O Poder Legislativo do Poder Judiciário?

A legitimidade do STF em criminalizar ou descriminalizar condutas

Leia nesta página:

O presente artigo realiza um mergulho raso no oceano profundo que permeia o ativismo judicial do Supremo Tribunal Federal.

Muito se fala atualmente sobre o ativismo judicial no Brasil e até em outros países, mas o que seria isso?

Bom, para começar podemos trazer 2 decisões do STF que podem exemplificar bem o que é esse fenômeno:

 

DECISÃO 1: MANDADO DE INJUNÇÃO 4.733 DISTRITO FEDERAL

EMENTA: DIREITO CONSTITUCIONAL. MANDADO DE INJUNÇÃO. DEVER DO ESTADO DE CRIMINALIZAR AS CONDUTAS ATENTATÓRIAS DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS. HOMOTRANSFOBIA. DISCRIMINAÇÃO INCONSTITUCIONAL. OMISSÃO DO CONGRESSO NACIONAL. MANDADO DE INJUNÇÃO JULGADO PROCEDENTE.

1. É atentatório ao Estado Democrático de Direito qualquer tipo de discriminação, inclusive a que se fundamenta na orientação sexual das pessoas ou em sua identidade de gênero.

2. O direito à igualdade sem discriminações abrange a identidade ou expressão de gênero e a orientação sexual.

3. À luz dos tratados internacionais de que a República Federativa do Brasil é parte, dessume-se da leitura do texto da Carta de 1988 um mandado constitucional de criminalização no que pertine a toda e qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais.

4. A omissão legislativa em tipificar a discriminação por orientação sexual ou identidade de gênero ofende um sentido mínimo de justiça ao sinalizar que o sofrimento e a violência dirigida a pessoa gay, lésbica, bissexual, transgênera ou intersex é tolerada, como se uma pessoa não fosse digna de viver em igualdade. A Constituição não autoriza tolerar o sofrimento que a discriminação impõe.

5. A discriminação por orientação sexual ou identidade de gênero, tal como qualquer forma de discriminação, é nefasta, porque retira das pessoas a justa expectativa de que tenham igual valor.

6. Mandado de injunção julgado procedente, para (i) reconhecer a mora inconstitucional do Congresso Nacional e; (ii) aplicar, até que o Congresso Nacional venha a legislar a respeito, a Lei 7.716/89 a fim de estender a tipificação prevista para os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional à discriminação por orientação sexual ou identidade de gênero.

A C Ó R D Ã O

Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Supremo Tribunal Federal, em Sessão Plenária, sob a Presidência do Ministro Dias Toffoli, na conformidade da ata de julgamento e das notas taquigráficas, por maioria de votos, em conhecer do mandado de injunção, vencido o Ministro Marco Aurélio, que não admitia a via mandamental. Por maioria, julgou procedente o mandado de injunção para (i) reconhecer a mora inconstitucional do Congresso Nacional e; (ii) aplicar, com efeitos prospectivos, até que o Congresso Nacional venha a legislar a respeito, a Lei 7.716/1989 a fim de estender a tipificação prevista para os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional à discriminação por orientação sexual ou identidade de gênero, nos termos do voto do Relator, vencidos, em menor extensão, os Ministros Ricardo Lewandowski e Dias Toffoli (Presidente) e o Ministro Marco Aurélio, que julgava inadequada a via mandamental.

Brasília, 13 de junho de 2019.

Ministro EDSON FACHIN - Relator

 

 

 

DECISÃO 2: ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL 54 DISTRITO FEDERAL

ESTADO LAICIDADE. O Brasil é uma república laica, surgindo absolutamente neutro quanto às religiões. Considerações. FETO ANENCÉFALO INTERRUPÇÃO DA GRAVIDEZ MULHER LIBERDADE SEXUAL E REPRODUTIVA SAÚDE DIGNIDADE AUTODETERMINAÇÃO DIREITOS FUNDAMENTAIS CRIME INEXISTÊNCIA. Mostra-se inconstitucional interpretação de a interrupção da gravidez de feto anencéfalo ser conduta tipificada nos artigos 124, 126 e 128, incisos I e II, do Código Penal.

A C Ó R D Ã O

Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Supremo Tribunal Federal em julgar procedente a ação para declarar a inconstitucionalidade da interpretação segundo a qual a interrupção da gravidez de feto anencéfalo é conduta tipificada nos artigos 124, 126 e 128, incisos I e II, do Código Penal, nos termos do voto do relator e por maioria, em sessão presidida pelo Ministro Cezar Peluso, na conformidade da ata do julgamento e das respectivas notas taquigráficas.

Brasília, 12 de abril de 2012.

MINISTRO MARCO AURÉLIO RELATOR

 

 

Revisitando os autos das 2 decisões acima expostas podemos encontrar em ambas um ponto em comum: O julgador legislando, preenchendo uma suposta lacuna do Poder Legislativo, sendo na decisão 1 criminalizando uma conduta, enquanto na decisão 2 descriminalizando outra.

Inicialmente queremos deixar claro que a intenção do presente artigo não é firmar um posicionamento contra ou a favor do conteúdo material dessas 2 decisões, o objetivo é analisar sua formalidade, ao transformar decisões judiciais em lei penal.

Em que pese toda a benevolência do STF em preencher essas lacunas da legislação não concordamos com o fato do órgão máximo do Poder Judiciário exercer o papel de legislador.

Quem detém o protagonismo desse papel é o parlamentar, que imbuído do poder conferido pelo mandato, concedido através do voto popular, tem a autoridade e legitimidade necessária para legislar em nome daqueles que representa.

Os juízes, data venia às suas honrosas e complexas atribuições, não possuem mandato para atuarem em nome do povo, logo não detêm legitimidade para representar seus interesses, portanto não podem legislar.

Sabemos que o Poder Legislativo muitas vezes é moroso em sua atividade fim porém isso não pode servir de subterfúgio para que o Poder Judiciário assuma sua função legislativa.

O Poder Judiciário deve atuar estritamente na sua esfera e nos casos das lacunas deixadas pelo Poder Legislativo deve sim agir, porém nos limites legais, determinando, quando for o caso, que o Parlamento exerça sua atividade legislativa, mas nunca exercendo essa em seu lugar.

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Entendemos que essas decisões legislativas são inconstitucionais. No caso dos exemplos citados elas ferem o consagrado princípio da legalidade ou reserva legal, insculpido em nossa Carta Magna no artigo 5º, inciso XXXIX: não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal.

Esse ativismo judicial do STF vai além de criminalizar ou descriminalizar condutas, senão vejamos na decisão abaixo:

 

DECISÃO 3: REFERENDO NA MEDIDA CAUTELAR NA ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL 779 DISTRITO FEDERAL

EMENTA Referendo de medida cautelar. Arguição de descumprimento de preceito fundamental. Interpretação conforme à Constituição. Artigos 23, inciso II, e 25, caput e parágrafo único, do Código Penal e art. 65 do Código de Processo Penal. Legítima defesa da honra. Não incidência de causa excludente de ilicitude. Recurso argumentativo dissonante da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da CF), da proteção à vida e da igualdade de gênero (art. 5º, caput, da CF). Medida cautelar parcialmente deferida referendada.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Supremo Tribunal Federal, em sessão virtual do Plenário de 5 a 12/3/21, na conformidade da ata do julgamento, por unanimidade, em referendar a concessão parcial da medida cautelar para: (i) firmar o entendimento de que a tese da legítima defesa da honra é inconstitucional, por contrariar os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da CF), da proteção à vida e da igualdade de gênero (art. 5º, caput, da CF); (ii) conferir interpretação conforme à Constituição aos arts. 23, inciso II, e 25, caput e parágrafo único, do Código Penal e ao art. 65 do Código de Processo Penal, de modo a excluir a legítima defesa da honra do âmbito do instituto da legítima defesa e, por consequência, (iii) obstar à defesa, à acusação, à autoridade policial e ao juízo que utilizem, direta ou indiretamente, a tese de legítima defesa da honra (ou qualquer argumento que induza à tese) nas fases pré-processual ou processual penais, bem como durante julgamento perante o tribunal do júri, sob pena de nulidade do ato e do julgamento, nos termos do voto do Relator, Ministro Dias Toffoli. Os Ministros Edson Fachin, Luiz Fux (Presidente) e Roberto Barroso acompanharam o Relator com ressalvas. A ressalva do Ministro Gilmar Mendes foi acolhida pelo Relator.

Brasília, 15 de março de 2021.

Ministro Dias Toffoli Relator.

 

 

Na decisão acima exposta temos um perigoso precedente da amplitude da interpretação conforme à Constituição. Verificamos que houve a declaração da inconstitucionalidade da tese da legítima defesa da honra pelo STF, provocando um claro cerceamento de defesa do advogado no tribunal do júri.

Não vamos entrar no mérito aqui sobre concordar ou não com a tese da legítima defesa da honra, pois não é o objetivo deste artigo, mas não podemos aceitar a atitude do STF de legislar impedindo o uso de uma tese de defesa.

Enfim, não nos posicionamos exatamente contra o ativismo judicial, pois às vezes este se faz necessário para suprir a inércia do Poder Legislativo. O que não podemos admitir é este ativismo desmesurado, numa verdadeira neoditadura, onde ocorre apenas a transferência da concentração excessiva de poderes do executivo para o judiciário.

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

 

https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=753957476

Acesso em 15/02/2022.

 

https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=3707334

Acesso em 15/02/2022.

 

https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=755906373

Acesso em 16/02/2022.

Sobre os autores
Leonardo Moreira Dias

Bacharel em Direito pela Universidade Gama Filho (2010). Aprovado no Exame de Ordem da OAB 2010/2. Título de Especialista em Direito Público com capacitação para ensino no Magistério Superior pela Faculdade de Direito Professor Damásio de Jesus (2013). Bacharel em Sistemas de Informação pela Universidade Estácio de Sá - Rio de Janeiro (2019). Pós-graduado em Business Intelligence, Big Data e Analytics na Universidade Norte do Paraná (2021). Pós-graduado em Direito Constitucional Aplicado, pela Faculdade Legale (2022 - 2023). Funcionário público no Estado do Rio de Janeiro desde 2001. Tem experiência na área de Direito Público, com ênfase em Direito Penal.

Custódio Rubens Barbosa Junior

Inspetor de Polícia da Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro (PCERJ-SEPOL). Bacharel em Sistemas de Informação. Especialista em banco de dados.

Elaine Bilate

Funcionária Pública do Estado do Rio de Janeiro (SEPOL). Especialista em Gestão de Qualidade.

Elke Ribeiro de Oliveira

Bacharel em Direito. Funcionária pública no Estado do Rio de Janeiro.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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