PODE O SERVIDOR PÚBLICO RESIDIR EM DOMICÍLIO DIVERSO DE ONDE É LOTADO SOB O MANTO DO TELETRABALHO SEM FERIR OS PRINCÍPIOS DA LEGALIDADE E DA MORALIDADE ADMINISTRATIVA?

17/02/2022 às 17:09
Leia nesta página:

Hodiernamente uma das mais profundas modificações no mundo do trabalho foi a possibilidade do teletrabalho ou trabalho remoto.

É a história confirmando ser cíclica, vez que estamos voltando à ideia de trabalho no domus (casa), situação nos retirada com a Revolução Industrial que levou os operários para as fábricas (onde as diferenças culturais entre chefes e subordinados se acentuaram e onde eram visíveis as classes sociais)..

A razão para uma revolução no tecido laboral deve-se exponencialmente ao ao avanço da telecnologia, que permitiu a alguns tipos de trabalhadores exercerem usas funções no ambiente doméstico, ou seja, a partir de sua residência. Na esteira de Bruno Cardoso temos que:

Com o desenvolvimento das tecnologias da informação e a introdução das telecomunicações nas relações de trabalho, o teletrabalho ganha cada vez mais espaço, transformando as tradicionais relações laborais.

Nesse contexto, as formas de vida e trabalho ganham novos contornos, impondo um novo ritmo de desenvolvimento das atividades humanas.

Desse modo, torna-se inevitável o reconhecimento da relação de trabalho caracterizada pela utilização de tecnologia da informação e comunicação no desenvolvimento de suas atividades. Assim surge o teletrabalho, como fruto do desenvolvimento das tecnologias da informação e telecomunicação nas relações de trabalho modernas[1].

Para delimitar o tema proposto, urge trabalhar precipuamente a conceituação do teletrabalho. Nesta liça, a Organização Mundial do Trabalho OMS, conceitua o teletrabalho como a forma de trabalho realizada em lugar distante do escritório e/ou centro de produção, que permita a separação física e que implique o uso de uma nova tecnologia facilitadora da comunicação[2].

Na linha enciclopédica, encontramos a seguinte definição para o teletrabalho, como sendo a atividade profissional exercida à distância, fora do espaço físico da empresa empregadora (geralmente no domicílio), através do recurso a tecnologias de informação e de comunicação (internet, e-mail, telefone, etc.)[3].

Destaque-se que sem a utilização de recursos tecnológicos, não há que se falar em teletrabalho. Esse é o posicionamento do Superior Tribunal do Trabalho:

O que NÃO é teletrabalho? O teletrabalho é necessariamente realizado com recursos tecnológicos. Além disso, a atividade poderia ser exercida perfeitamente dentro das dependências do empregador, mas é realizada em outro local. É o caso de um advogado, que pode redigir uma peça jurídica dentro do escritório em que trabalha, em uma cafeteria ou até mesmo de seu computador em sua própria casa. No caso do trabalho externo, não é necessário o uso de recursos tecnológicos. A atividade deve ser realizada em local externo às dependências da empresa e geralmente é incompatível com a fixação de horário de trabalho. Um ótimo exemplo é o motorista, que dirige por locais que não é a sede da empresa e costuma ter uma dificuldade maior de realizar o controle de jornada justamente por realizar sua atividade longe dos olhos do empregador[4].

Como já levantado, a realidade que estamos vivenciando nessa segunda década do século XXI com o advento do reinado da era tecnológica, é completamente diferente do vivíamos quando elaborado o Código Civil de 2002, quando a internet ainda engatinhava.

O sociólogo Domenico De Masi faz a seguinte elucubração a respeito da afirmação acima levantada:

Hoje, que o trabalho intelectual se confunde cada vez mais com o estudo e a diversão, os escritórios tradicionais em que ele se desenvolve são cada vez menos capazes de acolhê-lo, enquanto os sites e as redes sociais fornecem a plataforma perfeita para a atividade pós-industrial, que se mostra cada vez mais flexível, abstrata, ubíqua e criativa, permitindo aos trabalhadores que se tornem ao mesmo tempo isolados, conectados, nômades e fixados, onde quer que estejam[5].

Não se pode esquecer que o teletrabalho tem muitas facetas positivas, as quais podemos enumerar algumas a titulo de exemplificação: i) evita deslocamentos, o que inclui enfrentamento do trânsito, sujeição aos transportes coletivos na maioria deficitários; ii) economia de tempo, o que permite maior tempo livre, inclusive para lazer e terapias; iii) maior convivência familiar, o que representa maior apoio aos filhos, idosos e deficientes; iv) economia de energia e recursos minerais, como gasolina; v) permite a descentralização do trabalho; vi) menos ocorrência de acidentes; vii) menos recursos financeiros despendidos na manutenção de vias públicas; viii) melhoria do meio ambiente, com menos poluição e emissão de gás carbônico; ix) menos gastos com vestiários roupas e sapatos, uma vez que as vestimentas no âmbito familiar dispensam os rigores da moda e formalidades em eventos; e x) menor exposição à patógenos: fungos, protozoários, bactérias e vírus.

Antes da Reforma Trabalhista, o teletrabalho já possuía previsão legal, conforme Art. 1º da Lei 12.551/2011 que, conforme sua ementa, alterou o art. 6º da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), aprovada pelo Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943, para equiparar os efeitos jurídicos da subordinação exercida por meios telemáticos e informatizados à exercida por meios pessoais e diretos. Senão vejamos:

Art. 1º O art. 6º da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), aprovada pelo Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943, passa a vigorar com a seguinte redação:

Art. 6º Não se distingue entre o trabalho realizado no estabelecimento do empregador, o executado no domicílio do empregado e o realizado a distância, desde que estejam caracterizados os pressupostos da relação de emprego.

Parágrafo único. Os meios telemáticos e informatizados de comando, controle e supervisão se equiparam, para fins de subordinação jurídica, aos meios pessoais e diretos de comando, controle e supervisão do trabalho alheio. (NR)

Com supedâneo na Lei 12.551/2011 e no âmbito da Administração Pública, muitas instituições passaram a dispor sobre a matéria. Neste sentido, temos, dentre outras, a Portaria RFB 947/12, da Secretaria da Receita Federal do Brasil; a Resolução Administrativa 1.499/12 do Tribunal Superior do Trabalho; a Portaria n° 139/09 do Tribunal de Contas da União; a Portaria MF 171 da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional e a Resolução 227/16, do Conselho Nacional de Justiça.

Com relação a esta última Resolução que acabou regulamentando a matéria no seu âmbito de sua atuação e com fincas na modificação do Art. 6º da CLT promovida pela Lei 12.551/2011, vale estampar colacionar os seus considerandos:

CONSIDERANDO a importância do princípio da eficiência para a Administração Pública, art. 37 da Constituição Federal;CONSIDERANDO que o aprimoramento da gestão de pessoas é um dos macrodesafios do Poder Judiciário, a teor da Resolução CNJ 198/2014, o que compreende a necessidade de motivar e comprometer as pessoas, bem como buscar a melhoria do clima organizacional e da qualidade de vida dos servidores;

CONSIDERANDO que o avanço tecnológico, notadamente a partir da implantação do processo eletrônico, possibilita o trabalho remoto ou a distância;

CONSIDERANDO a necessidade de regulamentar o teletrabalho no âmbito do Poder Judiciário, a fim de definir critérios e requisitos para a sua prestação;

CONSIDERANDO as vantagens e benefícios diretos e indiretos resultantes do teletrabalho para a Administração, para o servidor e para a sociedade;

CONSIDERANDO que a Lei 12.551/2011 equipara os efeitos jurídicos da subordinação exercida por meios telemáticos e informatizados à exercida por meios pessoais e diretos; CONSIDERANDO a experiência bem-sucedida nos órgãos do Poder Judiciário que já adotaram tal medida, a exemplo do Tribunal Superior do Trabalho, do Conselho Superior da Justiça do Trabalho e do Tribunal Regional Federal da 4ª Região;

CONSIDERANDO a deliberação do Plenário do CNJ no Procedimento de Comissão 0003437-54.2015.2.00.0000, na 233ª Sessão Ordinária, realizada em 14 de junho de 2016; [...][6]

Além dos considerandos acima digeridos, podemos invocar o Art. 3º da sobre-citada Resolução 227/2016, do CNJ, que enumera objetivos do teletrabalho:

Art.3º São objetivos do teletrabalho:

I aumentar a produtividade e a qualidade de trabalho dos servidores;

II promover mecanismos para atrair servidores, motivá-los e comprometê-los com os objetivos da instituição;

III economizar tempo e reduzir custo de deslocamento dos servidores até o local de trabalho;

IV contribuir para a melhoria de programas socioambientais, com a diminuição de poluentes e a redução no consumo de água, esgoto, energia elétrica, papel e de outros bens e serviços disponibilizados nos órgãos do Poder Judiciário;

V ampliar a possibilidade de trabalho aos servidores com dificuldade de deslocamento;

VI aumentar a qualidade de vida dos servidores;

VII promover a cultura orientada a resultados, com foco no incremento da eficiência e da efetividade dos serviços prestados à sociedade;

VIII estimular o desenvolvimento de talentos, o trabalho criativo e a inovação;

IX respeitar a diversidade dos servidores;

X considerar a multiplicidade das tarefas, dos contextos de produção e das condições de trabalho para a concepção e implemento de mecanismos de avaliação e alocação de recursos.

Posteriormente e no sentido de regulamentar a matéria, a Lei nº 13.467, de 2017 Reforma Trabalhista, incluiu no corpo da CLT, o CAPÍTULO II-A, nomeado DO TELETRABALHO, acrescentando os seguintes dispositivos à Consolidação:

Art. 75-A. A prestação de serviços pelo empregado em regime de teletrabalho observará o disposto neste Capítulo.

                  

Art. 75-B. Considera-se teletrabalho a prestação de serviços preponderantemente fora das dependências do empregador, com a utilização de tecnologias de informação e de comunicação que, por sua natureza, não se constituam como trabalho externo.

Parágrafo único.  O comparecimento às dependências do empregador para a realização de atividades específicas que exijam a presença do empregado no estabelecimento não descaracteriza o regime de teletrabalho.

Art. 75-C. A prestação de serviços na modalidade de teletrabalho deverá constar expressamente do contrato individual de trabalho, que especificará as atividades que serão realizadas pelo empregado.

§ 1o  Poderá ser realizada a alteração entre regime presencial e de teletrabalho desde que haja mútuo acordo entre as partes, registrado em aditivo contratual

§ 2o  Poderá ser realizada a alteração do regime de teletrabalho para o presencial por determinação do empregador, garantido prazo de transição mínimo de quinze dias, com correspondente registro em aditivo contratual.  

                 

Art. 75-D. As disposições relativas à responsabilidade pela aquisição, manutenção ou fornecimento dos equipamentos tecnológicos e da infraestrutura necessária e adequada à prestação do trabalho remoto, bem como ao reembolso de despesas arcadas pelo empregado, serão previstas em contrato escrito

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Parágrafo único.  As utilidades mencionadas no caput deste artigo não integram a remuneração do empregado.

Art. 75-E.  O empregador deverá instruir os empregados, de maneira expressa e ostensiva, quanto às precauções a tomar a fim de evitar doenças e acidentes de trabalho.

Parágrafo único.  O empregado deverá assinar termo de responsabilidade comprometendo-se a seguir as instruções fornecidas pelo empregador.

Da exegese dos dispositivos vemos que o teletrabalho já havia sido inserido no campo legislativo antes da pandemia Covid-19.

Ocorre que com a pandemia, além do teletrabalho ter sido intensificado com as restrições de circulação de pessoas e obrigatoriedade de distanciamento social, o teletrabalho atingiu em cheio o setor público.

No âmbito dos entes federativos e para fins de enfrentamento à pandemia, foram editados vários decretos com autorização expressa do teletrabalho para os servidores públicos, como medida de caráter excepcional.

Vale ainda informar que também houve previsão da obrigatoriedade de atingimento de metas pelos servidores que optassem pelo sistema de teletrabalho.

Para efetivação do teletrabalho, alguns entes federativos optaram por disponibilizar equipamentos de informática para os seus servidores. Para ilustrar, trazemos à baila o conteúdo do § 2º do Art. 2º, da IN 001/2020/SEPLAG [Instrução Normativa da Secretaria de Estado do Planejamento Gestão e Patrimônio] do Estado de Alagoas:

Art. 2° Constituem órgãos/setores responsáveis pela gestão e operacionalização de tal implementação:

[...]

§2º Excepcionalmente, mediante justificativa fundamentada pelo servidor e com a anuência do chefe imediato, o órgão ou entidade poderá disponibilizar um recurso computacional de acesso ao teletrabalho (computador ou notebook), mediante celebração de Termo de Responsabilidade de uso do recurso, podendo o servidor ser responsabilizado por eventual uso indevido.

Na falta de regulamentação geral e abstrata [lei em sentido estrito] da matéria, muitas disparidades normativas e interpretativas podem ocorrer no setor público, especialmente acerca do tema aqui proposto.

Não podemos nos olvidar que a maioria dos cargos preenchidos na Administração Pública provêem de certames públicos, o que caracteriza a permanência indica no dispositivo acima colacionado. Nesta linha de raciocínio, muitas pessoas deixam suas terras natais quando são aprovados nos certames e o teletrabalho poderia ser uma oportunidade de retorno ao ambiente domiciliar anterior.

Acerca da temática referente à possibilidade de mudança de domicilio ocasionada pelo teletrabalho, temos que: i) não se enquadra dentro das hipóteses de afastamento do servidor público, pois não se cuida de afastamento; ii) não se adéqua às hipóteses de trabalho no exterior [missão no exterior e missão diplomática], e nem de deslocamento à serviço; iii) não se trata de remoção, redistribuição, aproveitamento, recondução, reintegração ou readaptação; e iv) não se pode falar em transferência do servidor público para outra localidade[7].

E é sobre este último que a dúvida é levantada: poderia o servidor público ser transferido voluntariamente para outra localidade com a permissão do teletrabalho que lhe foi concedida?

Para responder à indagação, urge preliminarmente levantar as disposições contidas nos Arts. 70, 71, 72 e 76 do Código Civil Brasileiro, in verbis:

Art. 70. O domicílio da pessoa natural é o lugar onde ela estabelece a sua residência com ânimo definitivo.

Art. 71. Se, porém, a pessoa natural tiver diversas residências, onde, alternadamente, viva, considerar-se-á domicílio seu qualquer delas.

Art. 72. É também domicílio da pessoa natural, quanto às relações concernentes à profissão, o lugar onde esta é exercida.

Parágrafo único. Se a pessoa exercitar profissão em lugares diversos, cada um deles constituirá domicílio para as relações que lhe corresponderem.

Art. 76. Têm domicílio necessário o incapaz, o servidor público, o militar, o marítimo e o preso.

Parágrafo único. O domicílio do incapaz é o do seu representante ou assistente; o do servidor público, o lugar em que exercer permanentemente suas funções; o do militar, onde servir, e, sendo da Marinha ou da Aeronáutica, a sede do comando a que se encontrar imediatamente subordinado; o do marítimo, onde o navio estiver matriculado; e o do preso, o lugar em que cumprir a sentença.

O Estatuto Material Civil prevê a hipótese de duplicidade ou até mesmo multiplicidade de residências. No entanto, entendemos que a norma contida no Art. 76, por ser norma de caráter especial prevalece sobre a norma de caráter geral. O dispositivo revela o domicilio do servidor público na classificação de legal ou necessário, sendo que decorre de mandamento da lei, em atenção à condição especial de determinadas pessoas. Assim, têm domicílio necessário o incapaz, o servidor público, o militar, o marítimo e o preso [...][8]

Da reflexão acima subtrai-se que o domicilio legal ou necessário não é voluntário, pois decorre da lei. Ao não ser voluntário, não comporta opção. No entanto, abarca exceções.

Uma hipótese de mudança de domicilio para exercício do teletrabalho em outra localidade nos parece bem óbvia: a que objetiva acompanhar cônjuge. Uma vez prevista a remoção como direito do servidor, nada mais coerente do que adotar o teletrabalho na mesma hipótese fática. Se o servidor tem direito a sua remoção, que se opera com modificação do domicilio laboral, não há porque se falar em proibição de teletrabalho nessas circunstâncias. O que seria até conveniente para a Administração Pública e para o servidor público, posto que não haveria necessidade de processo de remoção.

Para robustecer a assertiva, segue julgado do Supremo Tribunal Federal:

EMENTA DIREITO CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. EMPREGADO PÚBLICO. TRANSFERÊNCIA DE OFÍCIO. REMOÇÃO PARA ACOMPANHAR CÔNJUGE. POSSIBILIDADE. ART. 226 DA LEI MAIOR. ACÓRDÃO RECORRIDO PUBLICADO EM 12.8.2008. O Supremo Tribunal Federal entende que, em atenção ao art. 226 da Constituição Federal, o servidor público possui direito à remoção para acompanhar o cônjuge, empregado público, transferido de ofício. As razões do agravo regimental não se mostram aptas a infirmar os fundamentos que lastrearam a decisão agravada. Agravo regimental conhecido e não provido. (ARE 644938 AgR, Relator(a): ROSA WEBER, Primeira Turma, julgado em 09/09/2014, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-185 DIVULG 23-09-2014 PUBLIC 24-09-2014).

Entendemos que também é possível, sem maiores questionamentos, a mudança de domicílio do servidor público que ingresse em universidade pública fora de seu domicilio laboral e que se comprometa a prestar o teletrabalho a contento, inclusive com o atingimento de metas. Ora, se é obrigatório que a universidade pública aceite a transferência de servidor público que passou em concurso público fora do domicilio estudantil, também haverá se ser permitido o ingresso na universidade pública fora de seu domicilio laboral, o que pode ser realizado à vista do teletrabalho. Temos assim, a observância do Art. 205 da Constituição Federal, que preleciona: A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.

Para melhor percepção, segue com a palavra o STF:

Ementa: ADMINISTRATIVO E CONSTITUCIONAL. RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM REPERCUSSÃO GERAL. INGRESSO DE SERVIDOR PÚBLICO TRANSFERIDO EM UNIVERSIDADE PÚBLICA, NA FALTA DE UNIVERSIDADE PRIVADA CONGÊNERE À DE ORIGEM. POSSIBILIDADE. DESPROVIMENTO DO RECURSO. 1. A transferência de servidor público federal civil ou militar estudante, ou seu dependente, prevista no art. 49, parágrafo único, da Lei 9.394/96, e regulamentada pela Lei 9.356/97, pode ser efetivada entre instituições pertencentes a qualquer sistema de ensino, na falta de universidade congênere à de origem. 2. É constitucional a previsão legal que assegure, na hipótese de transferência ex officio de servidor, a matrícula em instituição pública, se inexistir instituição congênere à de origem. 3. Recurso extraordinário a que se nega provimento. (RE 601580, Relator(a): EDSON FACHIN, Tribunal Pleno, julgado em 19/09/2018, ACÓRDÃO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL - MÉRITO DJe-037 DIVULG 19-02-2020 PUBLIC 20-02-2020)

Fora essas exceções aqui levantadas, como ficariam os servidores públicos que a despeito de estarem sob o manto do teletrabalho, resolvessem mudar para localidade diversa? Exceptuando-se na indagação e análise os servidores públicos cuja obrigatoriedade de residirem nas comarcas vem expressamente prevista em suas leis orgânicas (como no caso dos magistrados e membros do Ministério Público).

No caso do servidor comissionado ou daquele investido em funções de confiança (como a função gratificada) temos que as atribuições são referentes à direção, chefia e assessoramento (CF, Art. 37, V).

À despeito dos cargos em comissão, Carvalho Filho faz as seguintes observações:

A natureza desses cargos impede que os titulares adquiram estabilidade. Por outro lado, assim como a nomeação para ocupá-los dispensa a aprovação prévia em concurso público, a exoneração do titular é despida de qualquer formalidade especial e fica a exclusivo critério da autoridade nomeante. Por essa razão é que são considerados de livre nomeação e exoneração (art. 37, II, CF)[9].

Trata-se de estar presencialmente no local de trabalho sempre que solicitado, ou seja, sem prazo para se apresentar. Descaracteriza a confiança o fato do servidor se valer do benefício de morar residir em outra localidade, uma vez que o vínculo jurídico administrativo exige proximidade das pessoas envolvidas.

Confiança é contrário de incerteza. Nesta senda, como se tratar de confiança (a presença física do servidor sempre que solicitado), estando o mesmo em domicilio distinto e por vezes distante?

Acerca da situação do servidor aprovado em concurso público e que ainda não conquistou a estabilidade, posto que não cumpriu o período do estágio probatório, deve se ponderar para o fato de que o mesmo deve ter contato físico com as dependências do serviço público de modo a conhecer as nuances que regem a Administração Pública. O estágio probatório é, por assim dizer, a escola do labor público.

Sobre o servidor público estável e efetivo, a permissão parece bem sustentável. No entanto, há argumentos em sentido contrário. Um deles reside no campo da moralidade administrativa.

A alegação mais robusta seria o fato de que o servidor [e aqui serve para todas as categorias de servidores públicos] recebia dos cofres públicos em um domicilio e gastaria seus subsídios/vencimentos em outro. Essa premissa inclui tributos, que seriam recolhidos fora do âmbito da incidência da fonte pagadora. São bons exemplos o IPTU, IPVA, ICMS. Sobre este último não se pode deixar de considerar a chamada guerra fiscal entre os estados.

Com base nessas ilações e em todos os casos, há que se observar com vagar o princípio da moralidade administrativa, que trabalha os valores éticos sociais, numa ideia comum de honestidade.

Celso Antônio Bandeira de Mello, analisando o princípio da moralidade administrativa leciona que de acordo com ele,

A Administração e seus agentes têm de atuar na conformidade de princípios éticos. Violá-los implicará violação do próprio Direito, configurando ilicitude que assujeita a conduta viciada a invalidação, porquanto tal princípio assumiu foros de pauta jurídica, na conformidade do art. 37 da Constituição[10].

Por sua vez, Hely Lopes Meirelles citando Maurice Hauriou, doutrina que

A moralidade administrativa constitui, hoje em dia pressuposto de validade de todo ato da Administração Pública (CF, art. 37, caput). [...] Desenvolvendo sua doutrina, explica o mesmo autor [Hauriou] que o agente administrativo, como ser humano dotado da capacidade de atuar, deve, necessariamente, distinguir o Bem do Mal, o homensto do desonesto. E, ao atuar, não poderá desprezar o elemento ético de sua conduta. Assim, não terá que decidir somente entre o legal e o ilegal, o justo e o injuto, o conveniente e o inconveniente, o oportuno e o inoportuno, mas também entre o honesto e o desonesto. [...] A moral comum, remata Hauriou, é imposta ao homem para sua conduta externa; a moral administrativa é imposta ao agente público para sua conduta interna, segundo as exigências da instituição a que serve e a finalidade de sua ação: o bem comum[11].

Ocorre que a moral está intrínseca e necessariamente vinculada ao trinômio: cultura/história, sociedade e natureza humana. Toda vez que contraria uma dessas dimensões, ela tem de ser questionada em seus fundamentos[12].

Nesta liça, é a coletividade que não pode ser afetada. Em outras palavras, a diretriz da Administração Pública que é o interesse público estaria sendo afetado. A explicação estaria no fato de que, como já mencionado, com o deslocamento do servidor público para localidade diversa sob o manto do teletrabalho, os ganhos financeiros do servidor público pagos diretamente com recursos do Tesouro Público - a fonte pagadora, seriam desvirtuados para outras localidades.

Desta forma, atendendo ao binômio possibilidade/necessidade, concluímos que a lógica seria atender a sequência servidor municipal no município, servidor estadual no estado e servidor federal no território brasileiro.

Essa é a única leitura que entendemos possível para a atualização do comando inserto no Art. 76 do Código Civil. É a recognição que entendemos mais justa e que não subtrai as benesses do teletrabalho.

NOTAS DE RODAPÉ

  1. CARDOSO, Bruno. O que é teletrabalho, quais suas vantagens e as novidades trazidas pela Reforma? Artigo publicado na Revista Eletrônica JusBrasil. Disponível em https://brunonc.jusbrasil.com.br/artigos/603033170/o-que-e-teletrabalho-quais-suas-vantagens-e-as-novidades-trazidas-pela-reforma. Acesso em 30/04/2020.

  2. THIBAULT ARANDA, Javier. El teletrabajo: análisis jurídico-laboral. Consejo econômico y social, Madri: 2001, p.19.

  3. Infopédia: Dicionários Porto Editora. Disponível através do link: https://www.infopedia.pt/dicionarios/lingua-portuguesa/teletrabalho. Acesso em 16/02/2022.

  4. Cartilha sobre o teletrabalho do Tribunal Superior do Trabalho. Disponível em https://www.tst.jus.br/documents/10157/2374827/Manual+Teletrabalho.pdf/e5486dfc-d39e-a7ea-5995-213e79e15947?t=1608041183815. Acesso em 16/02/2022.

  5. DE MASI, Domenico. Uma simples revolução. Rio de Janeiro: Sextante, 2019, p. 125.

  6. Idem.

  7. Aqui vale abrir parênteses para cientificar que não estamos tratando da transferência anteriormente prevista no Art. 23 da Lei 8.112/90 RJU da União, que tutelava a transferência voluntária ou ex officio como a passagem do servidor estável de cargo efetivo para outro de igual denominação, pertencente a quadro de pessoal diverso, de órgão ou instituição do mesmo poder. Tal dispositivo foi expressamente revogado pela Lei 9.527, de 1997 e por força de reiteradas decisões do Supremo Tribunal Federal, ex vis RE 129.943, uma vez que nesse caso há afronta direta ao princípio do concurso público insculpido no Art. 37, II, da Constituição Federal.

  8. GAGLIANO, Pablo Stolze e PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil: parte geral. 13ª ed. São Paulo: Saraiva, 2011, 288-289.

  9. CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 27ª ed. São Paulo: Atlas, 2014, p. 617.

  10. MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 32ª ed. São Paulo: Malheiros, 2015, p. 123.

  11. MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 34ª ed. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 90.

  12. PEREIRA, Otaviano. O que é moral. Coleção Primeiros Passos. São Paulo: Brasiliense, 1991, p. 14.

Sobre a autora
Rosana Colen Moreno

Rosana Cólen Moreno. Procuradora do Estado de Alagoas. Membro da Confederação Latino-americana de trabalhadores estatais (CLATE). Especialista em previdência pública pela Damásio Educacional e em direitos humanos pela PUC/RS (em finalização). Autora do livro Manual de Gestão dos Regimes Próprios de Previdência Social: foco na prevenção e combate à corrupção, publicado pela LTr. Coordenadora da Comissão Internacional Avaliadora instituída pelo Conselho Latino-americano de Ciências Sociais (CLACSO-UNESCO) e denominada “Desigualdades, Exclusão e Crises de Sustentabilidade dos Sistemas Previdenciários da América Latina e Caribe. Educadora, Professora, Instrutora, Palestrante, Consultora. Participante do programa de doutorado em Direito Constitucional pela Universidad de Buenos Aires – UBA. Especialista em Regimes Próprios de Previdência (Damásio Educacional). Autora do livro: Manual de Gestão dos Regimes Próprios de Previdência Social: foco na prevenção e combate à corrupção.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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