com as habilidades e instrumentos de que dispõe para lidar naquela situação. Deverá percorrer mentalmente todos os níveis de força disponível e escolher a alternativa mais adequada para coibir a ameaça que enfrenta. Caso a escolha não surtir o efeito desejado ou diante de alterações das circunstâncias presentes, poderá subir ou descer na escala de força conforme a postura do suspeito.

Essa dinâmica no uso da força deve ser feita de modo consciente e racional, nunca motivada por qualquer inclinação subjetiva como raiva, retaliação, preconceito, dentre outras. O policial deve avaliar, em cada momento, a gravidade da situação e o objetivo legítimo a ser alcançado. É nesse momento que se observa que a legalidade apenas não serve de critério absoluto para permitir o uso da força. O ato empregado deve ser necessário e suficiente para pôr fim ao conflito e, para isso, deve atingir algum direito fundamental do abordado. É aqui que se faz a avaliação ética do uso da força, quando se pondera qual direito do abordado deverá ser restringido para proteger o direito ameaçado por seu comportamento.

As diretrizes internacionais referentes ao uso da força por agentes de segurança pública insistem no respeito aos direitos fundamentais do homem. O art. 2º do Código de Conduta para Encarregados da Aplicação da Lei, aprovado pela Resolução 34/169 da Assembleia Geral das Nações Unidas em 1979, diz: No cumprimento do seu dever, os funcionários responsáveis pela aplicação da lei devem respeitar e proteger a dignidade humana, manter e apoiar os direitos fundamentais de todas as pessoas.

Já o art. 5º do mesmo documento é mais detalhado:

Nenhum funcionário responsável pela aplicação da lei pode infligir, instigar ou tolerar qualquer acto de tortura ou qualquer outra pena ou tratamento cruel, desumano ou degradante, nem invocar ordens superiores ou circunstanciais excepcionais, tais como o estado de guerra ou uma ameaça à segurança nacional, instabilidade política interna ou qualquer outra emergência pública como justificação para torturas ou outras penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes.

Os Princípios Básicos sobre a Utilização da Força e de Armas de Fogo pelos Funcionários Responsáveis pela Aplicação da Lei dispõe o seguinte, em seu princípio 5:

5. Sempre que o uso legítimo da força ou de armas de fogo seja indispensável, os funcionários responsáveis pela aplicação da lei devem:

a) Utilizá-las com moderação e a sua acção deve ser proporcional à gravidade da infração e ao objetivo legítimo a alcançar;

b) Esforçar-se por reduzirem ao mínimo os danos e lesões e respeitarem e preservarem a vida humana;

c) Assegurar a prestação de assistência e socorros médicos às pessoas feridas ou afectadas, tão rapidamente quanto possível;

d) Assegurar a comunicação da ocorrência à família ou pessoas próximas da pessoa ferida ou afetada, tão rapidamente quanto possível.

Todos esses documentos legais fundamentam a Portaria Ministerial 4.226, de 31 de dezembro de 2010, que estabelece as diretrizes sobre o uso da força pelos órgãos de Segurança Pública brasileiros, conforme explicitado pelo item 1 do anexo 1 da referida portaria: 1. O uso da força pelos agentes de segurança pública deverá se pautar nos documentos internacionais de proteção aos direitos humanos [...]

O ato moral no emprego da força

É evidente que a legislação exige o respeito à dignidade da pessoa do infrator no uso da força policial, sob pena das sanções legais cabíveis. Desse modo, o policial deve agir conforme o mandamento legal, que não se preocupa com o foro íntimo do agente de segurança pública, apenas com exteriorização do comportamento nos moldes exigidos pela lei.

Na visão de Kant, a conduta conforme um mandamento externo não é um ato moral, pois se busca um fim empírico. No caso do uso legítimo da força, o policial deve observar os direitos fundamentais do infrator com o objetivo de não responder por possível abuso de autoridade e outras ilegalidades.

Entretanto, mesmo com o expresso mandamento legal , o policial pode praticar o ato moral, bastando que sua intenção esteja realmente voltada para preservar a integridade física e moral do infrator na medida suficiente para inibir a conduta ilícita deste. O policial agirá na obrigação do cumprimento de um dever imposto racionalmente por si mesmo, quando enxerga no infrator um ser humano racional como ele próprio, mas que se comporta de modo irracional, pois a atividade que lesiona ou ameaça direitos de terceiros não pode ser produto da Razão.

De fato, Kant afirma que a coação da liberdade de quem coage a liberdade de outrem é um ato racional necessário, conforme suas próprias palavras:

"[...] dado que toda limitação da liberdade por parte do arbítrio de outro se chama coação, resulta que a constituição civil é uma relação de homens livres que (sem menoscabo de sua liberdade no conjunto de sua união com os outros) se acham, sem embargo, sob leis coativas; e isso porque assim o quer a razão mesma e certamente a razão para que legisla a priori sem levar em conta nenhum fim empírico" (apud Leite, 2007).

O ato moral é interno, praticado pelo agente pela simples necessidade lógica exigida pelo princípio da não-contradição, pois o comportamento moral, como produto exclusivo da Razão, livre de qualquer condicionamento empírico, não admite conduta diversa daquela que o intelecto estabeleça quando trata qualquer ser racional como um fim em si mesmo.

A Razão é a mesma para todo ser humano, sendo apenas o seu maior ou menor uso que diferencia os homens. Portanto, com maior ou menor esforço, qualquer indivíduo consegue reconhecer o ato moral de terceiro, apesar da internalidade da conduta. O homem, no uso do entendimento, tem a capacidade de compreender a intenção de seu semelhante que age sem um fim determinado senão a realização de uma ordem racional.

O propósito do ato moral não é ser visto ou reconhecido por outros, pois isso descaracterizaria a moralidade do próprio ato, no entendimento de Kant, já que vincularia um objetivo empírico e condicionado à ação, transformando o imperativo em hipotético.

O policial, mesmo obrigado a atender às exigências legais de preservar dentro do possível a incolumidade do infrator, tem a liberdade de dirigir sua vontade não para o mero cumprimento da ordem jurídica, mas sim para que sua conduta seja exigível obrigatoriamente a todos que encontrem-se naquela mesma situação. O policial, quando age na forma do dever imposto por si e para si, demonstra o valor moral de seu comportamento, diferente de quando age conforme a exigência legal, pois nesse caso busca o agente evitar qualquer punição jurídica ou administrativa.

Considerações finais

O ato do cumprimento de um dever legal não impede que esse ato seja moral. A moralidade reside na vontade do agente, que é livre para determinar sua conduta de acordo com o mandamento que quiser.

O agente, mesmo no dever de cumprir a exigência legal, pode ser movido pela obrigação imposta a si mesmo como uma escolha racional e necessária, ainda que essa vá de encontro com o mandamento legal externo. Logo, o ato moral é uma escolha interna, independente de qualquer influência externa ao querer do indivíduo.

Como escolha racional necessária, o ato moral pode ser reconhecido por qualquer sujeito no uso de seu intelecto que, diante das circunstâncias onde o comportamento moral encontrou realização, agiria da mesma forma pela necessidade lógica e não-contraditória daquela conduta. Quando aplicada na dosagem do uso da força policial, a inexigibilidade de conduta diversa do ato moral justifica os requisitos da proporcionalidade e conveniência exigidos pela medida.

Diante de tudo o que foi exposto, é permitido concluir que o policial, quando procura atender às exigências jurídicas necessárias para o emprego da força, mas define para si mesmo as condições do uso da medida legal amparado no respeito à dignidade do infrator, não age como um instrumento do Estado na execução da lei, mas sim como um ser racional, reclamando sua condição humana como um fim em si mesmo, capaz de se decidir pelo seu´próprio entendimento.

REFERÊNCIAS

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BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil. [S. l.: s. n.], 2021. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 22 mar. 2021.

BRASIL. Lei nº 5172, de 25 de outubro de 1966. Código Tributário Nacional. [S. l.], 25 out. 1966. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l5172compilado.htm. Acesso em: 22 mar. 2021.

CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: [s. n.], 2000.

LEITE, Flamarion Tavares. 10 Lições sobre Kant. 9ª. ed. Petrópolis: Vozes, 2007.

KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. 1ª. ed. Lisboa: Edições 70, 2007.

MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 42ª. ed. São Paulo: Malheiros, 2005.

SCRUTON, Roger. Introdução à Filosofia Moderna. Rio de Janeiro: Zahar, 1982.

WARBURTON, Nigel. Elementos Básicos de Filosofia. 2ª. ed. Lisboa: Gradiva, 2007.

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